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    Depois de tudo o que aconteceu, meu corpo parecia se mover sozinho. Meus pés me levaram floresta adentro, pelos caminhos que Kael havia mencionado como seguros. A luz suave do entardecer filtrava-se pelas copas das árvores, lançando sombras que dançavam no chão coberto por folhas secas. O vento soprava leve, carregando o perfume das flores selvagens misturado ao cheiro da madeira antiga.

    Caminhei sem destino, apenas tentando colocar meus pensamentos em ordem — ou ao menos, tentar.

    Tudo aquilo era pesado demais. Como se uma névoa espessa tivesse se instalado em minha mente, impedindo-me de enxergar com clareza. Kael havia dito muitas coisas, mas minha mente estava cansada demais para absorver tudo. Eu só conseguia me apegar a uma pergunta: como Laila conseguiu fugir de Crimsônia?

    Pelo que Kael explicou, aquele lugar não era apenas um reino — era uma fortaleza. Um cárcere disfarçado de nação. Ninguém entra, ninguém sai. A ideia de que uma criança, sozinha, conseguiu escapar daquele inferno… era difícil de acreditar.

    Talvez as memórias dela estejam confusas. Ou talvez ela tenha passado por algo tão traumático que seu cérebro decidiu trancar tudo a sete chaves, enterrando as lembranças no fundo de sua mente para protegê-la da dor.


    Eu queria ajudar Laila. De verdade. Mas como? Eu mal consigo conversar com ela. Às vezes, só de olhar para aqueles olhos tristes e vazios, sinto um aperto no peito que me impede até de respirar.

    A verdade é que talvez seja melhor que ela esqueça. Esquecer… às vezes é uma dádiva. Um presente raro que só alguns recebem.

    Se eu tivesse essa escolha, de apagar todas as memórias da minha vida passada, eu aceitaria sem hesitar. Apagaria tudo.

    As pessoas daquele mundo… sempre foram cruéis comigo. Nunca me deram valor. E agora, se estão lá, vivendo suas vidas como se eu nunca tivesse existido, então por que eu deveria me lembrar delas?


    Talvez… só talvez… eu quisesse lembrar da minha mãe.

    Ela foi a única que esteve ao meu lado. Mesmo quando eu era apenas um peso, um fardo inútil que passava os dias jogando videogame, desperdiçando tempo e vida. Cresci e continuei assim… perdido. Mesmo assim, ela nunca me abandonou. Sempre acreditou em mim, mesmo quando nem eu acreditava.

    Ela sorria por mim. Chorava por mim. Lutava por mim.

    Já meu pai… ele foi o oposto de tudo isso.

    Se eu pudesse apagar alguém da minha memória, seria ele.


    Quando eu tinha 15 anos, ele morreu. E por mais cruel que pareça, foi o dia mais feliz da minha vida.

    Ele nunca gostou de mim. Nunca tentou esconder isso. Vivia embriagado, voltava para casa fedendo a álcool e frustração. E descontava sua raiva no que tivesse pela frente — normalmente minha mãe. Às vezes, em mim também.

    Eu era só uma criança, mas já entendia que aquilo não era normal. Ainda assim… eu não fazia nada. Apenas assistia. Paralisado.

    Mas o destino tem formas estranhas de fazer justiça.

    Num dia qualquer, completamente bêbado, ele entrou na casa errada. Estava tão fora de si que nem percebeu. Lá dentro, havia uma mulher cuidando de seus dois filhos pequenos. Ele a atacou, sem motivo, como sempre fazia com minha mãe.

    Só que desta vez, o marido dela chegou. E ele era policial.

    Ele não hesitou. Espancou meu pai com tudo que tinha. A raiva de anos que eu reprimi parece ter sido liberada naquele momento, por mãos que não eram as minhas. Meu pai caiu no chão, sangrando, chorando, implorando por socorro.

    A ambulância sequer teve tempo de chegar.


    Eu me lembro dos gritos.

    Dos sons dos ossos se partindo.

    Da voz dele pedindo ajuda… ajuda que ele nunca deu para ninguém.

    Aquele foi o único dia em que sorri sinceramente na minha vida antiga.

    Hoje, acredito que ele esteja ardendo no quinto dos infernos. E que nunca saia de lá.


    Foi nesse instante que uma voz me tirou dos pensamentos. Uma presença se aproximou silenciosamente pelas minhas costas. Era Kael.

    — Lucas — disse ele, com a voz firme, porém baixa, como se respeitasse o momento de silêncio em que eu estava —, precisamos conversar. E vamos aproveitar que Laila e Aiza não estão por aqui.

    Ele se aproximou calmamente, como quem sabe que está prestes a tocar em feridas que ainda sangram.

    — O que você quer conversar, Kael? — perguntei com o olhar cansado, mas já imaginando qual seria o assunto. No fundo, eu já sabia.

    Quando ele falou, sua voz saiu baixa, mas firme, como se ele estivesse escolhendo cada palavra com cuidado para não deixar nada escapar.

    — Lucas… é sobre aquilo que aconteceu na floresta mais cedo. Aquela força obscura que quase saiu de dentro de você… a que por pouco não foi lançada na Aiza — disse Kael, com o rosto sério, até um pouco pálido. Era como se lembrar do momento ainda provocasse calafrios nele.

    Eu sabia muito bem do que ele estava falando. Não dava pra esquecer. Aquele poder… aquela presença sombria dentro de mim… Eu não era mais eu naquele instante. Quando enfrentei Kael antes, e esse poder apareceu, talvez se ele não tivesse desviado a tempo, eu teria realmente o matado. Mesmo ele sendo tão forte, aquilo estava além do normal. Aquilo era monstruoso.

    — Está bem… mas o que você quer me dizer sobre isso, Kael? — perguntei, tentando não demonstrar o medo que sentia só de pensar naquilo tudo de novo.

    — É que você não pode usar esse poder novamente. Não agora. Não até que você seja capaz de controlá-lo completamente — disse Kael, e suas palavras foram como pedras caindo sobre mim. Não era apenas um pedido. Era um alerta. Uma ordem nascida do medo.

    Eu entendi o porquê. Naquele momento, eu nem sabia o que estava acontecendo. Eu não conseguia pensar. Eu estava com raiva, sim… mas não ao ponto de perder o controle. Mesmo assim, meu corpo se moveu sozinho. Era como se eu tivesse sido empurrado para o fundo da minha mente, como se estivesse assistindo tudo de longe, sem conseguir interferir.

    Era assustador.

    Meu corpo se tornou uma casca vazia. Eu observava, como se outra pessoa estivesse dentro de mim, agindo por instinto. Mas ao mesmo tempo… aquele poder era diferente. Ele era viciante. Ele me dava força. Era como se, por um instante, eu fosse invencível. Com aquilo, eu podia conquistar tudo. Proteger quem eu amo. Impedir que mais alguém morra.

    Mas foi aí que Aiza entrou. Aiza nem tinha percebido o perigo no começo. A gente só estava brincando, rindo juntos, medindo forças. Mas, segundo Kael, todos sentiram o clima mudar. O ar ficou pesado. O vento parou de soprar. A mana ao nosso redor começou a vibrar de um jeito estranho.

    Foi nesse momento que Aiza percebeu. Ela sentiu que algo ruim estava prestes a acontecer. E então pegou mais pesado comigo e me parou, antes que fosse tarde demais. Mesmo sem entender tudo, ela foi firme. E talvez tenha sido isso que salvou nós dois.

    — Kael, eu entendo os seus motivos… mas eu preciso desse poder. Ele vai me fazer forte. Forte o suficiente para proteger a Aiza… e forte o bastante pra não ter que correr pra você toda vez que algo acontece — falei com a voz embargada, mas cheio de convicção. Eu estava colocando todos os meus sentimentos pra fora.

    Kael abaixou os olhos por um momento e respirou fundo. Quando voltou a falar, havia dor na sua voz.

    — Lucas… eu sei o quanto você quer ser forte. Eu vi com meus próprios olhos o quanto você se esforça todos os dias. Mas esse poder… esse feitiço… ele vai tomar tudo de você. Eu já vi isso antes. Não é uma magia comum. É magia negra. E a magia negra nunca dá. Ela só tira. Ela consome… devora quem a usa.

    Ele fez uma pausa, e depois soltou, com dificuldade:

    — Se você insistir em usar esse poder… eu não vou poder continuar te treinando.

    Foi como levar um soco no peito.

    As lágrimas começaram a cair sem que eu pudesse impedir. Não era justo. Por que agora? Por que justo quando eu finalmente consegui ser alguém… quando finalmente sou especial? Quando deixei de ser só um fracassado? Agora Kael queria tirar isso de mim?

    — KAEL! Não vem com esse papo de parar de usar minha única chance de ser forte! NÃO VAI ROLAR! VOCÊ TÁ ME OUVINDO?! — gritei, sentindo a dor e a frustração explodirem de dentro de mim.

    Kael se aproximou, ignorando meus gritos, e falou com firmeza:

    — Lucas, você não entende a gravidade disso. A cor da mana que saiu de você mudou… era negra, Lucas. Negra! Isso significa magia negra. Esse tipo de magia só destrói. Ela nunca ajuda. Eu não sei como você tem acesso a ela, mas tem. E é por isso que eu te imploro… não acabe com seu futuro usando isso.

    Então ele me puxou de repente, me abraçando com força, como se quisesse me proteger até de mim mesmo. Minha cabeça encostou no peito dele, e sua mão apertou minha nuca enquanto eu chorava, encolhido.

    — Lucas… se você deixar esse poder de lado, eu te prometo… você vai ficar mais forte ainda. Forte de verdade. Forte o suficiente para proteger a Aiza. Eu juro pra você.

    — Você… promete mesmo? — perguntei, a voz embargada, sem conseguir conter as lágrimas.

    — Sim… eu prometo, Lucas — respondeu ele, olhando para cima, enquanto os primeiros pingos de chuva começavam a cair sobre nós.

    Era como se o próprio céu estivesse sentindo o que eu sentia. Como se o mundo chorasse junto comigo.

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