Capítulo 16 - Refrão
— A morte? Isso é… é…
Ele quase não sabia se aquilo era bom ou ruim. Sério, só ouvir já dava arrepios. Mas, por algum motivo, se sentia forte demais.
— É uma tragédia. Ou… um milagre.
— Milagre?
— Sim — fez uma pose dramática, mão no queixo — Devo te julgar como um futuro guardião. Mesmo que, sabe, ainda ache que vai continuar sendo só um egoísta… ou covarde!
— De novo com essa cantilena? Gr…
Eles se encararam como se estivessem numa competição de quem aguenta mais a paciência do outro.
— Enfim… Agora entendi onde você errou…
— Hã? Errei?
Era difícil acompanhar o que ele queria dizer ou transparecer.
— Seu Eco, olha só que surpresa, se manifesta de três jeitos. Primeiro, como um pulso; depois, vira uma ferida que então só cresce até consumir tudo…
— Que diabos isso tem a ver?
Cruzou os braços, impaciente.
— Que existem três fraquezas, claro. Deduções desse gênio aqui — apontou pra si com um sorrisinho tão convencido que dava vontade de dar um tapinha, só pra equilibrar a humildade — Só de ver seu ataque, tá? Primeiro: ele precisa de espaço, uma certa distância pra pegar impulso, e deixa rastro. Invisível? Talvez. Indetectável? Nem tanto. Segundo: dependendo do tamanho e da energia, começa como uma feridinha infecciosa. Lenta… dá até tempo de revidar antes de virar um estrago completo. E terceiro: a gente não faz ideia se isso tem limite ou não! A muralha era forte, mas era só matéria morta. Sem alma, sem energia, sem reação. Um pedaço de parede não grita nem revida. Entende agora?
— Não… ehr… e por que preciso saber de tudo isso mesmo?
— Porque se eu tô te treinando, é pra encarar o que tem de pior nesse mundo. Aquilo ali era só um sussurro. É tipo o estagiário das trevas. Mas existem uns troços por aí… tão fortes quanto o senhor Elyah. Flagelos, avatares do caos, reis das sombras e todo esse elenco de causar pesadelos.
— Mais fortes? Ehr… então é morte certa pra mim, né?
— Não e sim! — suspirou, revirando os olhos — Vai depender. Tem um milhão de variáveis. Até uns anos atrás, eu era igualzinho a você. Quer saber como fui promovido?
— Deixou o currículo no RH?
— Ha-ha. Não, eu venci um desses. Na raça. O segredo? Estar alinhado com o seu Eco, alcançar o refrão. Isso define o quanto você vai ser útil, ou descartável.
— Refrão? Essa porra é música agora?
— É. Quando o que você sente, pensa e grita pro universo finalmente combina, como uma música que não desafina. Aí sua Aura explode. É aquela sensação de “agora foi”, como adrenalina. E, com sorte, você até invoca um instrumento…
— Tipo o violão do Elyah?
— Exatamente. Aquilo lá não é só um instrumento musical. É a extensão do Eco dele. O mestre atingiu o segundo nível: no seu dialeto o instrumento começa a trocar ideia com o dono. Tipo uma segunda mente. Só que menos dramática… e, convenhamos, bem mais racional.
— Cacete… refrão, instrumento, intenção, expressão… o que mais falta pra aprender? Já tô zonzo de tanta informação…
Igual o leitor dessa jossa.
Suspirou e se jogou no chão, dramaticamente derrotado pela própria ignorância.
Asael cruzou os braços, impassível.
— Só falta mais uma liçãozinha, por ora. Um detalhe pífio, quase irrelevante… mas que muda absolutamente tudo.
— Ah, ótimo. Manda logo antes que minha cabeça exploda.
— A letra da música. Pode ser interpretada em até cinco níveis. O primeiro? A técnica só afeta você mesmo. Um efeito egoísta e barato, quase relaxante. O segundo? Só atinge o oponente. Tipo sua técnica: gasta pouco, faz um estrago honesto. O terceiro? Você e ele, ao mesmo tempo. Aqui já começa a virar novela. Gasto maior, efeito incerto na maioria dos casos.
— Parece minha vida…
— Engraçadinho…
Quase deu dois passos pra trás… e sinceramente, pensou seriamente em desistir.
— Enfim, o quarto? O ambiente. Pode não parecer, mas afetar o cenário ao redor às vezes salva sua pele, ou piora tudo, depende. E o quinto? Ah… o quinto é o caos, atinge tudo e todos no alcance da emissão. Alto custo, alto impacto. Tipo soltar uma bomba…
— Tá… isso não é difícil…
— Será? — Arqueou uma sobrancelha, com aquele sorriso de quem tá prestes a desmontar sua confiança inteira — Sua mente consegue administrar essas afirmações todas? Porque, sabe… a letra não afeta da mesma forma que a expressão, né?
— Ahn? — Claramente pronto pra dar tela azul.
— A letra é imutável. Fixa, absoluta, inegociável. Já a expressão? Essa muda. Depende de quem tá percebendo. Ou melhor, interpretando. Cada um entorta do seu jeito.
— Mas e a ideia original?
— Ah… essa só você tem. É a faísca. O ponto de partida. O resto do mundo tá só tentando decifrar seu enigma mal escrito. Ninguém nunca entende exatamente igual. E, cá entre nós, às vezes nem você entende.
— …Tá, isso complicou.
— Bem-vindo ao meu mundo! Tudo é complicado… até voar aqui…
— Ué… não é só querer?
— Não é só isso. Se você tiver triste, esquece. Sua melodia pesa, o ar vira chumbo… humanos não voam aqui com o coração quebrado.
— Pera… então eu podia ter morrido?
Seus olhos se arregalaram.
— Poderia…
— MALDITO LOIRO!
— Elyah é um irresponsável. Me perdoe, céus do Intermédio, mas ele nunca foi exatamente o símbolo da maturidade. Só de pensar que quase começou outra guerra por sua causa… Você faria isso?
— Pensando aqui… não! Mas que cara doido.
— É, mas não vamos ser fatalistas demais. Enquanto Elohim estiver em pé, podemos fazer a merda que quisermos sem apagar a existência inteira.
— Como assim? O cara do trono lá?
Sua mente coçou mais que a língua de uma velha fofoqueira.
— Ele é tão forte assim?
— Elohim é o fragmento neutro de Elar, o Criador. Enquanto os Deuses e os Nove Reis Sombrios são partes quebradas, ele é o conjunto inteiro. Injusto? Com certeza. Necessário? Totalmente.
— E por que ele não desce a mão nesses caras?
— Porque ele é neutro. Está além. Elohim não olha o presente. Ele vive no futuro. Não tem corpo, não precisa de alma, não dá pra entender. Ele simplesmente… é.
— Que brisa…
— Sim. Então nem tenta entender. Só aceita. Suas ações… estão além da nossa compreensão. Só não pisa demais na bola. O Conselho tem seus limites… e são eles que exigem julgamentos.
— Certo, certo! — se levantou, esticando os braços como quem sai de um sofá — É só não encher o saco dos velhos, né? Se forem como no meu mundo, só o cara ter a pele um pouco mais torradinha já dá cadeia. Mas aqui não tem isso, né?
— Como assim?
— Cor de pele, pô. Aqui não tem racismo, Zé?
— Zé? Denovo isso? Ehr… não me chame assim novamente. Mas não, não julgamos pela cor da pele. Julgamos pela alma. Se sua alma é escura, você é digno de pena… ou desprezo.
— Cacete… racismo de alma? Seloko. E o que significa ter uma alma “mais escura”?
— Pecados. Crimes. Ações que corrompem sua essência.
— Ahhh… tá bom, vai… até que é justo. Estranhamente, mas justo.
— Enfim… agora podemos comer. E amanhã, começamos os treinos físicos. O bastante pra te tornar forte sem depender tanto da sua expressão. Certo?
— Finalmente! Certo! Certíssimo! — os olhos até brilharam, como criança ouvindo “pizza”.
— Vai rolar uma comida de verdade, então? Tipo… arroz, carne, alguma fritura?
— Salada de Lagarta Douraviva. A maior e mais deliciosa especiaria deste mundo!
— Que?
— Lagarta?
— Cê tá de sacanagem comigo, né?
Não estava. Infelizmente.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.