Capítulo 4 - Academia
Kairin, o pássaro-trovão filhote, chegou quando eu completei oito anos de idade, como eu tinha previsto. Despertar o dragão não pareceu ter mudado tanto o acontecimento das coisas como eu achei que aconteceria. Tive medo de, por já estar com Victoria, eu não ser considerada para aquele laço que se formaria com a cria de Percivarez e outro da família ser colocado em meu lugar.
Seria justo, não seria? Minha avó parece ter planos diferentes, no entanto. Talvez ela não tenha considerado que minha conexão com Victoria fosse a mesma de um familiar, já que foi ela quem me escolheu.
—
Os próximos quatro anos se passam em um piscar de olhos.
Eu continuo treinando com a avó Ellen todos os dias: deixo um pouco de minha energia na árvore, que já está passando dos quatro metros de altura. Treinamos a ampliação e redução dos sentidos, mas ela continua me mantendo longe do amarelo, como se temesse alguma coisa.
Me preocupo com isso, já que para iniciar as cores secundárias, eu preciso primeiro concluir o treinamento com as primárias. Tenho a teoria de que sua preocupação esteja relacionada ao poder especial nos olhos da nossa família.
A energia para manter os olhos ativados é uma cor secundária, o Verde. Ele é alcançado através do balanceamento correto da energia Azul com a Amarela. Se eu começar a ativar os olhos veridianos sem controle, posso Desbotar de forma definitiva. Que seria, basicamente, quebrar o nosso prisma interno que transforma a energia em cores. E aí eu não poderia usar a energia prismática nunca mais.
Escolhendo confiar plenamente no discernimento de minha avó e em seus conhecimentos, eu não tento praticar o Amarelo sozinha e apenas sigo suas orientações.
Victoria cresceu nesse tempo e ela já alcançou o tamanho de um cavalo grande. Eu já consigo montar nela, algo que nunca sequer sonhei na vida passada, já que era tão menor do que hoje. Apesar disso, ela ainda não pode voar comigo em suas costas ainda.
Sem um dragão adulto para orientá-la, não sabemos o momento certo em que ela poderá fazer isso, então nós duas escolhemos não forçar.
Kairin também cresceu. Quatro anos para um pássaro-trovão é o suficiente para atingir quase seu tamanho máximo e ele é um pouco menor do que um gavião-real. A penugem amarela começou a ficar salpicada pela preta, principalmente em sua crista. Com quase um metro de altura e uma envergadura – tamanho da ponta de uma asa até a outra, quando abertas – de dois metros, ela já mostra sua verdadeira natureza predatória.
— E então eu morri… Mas não morri. Acordei novamente com cinco anos. No dia em que despertei a Vic. — Falo através do laço, contando o que aconteceu comigo para Kairin e Victoria.
— Ele me matou e ia usar minhas escamas para fazer armadura?! — Vic devolve através do nosso laço.
Eu sinto o ultraje em suas palavras e me recordo do quanto aquilo havia me deixado com raiva também.
— Eu não vou te abandonar. — A voz de Kairin ressoa e eu sorrio com isso.
Apesar de não ter ligado nossas vidas ainda, nós já somos muito mais próximos do que jamais sonhei antes. Compartilho esse sentimento também, mostrando claro o quanto eu mudei.
— Eu não vou abandonar. Vocês dois. — Retribuo.
Talvez essa tenha sido minha decisão mais difícil até agora, mas uma que eu sei que não vou me arrepender. Se é para ter minha vida ligada a Kairin e Victoria, eu não irei esconder segredos dele. Não senti… Que deveria contar isso para minha avó ainda. Ela não precisa saber a decepção que era para eu me tornar e que só sou diferente agora, a neta da qual ela tanto se orgulha, porque primeiro eu tive que morrer para poder mudar.
Segundas chances, eu sei, que mais ninguém costuma ter por aí.
Ainda não descobri o que foi que me fez voltar, mas não invisto tanto tempo nisso quanto eu deveria. Eu não preciso de mais uma chance.
Estou deitada em minha cama agora, em meu próprio quarto. Ainda fico na pequena casa em anexo ao terreno do castelo, onde minha avó mora. Naturalmente Vic não caberia aqui dentro comigo, mas ela mesmo não gosta de ficar em ambientes fechados assim.
Kairin está em uma árvore, empoleirado. Apenas uma de suas patas está se apoiando no galho e sua cabeça, virada para trás, apoiada entre as suas asas. Consigo vê-lo através da janela, que deixo aberta para circular o ar.
O verão em Gávoia é um dos mais quentes e a briza refrescante, empurrada pelo vento que sopra por cima do mar, deixa um pouco mais amena a temperatura.
Apesar de Gávoia ser considerada um reino, ela é mais como uma grande cidade anexada ao Reino dos Povos Unidos, que detém todo o continente de Algator. Por isso, não temos um rei aqui, mas sim um general. Nesse caso, o general é o meu tio Danibor.
Sempre que penso nas coisas que eu estou conquistando nessa vida, não consigo afastar o pensamento quase intrusivo daquilo que fiz de errado em minha vida passada.
Enquanto espero o sono vir, sinto a antecipação do dia seguinte. Agora que tenho doze anos, amanhã será meu primeiro dia na Academia de Veridion.
Primeiro dia que, na minha vida passada, eu não tinha nem aparecido para fazer a matrícula.
—
— Já pegou suas coisas, querida? — Ouço minha avó falar, de outro cômodo.
— Sim, vovó! — Respondo, batendo a mão ao longo do corpo e verificando se está tudo comigo.
Estou com uma adaga presa no cinto, nas costas. Mais se parece com uma espada muito pequena ou uma adaga muito grande e eu não sei exatamente onde ela se encaixa. É apenas minha arma de apoio e de emergência.
Eu descobri que sou verdadeiramente boa com um arco e uma flecha. Por isso carrego um comigo. Um arco curto, já que ainda sou uma criança e, apesar de todos os meus treinos, não tenho força e nem tamanho para usar um arco longo. Nas minhas costas, acima da adaga embainhada, uma aljava com vinte flechas.
— Por Lariel, minha netinha. Você vai matar quem? — Ouço a voz dela e logo ela aparece ao meu lado.
— Hoje é só o primeiro dia. Você não tem que matar ninguém. — Ela ri, tirando minha adaga e apoiando na mesa ao lado da minha cama. — Nem flechar ninguém. — Ela desfivela a aljava e a coloca na mesa também.
— Eu… Os alunos não lutam entre si? — Perguntei, sentindo meu rosto corar de vergonha.
Eu sei que os alunos da academia podem morrer, já que as notícias me alcançavam mesmo enquanto eu não estudava. Estar longe dos estudos me deixou próxima das rodas de fofoca e eu ouvia uma coisa ou outra.
— Não no primeiro dia. E a Academia tem o dever de armar os alunos em igualdade, quando acontece. Por isso ninguém leva arma de fora, já que isso daria vantagem. — Ela pega o arco em minha mão e o apoia na mesa também.
— Mas nós não temos nossas vantagens e desvantagens de acordo com os familiares?
Ela balança a cabeça, o sorriso ainda presente em seu rosto.
— Nunca aponte nenhuma característica dos familiares dos seus colegas como defeito, vai ver que ninguém gosta disso e é o jeito mais fácil de se começar uma briga.
Eu assinto, concordando.
Se alguém falasse mal de Vic ou de Kairin, eu não iria gostar também.
O castelo, nesse caso uma única construção grande que serve de moradia para o general e sua família, apesar de ser bem protegido com torres com boa visão, não possui um muro que o separe do resto da cidade. Não temos guerras contra os nossos vizinhos, já que estamos todos abaixo de um mesmo estandarte.
As casas são construídas em concreto e tijolo, sempre com muitas janelas para que o ar circule bem. Por ser um material que segura a temperatura, é normal você chegar em casa depois de passar por muito calor nas ruas, lá dentro, o ar fresco lhe receber de braços abertos. Embora o contrário também pode ocorrer, principalmente nas paredes que ficam o dia inteiro recebendo o calor do sol.
São todas construções mais quadradas, mas que seus residentes tomam o cuidado para não afastar a natureza do lugar. É normal árvores muito próximas das casas, com jardins preservados e bem floridos.
É de se imaginar que estar tão próximo do meu tio faria com que nos esbarramos diversas vezes, mas não é o acontece. Desde quando Vic despertou, eu devo ter visto ele meia dúzia de vezes. Por ser um dos maiores generais de Algator, ele é constantemente chamado e fica pouco tempo conosco.
Por isso, quando chego na Academia, acompanhada de minha avó, estranho Danibor no pátio fazendo recepção aos recém chegados.
— Ellen. — Ele acena com a cabeça.
Sempre achei estranho ele não chamar ela de mãe, apesar de saber o motivo. Ele faz parte da parcela de nossa família que a critica por ter se relacionado com um humano e atribui a ela parte da culpa da energia prismática estar ficando cada vez mais fraca em nossa família.
O que não faz muito sentido, já que os grão-nahuales estão se tornando cada vez menos numerosos no mundo por conta da sua dificuldade em se reproduzir. É normal conhecer um casal que estejam juntos a mais de um século e não tenham conseguido fazer um filho ainda.
E o fato dos humanos serem tão altamente reprodutivos, com famílias podendo fazer um por ano, é um contraste assustador.
— General. — Minha avó retribui o comprimento.
Danibor olha para mim e olha ao meu redor, como se estivesse procurando por Victoria. Ela não está comigo agora, já que não seria muito prudente passar por ruas movimentadas com uma criatura lendária e que as pessoas só ouvem falar em lendas.
— Eu acho que todo mundo já me viu saindo para caçar. — Ouço Vic através do laço e seguro a risada.
Não sei onde ela está agora, mas ela disse que ficaria por perto. Consigo ver Kairin. Não tenho a força de minha avó para carregar ele no ombro ou no braço, então ele voa entre os telhados das casas mais próximas.
Não dá para esconder um dragão por muito tempo. Como se não bastasse o quanto são capazes de crescer rápido, também precisam comer muito.
Minha avó fica ali na entrada, onde Danibor recebe a maioria dos responsáveis e os alunos seguem em frente.
Vejo alguns acompanhados de seus familiares: lobos, tigres, pássaros e outros animais. Um deles tem um macaco pendurado no ombro, a cauda balançando enquanto ele pula de um ombro para o outro. Dessa vez eu não consigo segurar a risada.
— Você está rindo do Barkot, é? — O menino se aproxima de mim, a sobrancelha erguida e parecendo indignado. O macaco também está com a sobrancelha levantada?
— Eu.. — Tento buscar as palavras rapidamente, mas noto o lampejo de um sorriso no rosto dele.
Todos temos doze anos de idade, já que é a idade para ingressar na academia, mas ele parece um pouco mais novo, mais jovial. Seu cabelo é loiro e bagunçado. Até vejo que talvez ele tente deixar arrumado, mas toda vez que o macaco pula de um lado para o outro, ele se apoia na cabeça do garoto e bagunça um pouco. O verde dos olhos dele é bem claro, muito mais próximo do azul.
— Por que se não for, eu vou ficar muito chateado. — Ele complementa, agora rindo.
De perto, percebo que não é um macaco qualquer, é um mico-leão-dourado. Ele estende a mão para mim, como se estivesse me cumprimentando com um soquinho.
Eu dou um soquinho de leve na mão dele.
— Eu sou o Baplin. — O nome dele soa como uma bolha estourando. — E esse aqui é o Barkot.
— Eu sou Ellarien e aquele ali é o Kairin. — Aponto para onde o pássaro-trovão está apoiado, em uma árvore, encarando o macaco.
— Você não pode comer ele. — Além de cobras e peixes, os macacos são um dos principais alimentos das águias.
A ausência de resposta de Kairin me deixa um pouco preocupada, mas sigo andando, com Baplin vindo longo ao meu lado.
— Você é a neta da Ellen?
— Aham.
— Sou um grande fã da sua avó. Quando ela enfrentou o Daburin e conseguiu aprisionar ele, nossa, foi muito foda!
Era um dos grandes feitos dela, apesar dela não ter feito sozinho isso. Daburin foi uma criatura poderosa que apareceu em algum momento dos últimos cem anos, causando o terror. Antes que fosse parado, duas cidades inteiras já haviam sucumbido para a criatura.
— Eu também sou uma grande fã dela. — Comento quando finalmente chegamos.
A Academia de Veridion é tão grande quanto o castelo. As duas maiores construções de Gávoia parecem disputar o espaço aéreo, servindo de referência como localização também. Três torres circulam o prédio principal, cada uma com um símbolo e sua respectiva cor: vermelho para o Rubus, azul para o Pistris e amarelo para o Arashi.
Por termos familiares de diferentes necessidades, cada aluno é separado em uma das torres onde tanto si mesmo quanto seus companheiros ficarão mais confortáveis. Chamados de Origens, eu sei que Rubus dá acesso a uma grande floresta com um campo aberto e gramíneo, Pistris é envolta em uma nascente que vem da montanha logo atrás da cidade e deságua diretamente no mar e Arashi é esculpida na própria montanha para as criaturas voadoras.
Aqueles que estavam sozinhos, eu supus, deveriam ser os que compartilhavam o laço com um familiar aquático ou que não poderia estar presente agora.
— Se a Ellen é sua avó… Aquele deve ser seu tio, né? — Baplin interrompeu meu raciocínio, indicando Danibor que subia as escadas.
Eu confirmei com um movimento de cabeça, estreitando os olhos para entender o que ele estava fazendo aqui.
O general não precisou falar nada conforme galgava os degraus e apenas a sua presença ali, suas costas largas e passadas firmes, fez com que uma onda de silêncio se espalhasse pelo constante burburinho de crianças falando. Ele não precisou dizer nada, chamar a atenção de ninguém e todos já estavam prestando atenção nele. Incluindo os animais.
— As boas vindas desse ano serão diferentes. — Ele começou. — Eu recebi a autorização de montar e treinar um esquadrão para se tornar a principal força de elite de Algator. E eu escolhi começar a treinar uma turma do zero, com aqueles que ingressam hoje.
Seus braços estavam unidos nas costas, a mão esquerda segurando o pulso direito enquanto ele mantinha o peito aberto em nossa direção. Eu não consegui contar quantos alunos tinham, já que a diferença de altura tampava alguns ou outro. Ou a presença de familiares maiores. Aquela garota tem um rinoceronte?
— 73 crianças no pátio. — Kairin me respondeu através do laço. Com sua visão privilegiada do alto, aquela informação seria fácil. — Tem um moleque com uma cobra também.
Embora eu ainda me sentisse esquisita ao ser chamada de criança, agradeci pela informação.
— Os que não quiserem participar da seleção, podem seguir adiante e serão separados para suas respectivas Origens. Os demais, fiquem para realizarmos a seleção.
Devia existir bem uns vinte metros entre nós dois, mas eu jurei que ele parecia olhar em meus olhos enquanto dizia para os desistentes irem embora.
Certo… Ele acha que eu não vou nem tentar. Vamos ver.
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