O sangue de Victoria, minha parceira dragão, fazia um desenho rubro pelo chão de pedra enquanto meu tio, Danibor, andava em minha direção. Suas botas pisavam no líquido e deixavam um rastro para trás conforme ele se aproximava de mim. A espada de nossa família em sua mão direita, pronta para me matar.

    Somos nahuales. Criaturas ligadas à natureza com uma forte conexão feérica. Isso fica evidente em suas orelhas pontudas, iguais às minhas. A idade nos alcança de forma diferente dos humanos e, seus cabelos grisalhos, indicam que ele é velho até mesmo para os padrões de nossa raça.

    — Ela era a nossa melhor chance de vencer a guerra! — Ele gritou, uma veia saltando em sua garganta. — E você me fez matar ela. — Cerrou o maxilar, parando na minha frente. — Então eu vou matar você também.

    Quando ele para na minha frente, apesar de eu ainda estar de pé, parece que estou sentada. Uns trinta centímetros maior do que eu, seus ombros largos apenas aumentam sua imponência enquanto ele me olha de cima.

    Eu sei que vou morrer.

    Aperto os meus punhos com força, amaldiçoando minha fraqueza. Até despertar Victoria, eu nunca dediquei mais do que um minuto de treino em minha vida. Mal sabia segurar uma faca sem me cortar.

    Travo os dentes, contendo a raiva.

    — Se ela fosse a minha conexão, não a sua… Eu salvaria o mundo! — Ele grita novamente, um pouco saliva voando em meu rosto.

    Victoria era a minha conexão. Era a minha parceira. Minha amiga. E ele a enxergava apenas como uma arma.

    A linha tênue, o caminho que nos mantinha conectado, não estava mais ali. Não conseguia enxergar o outro lado e alcançar aquela consciência que havia ficado o último ano inteiro comigo.

    O ódio me desperta, servindo de combustível para acender a necessidade de vingança que surge dentro de mim como uma necessidade visceral de matar aquele homem.

    Alcanço a adaga embainhada em minhas costas, na altura da lombar, e o ataco. Um movimento rápido desenha um corte horizontal de fora para dentro, mirando sua garganta.

    Eu posso ter tido apenas um ano de treino, mas até um soldado inexperiente é capaz de derrotar um poderoso general se conseguir lhe ferir no lugar certo.

    Ele segura meu pulso no meio do caminho, impedindo que a lâmina alcançasse seu ponto vital. Sem tirar os olhos de mim, ele torce meu braço e a adaga cai no chão, o barulho de metal se chocando com a pedra aos nossos pés.

    Há alguns anos ele sofreu um grave ferimento em batalha e todo o lado direito do seu corpo, do pescoço até a cintura e os braços, são acinzentados. Quando ele me aperta, seus dedos parecem feitos de rocha.

    Eu grito de dor, tentando me afastar dele, mas sua pegada firme me mantém presa pelo braço. Tento mexer os dedos da mão capturada e falho, uma nova onda de dor percorrendo meu braço e me fazendo desistir imediatamente.

    — Você precisaria treinar mais uns dez anos antes de conseguir sequer levantar uma arma contra mim.

    Uma dor aguda suplanta aquela que sinto no membro superior quando sua espada atravessa meu estômago. Só então ele solta meu braço e me deixa cair no chão, a espada ainda fincada em mim.

    Olho para baixo, vendo parte da lâmina e a empunhadura dela. O sangue molha minha barriga e logo sinto que sobe pela garganta também, invadindo a cavidade bucal.

    Por mais que eu tenha tido apenas um ano de treinamento, acredito não existir treinamento nenhum que seria capaz de me preparar para aquela dor. Quando eu tento respirar, a lâmina parece achar um novo espaço para cortar e eu me concentro em respirar devagar, mas sentindo que meu corpo precisa de mais oxigênio.

    Ele se abaixa até ficar na minha altura, apoiando-se sobre os próprios calcanhares enquanto busca o contato visual. Seus olhos são verdes, um verde intenso e brilhante. Nossa família, os Veridions, somos especiais entre os nahuales por conta da nossa herança ocular. Nossos olhos não são simplesmente verdes, são como esmeraldas que brilham quando concentradas em energia prismática. O chamamos de veridianos.

    Essa habilidade nos permite enxergar o fluxo de vida das pessoas, seus sentidos vitais e criar conexões entre criaturas vivas. É assim que nossos pais nos ligam a um familiar quando ainda somos crianças. Crescemos ao lado de uma fera e, quando despertamos nossos olhos, a conexão se estabelece para sempre.

    E é claro que eu não consegui despertar a minha, mesmo em meus vinte e dois anos, quando todos costumam despertar por volta das quatorze ou quinze. E por isso, meu pássaro-relâmpago não está aqui agora. Quando ele se tornou um adulto e viu que eu não iria despertar, me abandonou.

    Mais uma vez amaldiçoo minha incapacidade. Quero gritar com a Ellarien do passado, aquela menina mimada que não se esforçou em nada, vivia brincando pelo castelo e que se transformou em quem eu sou hoje. Uma inútil.

    O ódio e a vontade de me vingar brigam com a escuridão que cerca minha visão e ganha espaço cada vez mais. A dor em meu estômago sendo substituída por uma dormência que eu tenho certeza de que não deveria ser bem-vinda. Isso significa que eu devo estar morrendo.

    Assim como Victoria.

    Olho uma última vez para ela, caída a três metros de distância.

    Suas escamas, normalmente de um verde tão vívido e lindo, parecem apagadas e esmaecidas. Uma de suas asas está quebrada sobre seu corpo, torcida em uma direção natural. Ela ainda era praticamente uma criança, nascida há pouco mais de um ano. Menor do que um pônei, não serviria de montaria sequer para uma criança.

    Victoria tinha me escolhido. Mesmo sem conseguir ativar minha herança visual, ela se conectou a mim. Ignorando todos os princípios de que um Veridion não poderia se conectar antes, ela forçou a conexão.

    Não ligo para as leis de vocês. Eu sou um dragão. Victoria dissera, orgulhosa.

    E agora ela tinha morrido.

    Por minha causa.

    Com minhas últimas formas, minha mão alcança a adaga e uma nova onda de dor percorre meu braço quando me forço a lhe segurar pelo cabo. O aperto não é tão firme, mas o choque parece me despertar do torpor causado pela perda de sangue e pelo ferimento que eu sei que é fatal.

    Danibor ainda está agachado na minha frente, esperando meus últimos suspiros, antes de ir embora.

    E eu aproveito a oportunidade para enfiar a adaga em seu peito.

    O mesmo barulho de metal se chocando com pedra, que ouvi antes, se repete agora.

    Ele sorri, como se achasse graça da minha última tentativa de lhe matar. Levanta o colete e mostra que mais do que metade do seu tronco já foi tomado por aquele material esquisito. Bem mais do que parece.

    Sinto uma dor aguda nos olhos e minha visão me entrega mais do que eu posso ver normalmente. Seu corpo está com duas energias disputando espaço e uma delas está perdendo cada vez mais enquanto a outra, aquela que vem da pele pálida, ganhando.

    — O que é isso? — Pergunto, sangue escorrendo pelo queixo quando abro a boca para tentar falar.

    O corpo dele parecia estar se transformando, ganhando uma nova coloração púrpura, mas eu via que aquilo não era em sua pele. Era dentro, em sua energia prismática.

    Ele olha para mim e gargalha.

    — Você despertou só agora?! Você seria nossa melhor arma nessa guerra… Com nossos olhos e um dragão de conexão nós nunca perderíamos isso.

    Ele se levanta, finalmente se afastando de mim.

    A adrenalina que eu havia conquistado para fazer o último ataque finalmente deixa meu corpo, enquanto eu o vejo se afastando.

    Danibor ficou parado ao lado de Victoria e puxa uma espada pequena, me lançando um último olhar antes de se agachar.

    — Pelo menos ela vai dar uma boa armadura.

    Eu grito, mas sei que minha boca não emite ruído nenhum. A escuridão me abraçou, me carregando para longe.

    Tento me agarrar à vida, mas minhas mãos parecem escorregar enquanto eu luto para não ser engolida por aquele vazio que se aproxima cada vez mais.

    Quando a morte me alcança, tento me contentar que irei para o mesmo lugar que Vic está, para ficarmos juntas novamente.

    Não, você não vai.

    As palavras atravessam o vazio por onde eu flutuo, esperando a morte. E então eu começo a cair.

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