Capítulo 37 — fim
— Ahahahahah… gkh… — começo a engasgar com meu próprio sangue e lágrimas, mas não consigo parar de rir.
É um riso torto, amargo, sem alegria. Um som feio, quebrado, como vidro se partindo. Meus ombros tremem, não sei se de dor ou de riso, talvez os dois ao mesmo tempo. Sinto o gosto metálico se espalhando pela boca, escorrendo pelo canto dos lábios. Tento respirar, mas o sangue desce pela garganta como um rio grosso e quente. Me engasgo mais uma vez. Meus pulmões gritam por ar, minha garganta se contorce, e meus olhos já mal conseguem focar alguma coisa.
Meu corpo, esse traidor miserável, ainda quer sobreviver. Cada célula minha implora por mais um segundo de vida, mesmo enquanto tudo dentro de mim já desistiu.
Minha visão começa a embaçar nas bordas, as cores ficando pálidas, distantes. Meu coração, antes acelerado, agora bate pesado, lento, como se arrastasse o tempo junto com ele. Cada batida parece mais fraca do que a anterior.
— Olha que bonitinho… tá tentando se matar engasgando, haha. — A voz da mulher corta o silêncio como uma lâmina fina. Ela ri, debochada, colocando uma das mãos delicadamente sobre a boca como se estivesse achando tudo isso adorável. — Se for pra morrer pelas mãos de alguém aqui, vai ser pelas minhas. Você não vai se matar, lindinho… haha…
As correntes dela se erguem no ar como serpentes vivas. São escuras, espessas, com uma aura maldita que faz o ar ao redor tremer. Elas se movem com uma graça assustadora, dançando como se tivessem vontade própria. Num piscar de olhos, me agarram pelos pulsos e tornozelos, me levantando do chão como um boneco preso por fios invisíveis.
Fico flutuando, os braços e pernas esticados para os lados, forçado a ficar ereto diante dela. Uma das correntes sobe lentamente até meu pescoço e se enrola com firmeza. Ela aperta. Meus pés não tocam o chão, e o ar me escapa em respirações falhadas, rasas, desesperadas.
Ela começa a puxar.
Sinto meu corpo sendo esticado aos poucos, de forma cruel e calculada. Meus músculos resistem por instinto, mas não por muito tempo. Começo a sentir o tecido se rasgando por dentro — primeiro uma dor aguda, depois um calor estranho, e então apenas a sensação de que tudo está sendo arrancado de mim.
A pele estica. Cada puxão me leva mais perto de ser despedaçado. Meus músculos parecem folhas de papel molhado, frágeis, prestes a se romper.
Mas não dói mais.
A dor ficou para trás. O sofrimento já é parte de mim agora. O que resta é um silêncio interno… e a certeza de que vou morrer aqui.
Mas se for pra morrer — nesse fim patético, estúpido, ridículo — então que seja assim. Rindo. Não vou implorar. Não vou ceder. Não vou entregar a essa desgraçada o que ela quer.
Ela quer me ver quebrado.
Mas eu… eu prefiro morrer inteiro.
— Lucas…
— Lucas…
— Lucas…
As vozes surgem do nada. Baixas, arrastadas… como se o próprio ar estivesse me chamando pelo nome. Um arrepio percorre minha espinha — se é que ainda sinto algo além da dor. Estou no chão, preso, sem forças nem para cuspir o sangue que escorre dos meus lábios.
— O que é isso…? — murmuro, quase rindo de nervoso. — Hahah… não tem ninguém aqui… só pode ser alucinação, né?
Minha garganta queima, seca, mas a risada escapa, trêmula. Meus olhos se movem devagar, pesados, tentando vasculhar a floresta. Mas minha cabeça está imobilizada pelas correntes. Essa vadia… ela vai me matar.
— Lucas…
A voz sussurra de novo. Um som íntimo. Quente. Familiar demais. Não é a voz da mulher maldita. É algo… mais próximo.
— Quem… quem tá me chamando…? — pergunto entre dentes cerrados, mal conseguindo respirar.
Meus olhos cansados tentam buscar a fonte, mas o mundo gira, indistinto. Meu coração bate fraco, irregular. Cada pulsação é como uma gota d’água prestes a secar no deserto.
— Lucas…
— Para… para com isso… — gaguejo, sentindo as lágrimas escorrerem. — Seja lá quem for… cala a boca… Eu tô morrendo… Não quero ser assombrado no meu último segundo… Me deixa morrer em paz…!
Fecho os olhos com força. Tento silenciar tudo. Acabar logo com isso. Mas então…
Algo me toca.
Uma mão.
Quente.
Suave.
Delicada.
Ela repousa contra meu rosto ensanguentado com tanta ternura que, por um momento, tudo para. É como se o tempo congelasse, e com ele, a dor.
Abro os olhos num sobressalto.
E lá está ela.
A pessoa que mais me amou nesse ou em qualquer outro mundo.
A que sempre acreditou em mim mesmo quando eu não conseguia me suportar.
A mulher que chorou por mim, sorriu por mim… e agora está aqui.
— Meu filho… não deixe acabar assim.
É a minha mãe.
Mas não a mãe deste mundo.
É minha mãe verdadeira. Aquela que deixei para trás quando morri.
— Mãe…? — gaguejo, com a voz presa na garganta. — Me desculpa, mãe… eu morri… e fui embora… e nem pensei em você… me desculpa…!
As palavras saem como soluços desesperados. Estou chorando. Como uma criança. Como um bebê recém-nascido enxergando o mundo pela primeira vez.
— Não tem problema, meu filho — ela diz, com um sorriso gentil. — Eu te amo. E estou feliz por ver que você encontrou pessoas incríveis nesse novo mundo…
— Não… tem problema sim! — minha voz falha, mas insisto. — Eu fui um câncer pra você. Um peso. Um parasita. Eu era um fardo, mãe! Você merecia alguém melhor. Um filho de verdade. Eu fui uma desgraça!
Ela se abaixa, acaricia meu rosto com cuidado, como se quisesse me acalmar.
— Lucas… quando você nasceu, foi o dia mais feliz da minha vida. Você foi o presente mais precioso que Deus me deu. Eu morreria por você…
Silêncio.
O sorriso dela se apaga.
— E foi exatamente o que aconteceu.
— Quando te encontraram morto… eu não suportei.
— Eu… me matei.
Sinto um soco no peito. Mas não é físico.
— O quê…? — balbucio, sentindo o mundo desabar.
— Eu não consegui viver num mundo sem você. Você era meu universo. E quando ele desapareceu… eu desapareci junto.
— N-não… — minha visão se embaralha. — Não, mãe… eu… eu matei você…?
— Sim, Lucas. — A voz dela muda.
Mais fria.
Mais cortante.
— Você me matou.
E diferente de você, eu não tive uma segunda chance.
Eu morri… por nada.
O olhar dela agora é vazio. Como se não houvesse mais alma atrás dos olhos.
— Não… não, mãe! — grito, desesperado. — Me perdoa! Eu daria minha vida por você! Eu nem queria essa segunda chance! Eu só queria… só queria ficar com você…!
Ela se aproxima.
— Então pare de resistir.
— Morra.
— E venha comigo.
— Dessa vez… sem retorno.
— Fique ao meu lado… para sempre.
Ela estende a mão com um sorriso macabro. Como se o inferno estivesse escondido por trás de um rosto amado.
— Tá bem… mãe… — sussurro, quebrado. — Eu só quero você… eu…
Mas então…
Paro.
Algo se acende dentro de mim. Um lampejo de lucidez.
— Espera… — murmuro, com os olhos arregalando. — Minha mãe… nunca disse isso.
A mulher pisca. A máscara racha.
— O quê?
— Minha mãe sempre me dizia pra sair de casa. Pra viver. Pra encontrar alguém. Casar. Ter filhos. Ela nunca quis me prender a ela. Nunca quis que eu ficasse pra sempre ao lado dela.
Minha voz agora é mais forte. Os olhos, cheios de raiva.
— Ela queria que eu tivesse liberdade.
— Então diz aí… quem é você de verdade?!
A figura se contorce. Seu rosto começa a rachar como porcelana quebrada. O tom doce desaparece. E tudo vira pó.
— Hahahahahahaha! — a risada rasga o ar. A verdadeira voz da mulher ecoa. — Olha só! Você conseguiu sair do transe! Que resistência deliciosa!
Respiro fundo. Tudo era uma ilusão. Uma armadilha.
E por pouco… eu quase cedi.
Meu corpo está em frangalhos. As correntes me puxam. O sangue escorre em rios. A fumaça da floresta começa a fechar o céu. Mas ainda vejo… um pedaço do pôr do sol.
— Então é isso… — sussurro, com a voz falhando. — Eu vou morrer. Sozinho… Sem ninguém…
Minhas pálpebras pesam. As sombras crescem. Mas lá no alto, por entre as árvores queimadas, ainda escapa um raio de luz dourada.
— Pelo menos… esse pôr do sol… é bonito pra caramba…
Um último sopro.
— Adeus… mundo…

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