Capítulo 2 - Despertar
Eu estou caindo e caindo. Eu grito, mas minha boca não parece emitir nenhum tipo de som. Ou emite e ele só não se espalha por aquele vazio. Estico as mãos, tentando alcançar qualquer coisa próxima, mas não encontro nada e continuo a despencar.
Algo toca em minha mão e eu agarro firme, mas não vejo nada quando olho naquela direção. E então a queda acaba quando minha bunda bate no chão, me despertando da escuridão para o ambiente ao meu redor.
Estou em um quarto. Um quarto muito grande. A cama é alta e eu teria dificuldade em subir nela sozinha. Percebo que tudo é grande demais, na verdade. A janela está além do meu campo de visão, os móveis são muito maiores do que deveriam ser e me pergunto que tipo de alucinação é essa que me colocou na casa de um gigante.
Me coloco de pé e vou até a porta, mas braços longos me pegam e me levantam no ar.
Por reflexo, eu dou um chute para trás e tento dar alguns socos, mas parece que não tenho força nenhuma.
— Está tudo bem, pequena Ell? — Ouço a voz da minha vó e imediatamente sinto um nó na garganta.
Minha avó morreu há cinco anos.
— Vovózinha! — Eu não penso em nada e apenas abraço ela de volta.
Sinto meu rosto molhado com as lágrimas que aparecem, enquanto me lembro dela. A maior guerreira que os Veridions já havia tido, a única grã-nahuale em nossa família.
Ela havia se apaixonado por um humano e criado uma família com ele. Alguns a odiavam hoje por isso, já que tínhamos menos acesso à magia justamente por conta do sangue humano dele em nossas veias. E isso havia dividido a família.
Eu a amava mais do que tudo nessa vida.
Minha avó me abraçou firmemente, mas com cuidado. Ela estava bem e eu não estava em um quarto feito para gigantes. Eu cabia em seu colo por um motivo que estava bem claro agora.
Eu virei uma criança.
Aquilo… Foi tudo um sonho?
Não. A resposta veio muito mais rápida do que eu poderia esperar. Sonhos não costumavam ser assim, cheios de detalhes. Eu me lembrava de tudo. De cada passo até o dia em que eu morri. Então isso é um sonho?
Poderia ser aquilo que permeia o conhecimento popular de que, quando alguém morre, essa pessoa vê toda a sua vida passando diante dos seus olhos uma última vez antes de se despedir? Preciso testar isso.
A forma mais fácil seria fazer algo que não fiz na vida passada.
Quando minha avó se afastou, quase lutei para mantê-la por perto mais um pouco.
— Foi um pesadelo, minha pequenina? — Ela perguntou, vendo se eu tinha me machucado quando caí no chão.
Fiz que sim com a cabeça, sentindo que ainda não conseguia falar por conta do nó gigante em minha garganta.
Ela é tão linda. A idade não alcança os grão-nahuales igual os nahuales normais: seus corpos se desenvolvem até atingir a maturidade, o auge daquilo que seria considerado o momento mais propício do corpo para reprodução e se estabiliza ali. Ela parece ter entre vinte e trinta anos. Seus olhos verdes são rodeados com poucas rugas e seu cabelo ruivo é igual aos meus – vermelho na raiz e levemente loiro nas pontas.
Eu chorei novamente enquanto ela me levava, no colo, até a área externa.
— Vamos comer alguma coisa e você me conta tudo, tá bom?
Certo… Eu preciso fazer alguma coisa para ter certeza de que isso não é um sonho. Que não estou só reprisando tudo antes da merda realmente acontecer.
Fiz um movimento para tentar forçar a descida do seu colo e ela me colocou no chão. Eu olhei em volta, procurando qualquer objeto que pudesse me ajudar a chegar nessa conclusão. Cheguei a cogitar a possibilidade de simplesmente me ferir, ver se uma nova cicatriz poderia aparecer. Alguma que eu não havia tido naquela… Visão do futuro? Como eu deveria chamar aquilo?
Então senti um puxão familiar em minha mente. Automaticamente me virei na direção daquilo que chamava minha atenção, mais como um instinto do que exatamente uma intuição.
Do outro lado do pátio, fica uma construção pequena, com pouco mais de dois metros de altura e quatro de largura, fechado por uma porta de correr. É o lugar da cerimônia, onde fica o ovo de dragão que aguarda ser despertado por aquele que estabelecerá a conexão com ele.
Todo ano, um membro da nossa família pode vir até aqui e tentar se ligar ao objeto, passando sua energia para ele. Da última vez, eu achava que era apenas uma lenda e nunca sequer tentei. Até o dia em que aquele pátio, todo o castelo, foi invadido durante a guerra e minha avó mandou que eu pegasse o ovo para mantê-lo seguro enquanto ela…
A garganta se fecha novamente e sinto as lágrimas escorrerem uma vez mais quando me lembro daquele dia: ela, com sua armadura esmaltada em um verde floresta magnífico, se prostrou sozinha na frente de um exército e ganhou tempo para que todos conseguissem fugir.
Foi nesse momento, depois de ter ignorado todas as recomendações dela de que eu tinha que pelo menos tentar despertar o dragão, que eu realmente toquei no ovo de casca escamada e aconteceu o que eu achava ser impossível.
Minhas pernas pequenas pularam o degrau que separava a varanda interna do pátio e pousei na grama com um pouco de dificuldade, o corpo pequeno parecendo não conseguir responder corretamente aos meus comandos.
Arrisquei alguns passos e logo percebi que eu conseguia andar normalmente, apesar de precisar de umas três passadas para alcançar um único de um adulto. A grama, fofa, entrava pelos meus dedos e pinicava a sola do meu pé, mas não me incomodava. Poder andar sobre ela, depois de tanto tempo, fez com que eu sorrisse sem conseguir controlar as emoções.
Aquela puxada que eu senti antes, ficava mais forte conforme eu me aproximava do local de cerimônia. Eu reconhecia essa sensação, que havia me chamado tantas e tantas vezes e eu não sabia o que era. E agora eu sei, porque conheço o caminho que essa conexão se forma e até onde ela me leva.
Minha avó anda ao meu lado, um pouco atrás, dando espaço e observando de perto o que estou fazendo.
Em teoria, ninguém havia tentado despertar o dragão antes de alcançar pelo menos os doze anos, que é quando se aprende a controlar a própria energia prismática, mas não me lembro de haver alguma proibição para que tentássemos antes.
Quando chego na porta, percebo que minha altura não é o suficiente para alcançar a tranca, mas estico os braços mesmo assim.
— Abre, vovózinha? — Pergunto. É estranho falar, já que minha voz sai mais fina e infantil.
Ela faz o que eu peço, ainda me observando com bastante curiosidade, mas sem perguntar nada e permitindo que eu fizesse aquilo sozinha.
Do lado de dentro, um altar. O lugar não é muito decorado, tendo uma arquitetura bem simples, feito assim para que os Veridions pudessem se concentrar unicamente em sua tarefa. No topo do altar, repousada em uma almofada verde, o bem mais precioso que os Veridions já tiveram em toda sua vida: maior do que toda sua riqueza.
O ovo, que é maior do que minha cabeça, tem escamas verdes e, assim que eu olho para ele, aquele puxão se torna mais firme. Ela sempre tentou me chamar, mesmo da outra vez, e eu nunca respondi? Essa pergunta me assusta e cada vez mais eu percebo que isso não é realmente um sonho. Ou minhas memórias póstumas.
É óbvio que eu não o alcançaria. Ele deve estar uns vinte centímetros longe do meu alcance e eu estico os dedos, tentando lhe tocar, mas falta muito. Sinto quando as mãos firmes de minha avó envolvem minha cintura e ela me coloca no ar, me ajudando o meu destino. O meu destino.
Minha mão toca na casca dura, as escamas sendo a maior proteção que ele poderia ter. Com a mão espalmada, fecho os olhos e procuro aquela linha que estava me atraindo até ali.
— Oi! Você é a Ellarien? — Eu ouço aquela voz que tanto amo, surgindo direto na minha cabeça.
Eu não consigo me conter e me impulsionou para frente, chutando de leve a cintura de minha avó e me jogando para frente, abraçando o ovo.
Nós dois caímos no chão, mas eu caio por baixo, abraçando o objeto.
— Oi, Vic!! Eu senti tanto sua falta! — Eu respondo por aquele laço que nos conecta.
Sempre nos conectou, mesmo na vida passada, mas que agora eu era capaz de reconhecer. Ela ainda está incubada, dentro do ovo, mas esteve esse tempo inteiro sozinha esperando que alguém chegasse? Esperando por mim?
Não era um sonho. Não era minha vida passando na frente dos meus olhos.
Eu realmente havia ganhado uma nova chance.
—
Da última vez, demorou uma semana para que as escamas da casca caíssem e Victoria pudesse sair. Dessa vez, demorou quase um mês. Um mês em que minha avó Ellen teve que enfrentar todos os membros da nossa família.
Eles odiavam que uma criança sequer tivesse tentado se conectar ao dragão. Me acusavam de trapaça, já que nenhum deles haviam tentado isso mesmo e achavam que esse era o segredo o tempo todo. Tentavam bater boca, argumentar e até mesmo ameaçavam tentar tirar o ovo de mim para que seus filhos mais novos também tentassem a conexão.
Ellen Veridion, mesmo quando eu morri, ainda era a mulher mais forte que eu já havia conhecido. Ela encarou todos eles como se fossem apenas crianças birrentas querendo um brinquedo que não estava ao seu alcance.
Eu estou sobre a cama, encarando o ovo com certa preocupação por conta do recém silêncio por parte de Vic. Desde o dia em que toquei nela, ela não parava de conversar comigo nem por um momento, mas de ontem para hoje… Silêncio.
— Hei… Você está bem? — Envio as palavras pelo nosso laço.
E o que me responde é um “creck” do ovo se quebrando. Chegou a hora?!
O barulho do cálcio se quebrando se espalha e logo ela se estica para fora, rompendo a membrana que a mantinha segura ali dentro. Seu tamanho sendo um pouco menor do que o de um gato adulto, com a adição de um par de asas em suas costas. Ela esticou o corpo, se espreguiçando e abriu as asas, soltando um longo bocejo. Quando terminou, olhou em volta.
Eu estava sozinha com ela agora. Minha avó estava lidando com aquele que eu considerava ser o principal problema: meu tio Danibor. Aquele que havia me matado. E matado Vic.
As escamas dela eram um verde mais claro, como a grama em um campo aberto sob o sol da manhã. Seus olhos dourados, de pupilas fendidas, olharam em volta enquanto ela testava as patas, aprendendo a caminhar com elas tão rápido que fazia o tempo que um ser humano leva para conseguir andar ser uma piada.
Eu me aproximei dela e deixei que ela me cheirasse, esperando que ela fosse me reconhecer, mas não houve necessidade alguma dela usar os cinco sentidos para ver quem eu era. Sua voz surgiu em minha cabeça.
— Café da manhã? Almoço? Janta? Vocês precisam comer várias vezes ao dia, né? Eu quero! — Ela virou o tronco para mim, me encarando.
Durante o último mês, havíamos conversado através da nossa conexão e ela conhecia a maior parte dos termos mortais que usamos no dia a dia.
A porta do quarto se abre e minha avó entra logo em seguida, acompanhada por um homem alto ao seu lado. Eu o reconheço: os cabelos grisalhos, a pele queimada pelo sol e as rugas da idade presente em muitos cantos de seu rosto. Apesar de ser filho de minha avó, ele parece mais velho do que ela. A mortalidade dos humanos, em nosso sangue, permitindo que a parte feérica retardasse apenas um pouco o seu envelhecimento.
Ele é o general dos nahuales de Algator e, depois de minha avó, o membro mais notável da família a colocar os Veridion de volta nas políticas. Suas roupas são verdes, a cor de nossa família. Ele usa um casaco que vai até um pouco abaixo da cintura, bem cortado e fechado.
Vê-lo ali, tão perto de mim e de Victoria, ressurge aquele ódio que senti enquanto morria. Eu olho em seus olhos, devolvendo seu olhar e me deixando ser atingida por aquele sentimento de raiva crescente.
Eu não falei sobre ele para Vic ainda, nem sobre o futuro. Sei que irei falar em algum momento, mas não criei coragem para isso ainda. E, mesmo assim, ela rosna na direção dele. Os dentes pequenos para fora enquanto ela estica as asas e sua cauda serpenteia.
Percebo que estava permitindo que aquele rancor todo que eu sentia por ele pudesse passar também através do nosso laço. E Vic, como uma verdadeira amiga, é do tipo que bate primeiro nos inimigos e depois pergunta o que fizeram de errado.
— Vamos descobrir bem cedo se eu já consigo cuspir fogo! — Ela anuncia nossa ligação.
— Isso é… Impossível. — Ouço ele dizer.
Minha avó sorri, um sorriso cheio de orgulho e passa através dele, se aproximando de mim. O amor que sinto por ela, assim como o ódio que sinto por meu tio, é transmitido pela minha ligação com Vic e ela não dá atenção a grã-nahuale enquanto ela se aproxima, mantendo seus olhos dourados fixados no homem de pé.
— Você ainda acha que foi uma mera coincidência? — Ouço minha vó dizendo, mas mantenho o olhar fixo em Danibor também.
Sinto ela colocar a mão em minha testa e levantar minha franja.
— Ela não despertou apenas o dragão.
Arqueio uma sobrancelha, olhando para ela agora, mas quando a vejo, noto a diferença. Ela parece mais viva. E eu vejo sua energia prismática, acolhedora. Eu vejo uma linha que liga minha vida até Victoria. O que?
Existem dois passos básicos para um Veridian despertar os olhos veridianos: ter controle sobre a própria energia prismática e passar por uma situação de estresse.
— Eu tô bem estressada. — Vic fala comigo, como se estivesse acompanhando meu raciocínio.
Da última vez, eu já tinha minha conexão com o pássaro-trovão quando Victoria nasceu, então ela forçou uma conexão comigo. Ela usou a própria energia prismática para isso e foi o que me permitiu ter dois familiares, não apenas um.
Eu não estava usando a minha energia prismática para despertar os olhos veridianos.
— Você tá usando a minha.
Isso… Faz sentido? Ela estava me fazendo pular pelo menos uns dez anos de treinamento apenas por… Porque ela acha que estou em perigo. A raiva que eu sentia por Danibor havia sido o gatilho. Igual da última vez.
Olho para o general, esperando enxergar aquela mesma energia púrpura que eu havia visto da última vez, esperando encontrar aquela coisa corrosiva consumindo seu corpo e alterando sua essência, mas tudo que eu vejo é ele.
Não sei o que havia acontecido, mas ainda não aconteceu.
— Eu ainda não aceito isso. — Ele cospe as palavras minha vó e bate à porta ao sair.
Vic espera alguns segundos, sobre a cama, até relaxar novamente. E eu fico um pouco mais tranquila junto com ela.
— Eu… — Começo a falar.
Eu ainda não tenho energia prismática o suficiente para lidar com os olhos veridianos e, quando a dragão parou de me alimentar com a sua, eu vejo o teto ser tomado por uma escuridão caio para trás, ainda sobre o colchão, inconsciente.
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