Capítulo 35 — correntes malditas
O chão se aproxima com rapidez. Já não há como continuar voando tão alto — meu corpo começa a ceder, e o calor que sobe do incêndio torna o ar sufocante. A fumaça invade meus pulmões e arde nos olhos, transformando tudo em um borrão cinzento. Antes, minha visão já era comprometida; agora, estou praticamente cego. Só me resta confiar nos meus outros sentidos.
No começo, era o instinto que me guiava. Eu me virei na direção do grito de Laila — um som desesperado e doloroso que atravessou a floresta como uma lâmina. Foi por ele que segui, sem pensar, apenas avançando. Mas agora, perdido nessa névoa sufocante de fumaça e caos, estou indo na direção das vozes que ouvi mais cedo. Vozes humanas. Vozes hostis. Elas falavam de capturar alguém… estavam atrás da Laila.
Merda…
Eles devem ter notado. Aquele cabelo ruivo, vibrante, como fogo em chamas, denuncia sua origem. No meio da floresta, em uma terra estrangeira, ela se destaca como um farol. E esses malditos… eles devem ter visto. Devem ter percebido. E agora, estão caçando.
Mas Laila é forte. Eu sei disso. E quando ouvi as vozes daqueles homens, percebi que ainda não a capturaram. Ainda não.
Kael e Aiza foram atrás dela também. Vieram para ajudar. Isso me dá algum alívio… mas também um aperto no peito. Aiza é boa, é gentil, mas essa bondade é frágil, ainda sem a experiência de batalha. Ela pode acabar atrapalhando sem querer, se não souber controlar as emoções. E Kael…
Kael…
Ele é forte. Muito mais do que eu. Mas ele saiu antes de mim. Já faz um tempo. E até agora, não vi nenhum sinal dele.
Será que ele foi derrotado?
Será que todos foram pegos?
Não. Não posso pensar assim. Se me deixar levar pelo medo, vou parar. E eu não posso parar. Eu preciso acreditar que eles estão vivos. Que ainda estão lutando. Que Kael está protegendo Aiza. Que Laila está resistindo.
Mesmo que meus músculos estejam gritando. Mesmo que a fumaça me faça lacrimejar sem parar. Mesmo que meu coração bata com tanta força que parece querer rasgar meu peito por dentro…
Eu não vou parar.
Eles estão bem. Eles vão estar bem.
Estou cada vez mais perto.
Kael… Aiza… Laila…
Esperem por mim.
Estou tentando focar no caminho à frente para desviar das árvores. Estou voando baixo, rápido, e tudo passa como borrões enquanto me esforço para manter a rota. Mas então algo me obriga a parar.
Ali, entre as árvores, quase como se tivesse surgido do nada, está uma mulher.
Seu cabelo preto e curto está desgrenhado, grudado em partes pela quantidade de sangue que cobre seu corpo. Ela caminha lentamente, arrastando uma corrente escura pelas folhas secas, o som metálico quase engolido pelo farfalhar do vento. As algemas presas aos seus pulsos são pesadas, enferrujadas, antigas… mas ela não parece se importar com o peso.
Na verdade, ela segura a corrente como se fosse uma arma. Como se fosse parte de si.
Seus olhos estão cobertos por uma venda roxa, amarrada firme na cabeça. Ainda assim, ela se move com precisão, como se pudesse enxergar perfeitamente — ou como se não precisasse.
E suas roupas… definitivamente não pertencem a este mundo. Um top roxo justo, revelando o abdômen manchado de sangue. Uma saia preta curta, com fendas que revelam o forro púrpura, suas pernas cobertas de sujeira e marcas. Tudo nela transmite algo errado, deslocado… perigoso.
Sangue. Está por toda parte. No rosto, nas mãos, escorrendo da ponta dos dedos até pingar nas folhas abaixo.
Meu estômago se revira. A direção que ela está indo… é a mesma que Laila seguiu.
Não pode ser coincidência.
Meu coração acelera, e os sons ao meu redor desaparecem, abafados pela pulsação que explode nos meus ouvidos.
Ela está atrás da Laila?
Ou pior… já a encontrou?
Não. Não pode ser. Não com todo esse sangue.
Se ela encostou um dedo sequer na Laila…
Eu vou fazer essa floresta inteira tremer.
Então, ela se vira devagar. Aquele rosto sem expressão se transforma num sorriso… mas não é humano. É um sorriso morto, distorcido, como se a pele estivesse sendo puxada por algo que não entende alegria. É frio, vazio, e mesmo assim carrega uma ameaça tão intensa que sinto meu corpo gelar. Um arrepio percorre minha espinha. Aquilo ali não é normal. Aquilo é o prenúncio de algo terrível.

E então tudo acontece de uma vez.
Um estrondo metálico corta o silêncio. Como trovões de ferro se chocando no ar. Correntes. Grossas, enferrujadas, surgindo do nada, de todos os lados, como serpentes famintas. Uma delas acerta uma árvore próxima com tanta força que a madeira explode em estilhaços. Era uma daquelas árvores gigantes, antigas, que nem mesmo tempestades derrubam. Mas aquilo… aquilo quebrou como papel.
O impacto me joga longe. A cabeça bate em algo duro e a dor me atinge como um raio. O sangue escorre quente pela minha testa. A visão embaça. Tô zonzo, não sei onde é cima ou baixo. Merda. Que porra tá acontecendo?
Forço o corpo a se mover, os músculos gritam em protesto. Mas antes que eu consiga me levantar, sinto de novo o zunido. Várias correntes, agora vindo em alta velocidade. Não dá tempo de pensar. Elas me acertam com precisão brutal, enrolando no meu corpo, prendendo meus braços, pernas, tórax. O aperto é sufocante, como se quisessem me esmagar por dentro. Tento gritar, mas o ar já tá faltando.
Então elas me puxam.
O mundo vira um borrão. As árvores passam como sombras, e cada uma que encosto vira um pesadelo. As correntes me arrastam de um lado pro outro, me lançando contra troncos grossos, me batendo com tanta força que as árvores tombam como dominós. O som de madeira estalando, o cheiro de sangue, a dor que explode no meu peito a cada segundo.
As costelas… sinto todas elas quebrarem. Os braços já não respondem direito. As pernas… acho que estão penduradas no resto do corpo só por carne. Meus ossos são vidro. Meu corpo é um saco de dor. E ainda estou consciente. Ainda estou aqui, preso nesse inferno.
O sangue escorre sem parar. Tá quente, tá em todo lugar. Nos olhos, na boca, no chão. O ar não entra. Os pulmões queimam. Tudo gira. Não sei mais onde estou, nem quanto tempo passou.
Aiza… Kael… Laila…
Nada disso parece real agora. Os rostos deles são memórias distantes, borrões que a dor desfaz. Eles não estão aqui. Eles não vão me encontrar.
O que tá me esperando é outra coisa.
Não é salvação. Não é vingança. Não é justiça.
É o fim.
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