Índice de Capítulo

     O sol ainda não havia despontado no céu quando Baek Jin saiu do seu pátio. A névoa da manhã cobria o solo como um véu translúcido, e os primeiros sons de servos acordando ecoavam ao longe, abafados pela umidade do ar. Seus passos eram firmes, mas lentos, como se cada um carregasse o peso de um objetivo definido. 

    Vestia o manto negro com bordados vermelhos e a capa branca sobre os ombros. A espada curta pendia silenciosa na cintura, como um cão fiel que pressentia que, em breve, voltaria a morder. 

    Seu destino era um dos locais mais sagrados dentro do território do clã Baek: a Biblioteca Espiritual. 

    Localizada atrás do Salão Principal, protegida por formações espirituais e vigiada por dois guardas de meia-idade, a biblioteca era uma construção antiga feita de pedras escuras e janelas finas com cortinas de bambu. O teto curvo em estilo tradicional murim dava ao local uma aura ancestral. Dizia-se que parte das técnicas ali guardadas haviam sido herdadas de épocas anteriores ao surgimento do clã como ele é hoje — tempos de guerra, traições e sangue. 

    Ao se aproximar dos portões, um dos guardas se curvou levemente. 

    — Saudações, Ancião Baek Jin — disse o homem, com voz neutra, porém respeitosa. — A biblioteca está à sua disposição. O Patriarca já enviou uma autorização especial para acesso ao Salão Interno. 

    Baek Jin apenas assentiu, passando pelos portões sem palavras. 

    O interior da biblioteca era silencioso como um templo. Estantes altas se erguendo até o teto guardavam centenas de pergaminhos de todas as formas. Algumas técnicas estavam preservadas em jade espiritual, outras escritas à mão por mestres do passado. O cheiro de tinta antiga e madeira envernizada preenchia o ar. O tempo ali parecia correr mais devagar. 

    Dividida em três seções principais — Técnicas Regulares, Técnicas Avançadas e Técnicas Secretas —, a biblioteca representava o legado de gerações de cultivadores. 

    Baek Jin se dirigiu primeiro à seção de Técnicas Regulares. 

    As técnicas naquele mundo não eram organizadas em níveis específicos como Rank C, B ou S. Em vez disso, eram reconhecidas e respeitadas por sua eficácia e dificuldade de execução. Algumas eram técnicas simples, utilizadas por iniciantes. Outras, verdadeiros monstros de energia e controle espiritual, capazes de destruir uma seita inteira nas mãos erradas. 

    Entre os pergaminhos disponíveis, Baek Jin escolheu dois. 

    O primeiro era o “Passo Sombrio”, uma técnica de movimento que distorcia a presença do cultivador, fazendo-o desaparecer momentaneamente da percepção comum. Não era um teleporte verdadeiro, mas usava a manipulação da sombra e do Qi para criar falsos passos, confundindo a mente e os sentidos do inimigo. 

    O segundo era o “Sentido Divino”, uma arte espiritual de percepção que aumentava a sensibilidade do cultivador ao Qi e às intenções hostis ao seu redor. Permitia sentir presenças ocultas, ataques iminentes e até mesmo detectar mentiras em conversas. 

    Baek Jin sentou-se em uma das mesas de meditação e passou horas estudando os diagramas, memorizando os fluxos e as rotas de circulação de Qi. Sua mente, afiada pela experiência de duas vidas, absorvia o conteúdo com facilidade. As técnicas regulares, embora úteis, eram apenas preparativos. 

    Seu verdadeiro objetivo estava além. 

    Na parte mais oculta da biblioteca, atrás de um biombo pintado com um dragão de jade envolto em chamas, ficava a Seção de Técnicas Secretas

    Mesmo entre os anciões, poucos tinham permissão para acessar aquele setor. Mas Baek Jin agora era um deles. 

    Lá dentro, guardado dentro de uma caixa de ferro negro selada por três camadas de talismãs protetores, repousava o pergaminho da técnica mais poderosa já criada por um cultivador do clã Baek: 

    “Técnica das Mil Lâminas da Tempestade”

    Dizia-se que, quando completamente dominada, essa técnica invocava mil lâminas espirituais que surgiam como pétalas de sangue durante uma tempestade, caindo com velocidade e fúria incontroláveis sobre o inimigo. Era uma dança de destruição tão bela quanto letal — um verdadeiro pesadelo para quem estivesse do outro lado. 

    O pergaminho era espesso, com caracteres antigos escritos com sangue e Qi condensado. A complexidade da técnica era absurda: exigia precisão no controle de energia, uma alma refinada e, acima de tudo, frieza suficiente para ativar um ataque de morte em área sem hesitação. 

    Baek Jin, sentado diante do pergaminho, começou a absorver lentamente os segredos daquela arte. 

    Horas passaram. 

    A luz que entrava pelas janelas já não era a mesma. O sol agora brilhava forte no céu, mas dentro da biblioteca, apenas a luz espiritual das velas especiais se mantinha constante. Seu rosto estava banhado de suor, e sua respiração oscilava levemente. O processo de memorização de uma técnica como aquela não era algo que um cultivador comum pudesse sequer tentar. 

    Mas Baek Jin não era comum. 

    Ao final da tarde, ele fechou os olhos e murmurou, quase como um voto silencioso: 

    — A próxima vez que levantar minha espada… será com mil lâminas ao meu lado. 

    Ele se levantou, recolheu os pergaminhos das técnicas regulares, e guardou o conhecimento da tempestade sangrenta apenas em sua mente. Nenhum erro, nenhuma cópia. Nada que pudesse cair em mãos erradas. 

    Ao sair da biblioteca, os guardas mais uma vez se curvaram, mas não disseram nada. Havia algo diferente no olhar do novo ancião. Um brilho frio, como a lâmina de uma espada prestes a ser desembainhada. 

    Ele havia plantado mais uma semente. E quando germinasse… o mundo veria o florescer de um cultivador capaz de fazer as nuvens sangrarem. 

    … 

    O primeiro dia do novo ano começou com o soar grave dos tambores cerimoniais. Ecos reverberaram pelas montanhas que cercavam o clã Baek, como se até mesmo os céus quisessem testemunhar o recomeço. A névoa matinal se dissipava lentamente, revelando os vastos campos de treinamento onde centenas de jovens — vindos de vilarejos distantes, famílias de cultivadores pobres ou até de regiões nômades — aguardavam ansiosos pelo início das avaliações. 

    Cada um trazia consigo a esperança de um futuro. Alguns tinham olhos firmes e postura treinada, outros tremiam como folhas ao vento. Mas todos compartilhavam o mesmo desejo: tornar-se discípulos do lendário clã Baek. 

    Vestido com o manto de ancião, com a insígnia escarlate bordada no peito e a espada curta presa nas costas, Baek Jin caminhava em silêncio pela passarela de madeira que margeava o campo. Seus passos não faziam ruído algum, e seu olhar era calmo como a superfície de um lago congelado. 

    — Saudações, Ancião Baek Jin! — cumprimentaram dois discípulos encarregados da organização do evento, curvando-se com reverência. 

    Ele apenas acenou com a cabeça, posicionando-se sobre uma plataforma de pedra elevada onde outros anciãos já o aguardavam. Entre eles, os mais antigos trocavam olhares vagos e sorrisos forçados, enquanto alguns anciãos mais novos discutiam discretamente sobre os candidatos promissores que observaram nos últimos dias. 

    O Patriarca, Baek Mu-Hwan, fez sua aparição no centro da plataforma com sua típica postura serena. Seus olhos, ocultos por uma leve cortina de Qi espiritual, varreram os discípulos em formação. 

    — Como é tradição do Clã Baek — começou o Patriarca, sua voz leve mas penetrante como o vento cortante das montanhas —, o novo ano abre as portas para jovens que desejam se juntar ao nosso legado. Aos anciãos aqui reunidos, relembramos: todos deverão escolher ao menos um discípulo não-nomeado. Guie-os, treine-os e, se assim decidirem, nomeiem-nos no tempo devido. 

    Baek Jin escutava, mas seus pensamentos estavam mais voltados ao campo do que às palavras. Ele observava atentamente cada movimento dos jovens. Seus olhos enxergavam além das aparências, lendo os fluxos de Qi, os gestos inconscientes, a forma como os pés tocavam o chão e como cada um sustentava seu próprio peso. 

    Subitamente, sentiu um calor abrasador subir por sua espinha. 

    O terceiro portão interno já havia sido rompido em meio ao estudo solitário das técnicas da biblioteca… 

    Mas agora, em meio àquele ambiente saturado de emoções, expectativa e Qi pulsante dos jovens cultivadores, algo dentro de si rugia. 

    O quarto portão… Está prestes a se abrir. 

    Baek Jin fechou os olhos por alguns segundos. Em sua mente, as correntes que selavam o quarto portão vibravam intensamente, quase suplicando para se romperem. Seus meridianos pulsaram com força, e uma breve aura dourada escapou por seus poros antes de ser contida com violência. 

    “Mais um passo,” pensou, com a expressão inalterada. “O preço por força nunca foi baixo… Se eu tiver que queimar o pouco que resta de mim, que assim seja.” 

    — Ancião Baek Jin, tudo certo para iniciarmos os testes? — perguntou uma voz ao seu lado. Era o Ancião Baek Woo, um homem baixo e robusto, com sobrancelhas espessas e expressão severa. 

    — Comece — respondeu Jin, sua voz tão fria quanto o vento da madrugada. 

    As provas começaram. 

    O primeiro desafio era de pura resistência física: correr vinte voltas completas nos campos de treino íngremes, seguidas por exercícios de controle de Qi. Em seguida, testes de percepção, artes marciais e domínio da espada ou lança. Não bastava talento bruto — o Clã Baek exigia disciplina, inteligência e espírito de luta. 

    Baek Jin observava sem emitir um som. Seu olhar era mais cortante do que qualquer espada. Quando um garoto de cabelos brancos naturais e feições pálidas demonstrou controle de Qi digno de um discípulo interno, Baek Jin fez uma anotação silenciosa. Quando uma jovem com olhos escarlates demonstrou uma técnica rudimentar de passo sombrio, embora desajeitada, seus olhos brilharam levemente. 

    No fundo, ele não buscava apenas talento. Procurava a mesma chama que ele carregava dentro de si: a vontade inquebrável de lutar contra o destino, de sobreviver mesmo em meio ao caos. 

    Horas se passaram. O campo já estava mais vazio. Dos duzentos candidatos, menos de trinta permaneciam firmes. 

    E foi então que aconteceu. 

    Um rapaz franzino, com roupas simples e uma expressão marcada pelo sofrimento, levantou-se para enfrentar o boneco de testes espirituais — um autômato de madeira reforçado que exigia controle de Qi e coragem para vencer. 

    O garoto não gritou. Não fez movimentos exuberantes. Mas com um soco, seu Qi explodiu num raio tênue e certeiro, trincando o tórax do boneco. 

    O impacto foi pequeno, mas puro. Sem desperdício. Sem hesitação. 

    Baek Jin estreitou os olhos. 

    — Nome? — perguntou em voz baixa, atraindo a atenção do discípulo responsável pelas anotações. 

    — Chama-se Yoo Tae-Min. Dezessete anos. Sem origem de linhagem conhecida. Veio sozinho das planícies orientais. 

    Jin não respondeu. Mas em sua mente, uma certeza se firmava: Dragões Escondidos e Tigres Agachados… até mesmo entre o barro, pedras espirituais podem nascer. 

    Ao final do dia, quando os outros anciãos já discutiam suas escolhas e disputavam promissores discípulos internos, Baek Jin desceu da plataforma. 

    Diante de Yoo Tae-Min, apenas disse: 

    — A partir de agora, você treinará sob minha tutela. Não exijo que me chame de mestre. Mas espere sofrimento. E… crescimento. 

    O garoto tremeu levemente, mas seus olhos brilharam com algo mais forte que medo. Ele se curvou. 

    — Sim, Ancião! 

    Enquanto o sol se punha atrás das montanhas, tingindo o céu com tons de fogo e sangue, Baek Jin olhou para o horizonte uma última vez naquele dia. 

    Dentro de seu corpo, o fluxo de Qi rugia com fúria. Os meridianos se expandiam lentamente. As veias espirituais vibravam em um compasso novo. Um som ecoou em sua mente — como uma porta de ferro se rompendo. 

    O quarto portão interno se abrira. 

    Uma onda de Qi avassaladora percorreu sua espinha, alcançando cada célula, cada fio de alma. Era como renascer sob uma tempestade de aço e trovões. 

    Baek Jin apertou os punhos. 

    “Se eu tiver que matar mil homens para manter este nome… que seja. Se para continuar subindo eu tiver que abandonar o que resta da minha humanidade… então que minha sombra caminhe sozinha.” 

    E o céu trovejou. 

    … 

    A névoa da madrugada mal começava a se dissipar quando os gritos ecoaram pelos campos de pedra bruta do Clã Baek. 

    — De novo! — bradou Baek Jin, sua voz cortando o ar como um chicote invisível. 

    Yoo Tae-Min ofegava ajoelhado, com sangue escorrendo de seus punhos cobertos de feridas abertas. Seu corpo franzino tremia, mas seus olhos escarlates, manchados pela exaustão, ainda continham a centelha da vontade. 

    — S-sim, ancião… — respondeu ele, erguendo-se lentamente. 

    A lua ainda pairava alta no céu, indiferente ao sofrimento dos homens abaixo. Tae-Min não sabia se já era o terceiro ou o quarto dia desde que sua rotina de treinos começara com Baek Jin. Desde então, não havia mais manhãs calmas nem noites de sono. Apenas dor. Apenas ordens. Apenas ele, seu corpo quebrado, e o olhar gélido de um homem que parecia nunca piscar. 

    — Você acha que está sofrendo? — perguntou Baek Jin, caminhando lentamente pelo campo de rochas. 

    O chão rachado e repleto de marcas de combate servia de palco para a construção de uma alma. Tae-Min cambaleava, tentando manter-se em pé, o peito arfando em busca de ar, enquanto sentia as pernas prestes a cederem. 

    — Isso é só o começo. 

    O golpe veio sem aviso. Uma palma direta no estômago, carregada de Qi, projetou Tae-Min para trás, fazendo-o colidir contra um bloco de pedra e tossir sangue. Mas ainda assim… ele não desmaiou. 

    — Levante-se. 

    E ele se levantou. 

    Seu passado, por mais cruel que fosse, nunca o havia matado. Nem quando viu sua mãe sendo arrastada pelos cabelos por homens com armaduras sujas de vinho. Nem quando foi forçado a fugir pelos campos gelados com o corpo do irmão mais novo já sem vida em seus braços. Nem quando, por meses, sobreviveu em esgotos alimentando-se de ossos e migalhas. Ele ainda estava ali. E agora tinha um mestre. Um verdadeiro mestre. 

    Baek Jin observava. 

    “Esses olhos…” — pensou ele — “não pertencem a um garoto.” 

    Por um momento, os ecos do mundo anterior de Baek Jin lhe invadiram a mente. Jogos, sistemas de pontos, vidas reiniciadas. NPCs descartáveis. 

    Mas aqui? Não havia reinício. Não havia tela de carregamento. 

    Ali estava Yoo Tae-Min. Um garoto de verdade. Um ser humano que sentia dor. Que perdera tudo. Que carregava nos olhos uma sede de justiça — ou vingança — mais afiada do que qualquer espada. 

    — Ataque-me. — ordenou Baek Jin. 

    Tae-Min hesitou por meio segundo, mas o instinto falou mais alto. Seus pés deslizaram com um resquício do Passo Sombrio que aprendera observando os movimentos de Jin. Avançou com um soco carregado de fúria. 

    Baek Jin desviou como se fosse vento. Mas não contra-atacou. Apenas falou: 

    — Canalize sua raiva. Ela é sua espada. Mas sem controle, você é só mais um cachorro selvagem. 

    — C-cachorro?! — Tae-Min gritou, os olhos tremendo. 

    — Sim. E cães raivosos são abatidos cedo. 

    Os treinos continuaram. Golpes. Quedas. Qi forçado ao limite. Meditação entre pedras geladas. Banhos em rios congelantes antes do amanhecer. A todo momento, Tae-Min era levado à beira da morte. 

    — Você tem talento. Mas talento só leva ao túmulo se não for lapidado. 

    — Sim, ancião… — repetia Tae-Min, como um mantra. Cada sílaba era acompanhada por sangue, suor ou lágrimas. 

    À noite, Tae-Min ficava de joelhos diante de Baek Jin, com os olhos semicerrados pela exaustão. Era nesse momento que Baek Jin falava. 

    — Escute. Hoje você começou a compreender o “Sentido Divino”. Sentiu aquele instante antes de eu te acertar? A leve mudança no fluxo do vento? Isso… é o início. 

    — E-eu senti… foi como se meu corpo soubesse antes de mim… 

    — Exato. Mas ainda é rudimentar. Em batalha, é a diferença entre a vida e a morte. Continue afiado. Continue alerta. Viva assim. 

    Tae-Min, mesmo sangrando, sorriu. 

    Não havia conforto. Mas havia propósito. 

    E pela primeira vez, Baek Jin sentiu algo… diferente. Um eco dentro de si. Não era orgulho. Era uma memória. 

    “Talvez… eu também tivesse olhos assim um dia.” 

    O céu noturno os envolveu, estrelado e silencioso. 

    E Tae-Min adormeceu ajoelhado, com o corpo rasgado, mas com a alma sendo moldada como aço. 

    Baek Jin apenas observou. 

    Em silêncio, sentou-se na pedra atrás do campo e fechou os olhos. 

    “Este mundo… é real. Muito mais real do que o outro. Aqui, cada escolha deixa cicatrizes.” 

    E, nas sombras daquela noite, o Ancião e o Discípulo compartilharam algo que nem mesmo os céus podiam compreender: a vontade inquebrável de sobreviver. 

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