O mundo… estava em silêncio.

    Meus olhos abriram devagar. Ainda havia fuligem no ar, como se a noite estivesse morrendo aos poucos. Estava deitado sobre o que antes talvez fosse uma estrada. A terra estava quente, endurecida pela cinza, e um gosto metálico me pesava a língua.

    Levantei-me com esforço. Meu corpo estava intacto, mas uma sensação incômoda percorria a pele — como se formigas caminhassem por cada centímetro, incessantes. Era como se cada fibra minha tivesse sido escavada, arrancada e recolocada à força. Tentei lembrar o que me trouxera até ali. O que havia acontecido? Como tudo terminou assim? Qualquer fragmento de memória… qualquer coisa.

    Nada.

    O vazio respondia todas as perguntas com a mesma mudez sufocante.

    Caminhei. Trôpego, lento, cambaleando entre restos de construções partidas. Alguns pedaços ainda fumegavam. Lascas de pedra me arranhavam os pés. O calor do chão me queimava as solas. Havia corpos… ou melhor, estátuas cinzentas, imóveis, algumas deformadas, como se tivessem petrificado no exato instante de um grito. 

    Tentei não olhar.

    No centro daquele silêncio morto, uma canção.

    Uma voz infantil… suave. Carregada de um peso que nenhuma criança deveria suportar.

    Me guiei por ela.

    Ela estava sobre uma pedra grande, o que um dia talvez tivesse sido parte de um altar ou de uma lareira. Sentada, com os joelhos abraçados, seus cabelos brancos ondulando no vento da alvorada que se aproximava. Uma auréola brilhava, pálida e delicada, pairando acima de sua cabeça como uma lua esquecida no céu.

    Ela me olhou.

    E continuou a cantar.

    O mar aos céus,
    Ilumina o caminho
    Me perdi,
    Pois a falsa cruz eu segui.

    Você jurou,
    Jamais me deixar…
    Mas se perdeu onde a cruz se calou.

    Crux se estendeu

    Com luz a brilhar,

    Fez do perigo

    Um colo pra estar.


    Vega acendeu

    As cores do céu,

    Pintou nas nuvens

    Um sonho fiel.

    Orion rugiu

    No sopro do ar,

    Chamou os valentes

    Pra sempre lutar.

    Zeta soprou

    Segredos do ar,

    Com mil perguntas

    A se revelar.

    Lyra tocou
    Um acorde tão terno
    Que fez do silêncio
    Um canto eterno.

    Para onde vão
    As estrelas que somem?
    Será que se escondem
    Ou mudam de nome?

    Será que elas dormem
    Por trás do luar?
    Ou caem bem quietas
    No fundo do mar?

    Talvez esperem
    Por quem vai chamar…
    Talvez só brilhem
    Quando alguém sonhar.

    Mas se um dia…

    Quando ela terminou de falar, a aurora enfim rompeu. Como se esperasse apenas por aquela última nota para nascer.

    O céu se abriu numa faixa tímida de azul e dourado, derramando luz sobre os fragmentos carbonizados do vilarejo.

    Eu me aproximei dela.

    Ela não recuou.

    — Quem é você? — perguntei.

    Ela abaixou os olhos. Marcas secas de lágrimas riscavam seu rosto sujo de cinzas.

    — E-Eu… não sei — sua voz era hesitante  — mas… sinto que você é bonzinho.

    Demorei a responder. Por dentro, um frio pulsava. Aquele “confiar” soava mais como intuição do que certeza. Mas, naquele momento, era tudo o que tínhamos.

    — Está com fome? — perguntei, sem saber por quê.

    Ela assentiu com a cabeça.

    — Eu… também.

    Olhei ao redor. Não havia comida, nem abrigo, nem roupas adequadas.

    Nada.

    Apenas uma bolsa — uma que eu carregava comigo.

    Espere… essa bolsa sempre esteve aqui?

    Como só percebi agora?

    Talvez o peso dela tenha se misturado ao do meu corpo dormente.
    Ou talvez minha cabeça, atordoada, tivesse decidido ignorá-la até agora.

    Ela estava ali, caída ao lado de minha perna, como um cão exausto. Era feita de um couro escuro e retorcido, como se tivesse sido costurada às pressas com material que não queria ser costurado.E o mais estranho; no lugar do zíper, havia uma fileira de dentes afiados, cerrados num sono inquieto. 

    A cada pequeno movimento, a bolsa babava — uma saliva espessa escorria do canto da “boca”, como se estivesse dormindo… ou sonhando com algo faminto.

    Afastei instintivamente a mão, arrepiado.

    Não sabia se ela era minha.

    Não sabia se estava viva.

    Mas, naquele instante, parecia tão parte de mim quanto o frio que pulsava dentro do peito.

    Sei lá.

    Havia coisas mais importantes a se perguntar. Como…

    — Você… tem um nome? — perguntei.

    Ela levantou os olhos.

    Havia algo indecifrável neles — algo como esperança, medo… e saudade, tudo ao mesmo tempo.

    — Halo. F-foi o homem gandão que me deu esse nome.

    — O homem grandão? — repeti.

    Ela assentiu em resposta.

    — Ele me protegeu até o fim.

    Então apontou para o horizonte.

    Segui seu olhar.

    Ali, cravada ao chão como uma lápide viva, uma grande cruz permanecia fincada, imóvel. Um brilho dourado a envolvia como uma prisão. Sombras vivas se contorciam dentro, esmagadas, contidas… seladas. Era como se aquele monumento estivesse contendo um cataclismo inteiro com sua mera presença.

    Eu não sabia o que aquilo significava, mas soube, com um arrepio que me percorreu a espinha, que não devíamos tocá-la.

    Havia algo naquela presença… algo que não era para ser alcançado com mãos humanas.

    Halo apertou os pequenos punhos contra o peito, os olhos marejados tentando encontrar coragem onde mal havia força para ficar de pé. Sua voz, quando veio, era apenas um sopro quebrado entre os lábios:

    — E-ele falou… que… que daria t-toda a es… es… esperança dele… pra você…

    Cada sílaba parecia doer nela, como se as palavras carregassem um fardo antigo demais para uma criança tão pequena. A esperança dele — fosse lá quem “ele” fosse — agora pesava sobre mim como uma sentença.

    E, de repente, o silêncio ao redor parecia mais denso que a fumaça do mundo em ruínas.

    Em mim?

    Por que alguém iria tão longe… por mim?

    O que há em mim que justifique tanto?

    O que, afinal, eu tenho de tão importante?

    Como ainda estou vivo, mesmo com toda essa destruição ao redor?

    Eram perguntas demais. E nenhuma resposta.

    Mas, no instante em que tentei buscá-las, minha pele foi tomada por uma camada fina de um frio medonho.

    Um arrepio gélido percorreu minha espinha, meus olhos estalaram…

    E então agarrei os braços daquela criança em súplica, porque havia algo que me assombrava ainda mais do que o cenário ao meu redor:

    — Halo… quem sou eu?!

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