Capítulo 5 - Seleção
Foi mais ou menos quando eu completei dezessete anos, antes de Kairin me abandonar e de Vic sequer nascer, que ele foi em uma missão e retornou gravemente ferido. Até aquele momento, ele era alguém que se preocupava com a família, responsável e, apesar de duro, honesto.
Não era alguém que se podia gostar, mas com certeza era respeitável.
Depois daquilo, ele mudou drasticamente. O grande general que enfrentou a guerra e colocou medo nos inimigos, fazendo-os manterem distância de Algator por muito tempo, tinha se tornado desleixado. Notícias de estratégias suicidas, com a perda de milhares de nahuales, chegavam uma atrás da outra e aos poucos nós estávamos perdendo a guerra.
Em uma cadeia de eventos complexos, era possível rastrear a origem até suas atitudes impensadas e mal calculadas. A invasão em Gávoia, com a morte de minha avó e muitos outros residentes, era apenas mais uma de suas consequências.
E ainda tem aquela cor que eu nunca vi antes. Quando ele me matou, mais de metade do seu corpo estava tomado por uma energia púrpura, se enraizando nele. Além daquela parte do seu corpo que parecia feita de pedra.
Eu precisava impedir que os eventos ocorressem dessa mesma forma.
Quando fiquei parada, Baplin ao meu lado junto com mais uns vinte alunos, vi na expressão facial de Danibor que ele não esperava por isso. E lhe entreguei um sorriso como resposta.
— Muito bem. Eu preciso de apenas quatro, então vamos ter que fazer uma eliminatória aqui. — O general falou conforme descia as escadas, chegando no nosso nível.
Embora ele ainda tivesse quase o dobro do tamanho de qualquer um de nós ali.
— Vamos começar cortando o número pela metade. — Quando falou, seu olho brilhou e o verde de sua irís pareceu ficar mais intenso. — Você, você e você… Você também…. — Cada vez que ele falava, ele apontava para um dos alunos presente. Ele fez isso até que ficássemos em apenas oito pessoas.
— Não tenho tempo para ensinar o básico de energia prismática, a academia fará isso por vocês. — Ele apontou com o polegar na direção de suas costas.
No fim, não havia sido apenas metade que ele cortou, já que treze pré-adolescentes subiam as escadas agora.
Baplin ficou ao meu lado, com o Barkot pendurado em seu ombro. Era estranho ver o mico-leão-dourado tão estático assim depois que se acostuma com ele pulando de um lado para o outro e sempre mexendo em alguma coisa.
— Você é uma Gakina, não é? — O general perguntou quando passou por uma garota de cabelos pretos na altura do ombro. Ela não estava acompanhada do familiar.
Gakina é uma das grandes famílias de Gávoia, conhecida por sua ligação com animais marinhos. São essenciais na proteção da região costeira de todo o continente.
— Sim, senhor. — Ela respondeu. Sua voz pareceu tremer. Ansiedade ou excitação? Não soube identificar. Ela estar de costas para mim não ajudou muito.
— Qual o seu familiar?
— Uma vespa-marinha, senhor.
Ele pareceu gostar da resposta, balançando a cabeça positivamente.
Eu não consegui imaginar como poderia existir uma vespa-marinha. Eram insetos que voavam sob a água?
Continuou caminhando, passando por um garoto que tinha um lobo ao seu lado. O animal parecia ter uma pequena juba em volta do pescoço, a cor cinzenta mais forte ali do que no resto do seu corpo, onde o pelo era quase totalmente branco.
Depois de um tempo apenas avaliando, o único som presente sendo o de suas botas em contato com a pedra no chão, ele finalmente falou:
— Como eu esperava, ficou mais difícil escolher entre o resto de vocês. Vamos fazer uma pequena disputa.
Danibor se afastou alguns passos e se virou para nós novamente.
— Você aí, com o macaco. — Ele chamou Baplin. — E você com o gato, venham cá. — Fez uma pausa, olhando para uma das garotas que tinha um corvo. — Você também..
Os três se aproximaram, formando uma fila pequena logo de frente com o general. O garoto com o gato, ao lado de Baplin, era um pouco menor e o gato estava dormindo entre os seus braços, embora seus olhos parecessem quase abertos. A menina com o corvo tinha o queixo empinado e seus cabelos loiros iam até o meio de suas costas, soltos.
— Quero uma disputa justa, então perder ou ganhar não vai definir quem está eliminado ou aprovado. Fazer de tudo pela vitória pode ser visto com bons olhos lá fora, mas não aqui dentro. — O general deu um passo para trás assim que terminou de falar.
— Entrem na escola e descubram para qual Origem foi o primeiro aluno escolhido hoje. Vocês têm dez minutos para isso ou ambos serão eliminados.
Baplin e os outros dois saíram correndo, subindo os degraus da escola.
Ele parecia ter considerado que o familiar dos três seria bom na coleta de informações, cada um à sua própria maneira e não queria ter funções repetidas no time que estava montando. Isso significava que aquela garota com a tal da vespa-marinha provavelmente já estava dentro, já que parecia ser a única com um familiar marinho.
Eu esperava que o retorno dos três fosse demorar e que meu tio iria adiantar as próximas disputas enquanto isso, mas logo que Baplin entrou, não se passaram mais do que dois minutos e ele voltou com Barkot ainda montado em seu ombro.
— A primeira na seleção de Origem foi a Sindy, com sua familiar que esquilo para a torre Rubus. — Baplin respondeu, parecendo satisfeito consigo mesmo.
— E como você conseguiu a informação tão rápido? — O general indagou.
— Eu perguntei, senhor. Perguntei para um dos alunos e para um dos professores, escolhendo duas pessoas afastadas para que um não ouvisse a resposta do outro e fosse induzido.
Danibor acenou para que Baplin ficasse à sua direita, um pouco mais afastado. O menino se sentou na escadaria, mas assim que o general lhe lançou um olhar, ele rapidamente se levantou e ficou em posição de sentido.
— Fica como primeiro ensinamento: muitas vezes, quando você precisar de alguma informação, não tente quebrar sua cabeça conseguindo ela de forma mirabolante. Primeiro você deve ver se alguém já a possui e então consultar com esse alguém. Diria que Baplin foi além e confirmou se estava realmente correta a informação, o que é bom, mas alguém mais cuidadoso teria ido até a origem certa e confirmado se a pessoa estava lá também.
O mico-leão-dourado colocou as duas mãozinhas na cintura e olhou feio para Baplin, como se estivesse o repreendendo por ter dado aquela sugestão e o garoto tivesse recusado.
A garota com o corvo apareceu um minuto depois, abrindo a porta e vendo que Baplin já estava ali. O general a dispensou com um olhar e, parecendo bem chateada, ela entrou pela porta novamente sem se despedir.
Estávamos apenas em mais quatro pessoas agora. Eu, o garoto com o lobo, uma garota de cabelo preto e bem cacheado com um tigre branco e outra menina com um urso que era um pouco maior que Danibor.
— Eu treinei Ralik desde quando ele tinha cinco anos e ele já está no grupo. — O general apoia a mão pesada sobre o ombro do garoto que tinha o lobo ao seu lado. — Assim como a Gakina e o garoto do macaco que também já mostraram sua utilidade no grupo.
Desde quando tinha cinco anos… E agora ele tem minha idade. Isso, somado ao fato de que eu nunca ouvi falar dele como aprendiz do meu tio em minha vida passada, me indica que ele foi escolhido a dedo para ser treinado e se tornar melhor do que eu.
Como que para mostrar que minha avó estava errada ao deixar Vic ficar comigo. Será que ele espera que Vic faça um laço com ele, se ele se mostrar alguém melhor do que eu?
— Primeiro que eu escolhi você, então não tem ninguém melhor que você. — Ouço Victoria por nosso laço. Ela parece próxima, mas não a vejo em lugar nenhum.
Eu acredito em suas palavras, mas… Ela havia me escolhido na vida passada e isso causou sua morte. Eu não deveria estar sendo atormentada por todos esses temores depois de sete anos que voltei, mas de repente eu estava ali… Com medo.
— Você ainda é uma criança, apesar de suas memórias. Não se cobre como uma adulta. — Ouço a voz de Kairin através do laço, complementando a de Victoria.
O pássaro-trovão deu um grito poderoso, um chamado agudo que cortou o próprio ar como uma lâmina enquanto ele pousava ao meu lado, suas penas amarelas parecendo um trovão.
Algo pesado aterrissou atrás de mim, suas garras afiadas causando fendas no solo pedroso enquanto abria as asas e capazes de esconder a mim e a Kairin dentro de sua envergadura. Suas escamas verdes brilhavam como esmeraldas ao refletirem a luz do sol. Victoria, um dragão ainda jovem, era grande o suficiente para fazer aquele rinoceronte mais cedo se apequenar próximo dela. De sua majestosidade.
Agradeci aos dois por me darem coragem naquele momento.
As outras duas garotas que estavam disputando a última vaga comigo tiveram a decência de se esconderem atrás de seus familiares, embora fosse possível ver um leve… pânico em seus olhos?
— Ia pedir para chamar seus familiares mesmo, ainda bem que se adiantaram. — Danibor pareceu sequer se importar com aquela demonstração de poder.
Não que eu estivesse tentando impressionar alguém ao chamar os dois ali, afinal eu sequer os chamara.
— Ralik, mostra como se faz. — O general ordenou.
O garoto fechou os olhos e tocou em seu lobo e pude ver quando a energia prismática dele pareceu se misturar com a da fera, mas não era ele quem estava enviando alguma das cores para o animal e sim o contrário. O lobo estava transferindo parte de sua energia para Ralik.
Quando abriu, uma presença esmagadora se espalhou pelo ambiente. Como se o lobo, um predador natural e poderoso, estivesse caçando e eu fosse a sua presa. Aquela pressão atingiu pontos que me faziam ter certeza daquilo que Kairin disse ser verdade: eu ainda era uma criança e estava sujeito aos medos e desejos de uma.
Paralisada, senti a vontade de chorar se acumulando dentro de mim. De buscar abrigo.
Mas eu não precisava buscar abrigo. Precisava? Eu já estava em um. As asas abertas de Victoria me protegeriam de qualquer um que tentasse me atingir. Kairin, ao meu lado, mantinha os olhos afiados preparados para fazer o mesmo.
— Façam o mesmo agora. — Danibor estendeu a mão, indicando-nos.
O urso, familiar de uma das garotas, deu um rugido alto para se livrar daquela pressão e sua pelagem marrom pareceu ficar totalmente arrepiada enquanto ele se apoiava apenas nas patas traseiras e se tornava muito maior. Quando sua parceira tocou nele, ele emitiu aquela mesma energia prismática para ela e a presença se espalhou.
Não algo amedrontador como da primeira vez, mas algo mais… Acolhedor. Como uma mãe urso que protege seus filhotes de predadores inimigos.
Danibor arqueou a sobrancelha, como se estivesse decidindo se aprovaria aquilo ou não.
O tigre, que eu esperava ter uma capacidade próxima a do lobo… Deu a volta e pareceu se esconder atrás da garota. Como se estivesse com medo daquelas representações de força.
O general balançou a cabeça em negativa, apontando com o polegar para as escadarias que estavam em suas costas enquanto olhava para a garota e seu tigre.
Finalmente era a minha vez.
— Certo… Vovó nunca mais deixou fazermos isso desde quando eu era uma criança, mas eu não posso desmaiar de forma alguma com isso, né? — Perguntei através do nosso lanço, compartilhando com os dois.
— Foi culpa da minha inexperiência, não da sua. — Victoria estendeu o pescoço para baixo, para que eu pudesse tocar em suas escamas.
— Você é muito melhor do que eles. — Kairin garantiu.
Seus olhos de águia estavam vendo algo que os meus não enxergavam.
Toquei em ambos, fechando meus olhos. A mão esquerda sobre as costas do pássaro-trovão, no espaço entre suas asas. A direita no pescoço estendido, sentindo suas familiares escamas.
E então os dois me inundaram com sua energia prismática.
Foi só nesse momento que eu entendi o que estava ocorrendo ali. Danibor queria saber se conseguíamos lidar com a conexão com nossos familiares mesmo sem termos estabelecido, de fato, a ligação que uniria nossas vidas.
Conter toda aquela energia seria loucura, então eu precisava expulsar ela do meu corpo de alguma forma, mas não sabia como. O Azul apenas melhora minhas capacidades mentais enquanto o Vermelho aprimora as físicas. Aprimorar não serviria de nada agora, já que aquela onda parecia se espalhar pelo meu corpo muito rapidamente.
A energia prismática de Kairin era como os ventos de uma tempestade que se aproxima, com nuvens pesadas no horizonte onde os relâmpagos brilham apenas com a promessa da tormenta que se aproxima.
Victoria tinha uma energia mais bruta, menos lapidada. Eu sequer era capaz de descrever aquilo em palavras. Como se eu fosse jogada no meio de um furacão e arrastada por quilômetros, com raios e chamas disputando em meu peito.
Eu preciso arriscar o Amarelo.
Quando abri os olhos, tive a certeza de que eles estavam brilhando em um verde intenso. A herança Viridian estampada em meu rosto enquanto eu conseguia enxergar a energia vital daqueles que seriam meus colegas de equipe, assim como seus familiares também.
Danibor ainda não apresentava sequer um indício daquela energia pútrida que eu havia visto da primeira vez, então eu ainda tinha tempo para evitar que acontecesse. Apesar de sequer saber do que se tratava.
Como um estalo em minha mente, entendi como Ralik e a garota do urso haviam feito para transmitir a presença de seus familiares. O Azul representava a mente e o Amarelo era o externar dessa mente. Eles haviam usado o Verde para criar aquela sensação de presa e predador. Uma ilusão.
Com toda aquela prismática correndo dentro de mim, eu poderia fazer mais do que criar uma ilusão.
Eu imaginei uma versão minha no futuro em que havia persistido no caminho da batalha e do esforço, que não havia desistido ou guiado por outro caminho igual àquela que fui um dia. Eu dei forma a uma Victoria que havia alcançado seu auge como dragão adulto, seu tamanho muito maior do que aquele castelo que servia de base para os cadetes. Em seu pescoço, um colar de relâmpago se movimentava com velocidade enquanto Kairin atravessava o ar deixando um rastro de eletricidade dourada para trás.
E eu estava sobre a cabeça de Victoria, com um arco empunhado na mão esquerda e uma flecha preparada na mão direita. Meus olhos brilhavam mais do que eu sei que brilham agora.
Quando interrompi a ilusão, percebi que todos estavam surpresos. Incluindo o principal general de Algator.
Eu finalmente descobri porque nós nos unimos aos animais através do vínculo familiar.
Eles podiam passar sua energia prismática para nós durante um combate. E essa era uma vantagem que nem mesmo os grãos-nahuales – com exceção de minha avó, que também tem seu familiar – não eram capazes de alcançar.
Havíamos achado uma forma de restaurar a magia com a ajuda daqueles que a carregavam em maior quantidade do que nós.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.