Capítulo 32 — vozes do passado
Ai… Caio de costas na terra batida, suado, com o corpo inteiro latejando. Minhas mãos estão esfoladas, e os braços mal respondem. O som do meu próprio coração parece martelar em meus ouvidos. Acabei de terminar mais uma sequência exaustiva de golpes com Kael, e meu corpo já não aguenta mais. Respiro ofegante, como se o ar estivesse rarefeito, tentando desesperadamente encher os pulmões queimando de dor.
— Levante-se. — diz Kael, impassível, a espada de madeira ainda firme em sua mão. Seu olhar é duro como pedra, a postura reta como a de um guerreiro em campo de batalha.
— Kael… pelo amor dos deuses… — gemo, sentando com dificuldade. — Eu tô morto, nem sinto mais minhas pernas… Vamos fazer uma pausa… ou… sei lá, me deixa treinar magia hoje, igual a Aiza. Ela tá ali só sentada naquele tronco!
— EI!!! — a voz de Aiza ecoa. — Eu também tô treinando, tá?!
Olho em sua direção. Ela está sentada em posição de meditação, com os olhos fechados e as mãos sobre os joelhos. Uma leve aura azulada pulsa ao redor de seu corpo. Apesar da tranquilidade aparente, gotas de suor escorrem por sua testa.
— Lucas, Aiza está armazenando mana. Algo que você já aprendeu. — explica Kael com paciência firme, como quem ensina uma lição pela milésima vez. — Mas você avançou. Agora precisa aprender a fazer isso enquanto se move. Enquanto luta. O mundo real não espera você meditar para agir.
— Mas por que sempre lutando com você?! Por que não enquanto luto com monstros fracos? Ou enquanto… sei lá, ando por aí? — reclamo, erguendo os braços, exausto.
— Porque lutar exige foco, controle e instinto. — diz ele, se aproximando. — Se dominar isso durante uma batalha, dominará em qualquer situação.
— Tá, tá… já entendi. — murmuro, esfregando os olhos. — Mas e a Laila? Ela acha que pode fugir do treino só porque não acerta nada direito?
THWACK!
Kael bate com a espada de madeira no topo da minha cabeça. Não forte o suficiente pra machucar de verdade, mas com firmeza o bastante pra arrancar um grito de dor.
— AI! Isso doeu! — reclamo, massageando o local.
— Pare de reclamar. — diz ele com os olhos semicerrados. — Laila está treinando separadamente hoje. As habilidades dela são diferentes. Mandei-a para um exercício específico, mais profundo na floresta.
Antes que eu possa retrucar, o silêncio da clareira é rasgado.
AaaaaaaaaAAAAAAAAAAHHHH!!!
Um grito. Agudo. Dolorido. Vindo do nada.
Por um instante, o tempo parece parar.
Os pássaros fogem das árvores, voando em bandos desesperados. O som ecoa entre os troncos como uma lamúria de outro mundo. O vento, que antes soprava levemente entre as folhas, cessa de repente, como se até a natureza prendesse a respiração.
— O… o que foi isso?! — Aiza grita, desequilibrando-se do tronco e caindo de lado. Seus olhos estão arregalados, o corpo tremendo. — Aquele grito… parecia…
Eu congelo. O som ainda ressoa na minha cabeça como um eco distante. É um grito humano. E eu o reconheço.
Meu coração dispara. As veias pulsando no pescoço. A garganta seca.
Era Laila.
Antes que eu possa dizer qualquer coisa, Kael gira o rosto na direção do som. Os olhos dele se arregalam.
— LAILA! — ele ruge. E, em um único movimento, parte floresta adentro, tão rápido que o vento parece ser arrastado com ele.
Ficamos ali, paralisados por alguns segundos. O som do grito ainda ecoa na clareira. Um arrepio percorre minha espinha.
Algo está errado. Muito errado.
O treino acabou.
Agora é real.
Laila… Laila… Laila…
Seu nome não para de martelar no fundo da minha mente. Antes, meu coração batia acelerado por causa da dor do treinamento. Agora, ele dispara por algo muito pior: medo. Medo e angústia de não estar lá para ajudar a Laila, seja lá o que esteja acontecendo com ela.
Começo a virar a cabeça para os lados, desesperado, tentando pensar no que fazer. Meus olhos vasculham o ambiente até que, de relance, percebo algo… Aiza. Ela começa a flutuar, envolvendo-se com magia.
— A-Aiza! O que você está fazendo?! — pergunto, com a voz embargada pelo medo.
— Não é óbvio?! Eu tô indo ajudar a Laila! — grita ela, chorando, com a voz embargada de pânico.
— Mas pode ser perigoso! O Kael já tá indo! — tento convencê-la, mais desesperado do que racional.
— Não importa se é perigoso ou se o Kael já foi! — ela rebate, com firmeza na voz, mesmo em meio às lágrimas. — Lucas, ela é minha amiga! Na verdade… ela já é da minha família. Não posso ficar parada, de braços cruzados, enquanto minha melhor amiga tá em perigo!
Sem dizer mais nada, Aiza se lança pelo céu, usando o fogo para se impulsionar com violência na direção da floresta, como um cometa em chamas. Em poucos segundos, desaparece entre as árvores.

E eu fico ali… parado. Congelado. Sem saber se corro atrás.
Merda… merda… Eu sou um bosta.
Quero ajudar a Laila. Quero correr atrás de Aiza. Mas não consigo. Não dá. Meu corpo simplesmente não obedece.
Quero me mover, mas minhas pernas estão presas. Nem mesmo um pensamento claro consigo identificar.
O que eu faço…? — penso, enquanto lágrimas escorrem lentamente pelo meu rosto.
— AAAAAAAH! — grito, tomado por raiva. Raiva de mim mesmo. Ódio por não ser útil, por não ter coragem de ir ajudar… nem mesmo minha amiga. Só consigo ficar aqui parado, enquanto os outros fazem o que eu deveria fazer.
— Fica tranquilo… Ela já tá bem. Não precisa ir ajudar ela. — diz uma voz desconhecida atrás de mim.
Me viro num sobressalto. Mas, ao mesmo tempo, tudo ao meu redor muda. O cenário desaparece e é substituído por um branco total, como se o mundo tivesse se apagado.
Então… vejo.
E o que vejo me assusta mais do que qualquer outra coisa.
Não é um estranho. Na verdade, é alguém que eu conheço melhor do que qualquer um — neste mundo ou no meu antigo.
Alguém desprezível. Alguém que nunca se importou com ninguém além de si mesmo. Alguém que nunca fez nada de bom na vida, que só atrapalhava e sabia reclamar.
Era eu.
Lá estava eu, diante de mim mesmo.
Mas não o eu de agora… era o antigo eu.

— O que você falou…? — pergunto, perplexo, sem reação, com um olhar carregado de desprezo.
— Isso nem é problema seu. Pra que perder tempo ajudando aquela putinha? — ele cospe as palavras com nojo. — Aliás, o que você tá fazendo aqui, hein? Você me dá vergonha. Nossa vida era mil vezes melhor antes. Agora olha pra você… ajudando esses otários? Sério? Já esqueceu como era bom só nós dois, jogando no PC, sem se importar com ninguém? E agora vem querer bancar o herói? Patético.
O que você falou da Laila? — minha voz treme, cheia de raiva.
— Tá bravo? Só porque eu disse umas verdades? Relaxa. Lembra de quando a gente ficava excitado vendo vídeo pornô e se aliviava escondido?
Cala a boca… — sussurro, trincando os dentes, o sangue fervendo.
— Ah, qual é… não gostou de lembrar? Vai dizer que essa vida aí — onde você vive correndo atrás de gente que nem liga pra você — é melhor do que quando a gente só se divertia com nossos amigos? Hein?
Eu nunca mais quero voltar pra aquela rotina nojenta. — minha voz sai firme, seca. — Aquela vida vazia, onde tudo que a gente fazia era falar merda e fingir que tava tudo bem. Eu não tinha escolha antes. Mas agora tenho. E escolho mudar. Vai embora. Você é só um reflexo podre de quem eu era.
— Agora vai bancar o moralista, Lucas… ou devo dizer Eduardo? Acha que mudar de nome apaga quem você é? Você é um fraco. Um lixo. Um peso morto que ninguém suporta. Sabe qual é sua única habilidade? Ficar trancado num quarto fedorento, jogando até esquecer que é um merda. E sabe como eu sei disso? Porque eu sou você. E você é eu. E a gente nunca vai mudar. Não adianta fugir.
Ele se aproxima, me encarando com um sorriso sujo.
— Eu sei o que você sente. Sei da inveja que você tem da Aiza. Da raiva. Sei como você se arrepende de ter trazido a Laila com vocês. E o Kael? Você queria que ele morresse, não é? Por te quebrar dia após dia.
Você… tá errado. — minha voz sai baixa, mas carregada de convicção. — Sim, às vezes eu tenho raiva da Aiza. Ela é melhor que eu. Mas eu a amo. Ela é minha irmã. A pessoa mais importante da minha vida. E a Laila… pode não ser útil agora, mas eu acredito nela. Sei que um dia ela vai nos mostrar por que está aqui.
Dou um passo à frente, o encarando com firmeza.
E o Kael… eu odeio como ele me faz sentir fraco. Mas respeito ele por acreditar que eu posso ser mais. Se você pensa esse monte de lixo deles, então você nunca foi eu. Talvez um dia eu tenha sido como você. Mas isso já morreu. Você devia ter vergonha de se dizer parte de mim.
— Hahaha… pode tentar enganar os outros, pode até se esconder atrás desse novo nome. Mas nunca vai enganar a mim, Eduardo.
E então, eu pisco.
E tudo desaparece.
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