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    Era uma manhã fria, no bairro do Brooklyn, a neve decidiu descansar um pouco naquele dia e deu espaço para um céu mais aberto e menos carregado.

    Perfeito para uma caminhada rápida pela manhã… E, é claro, um bom café.

    No passo apertado de sempre, as pessoas começavam a ir para seus trabalhos. Alguns enfrentavam o longo trânsito nova-iorquino, enquanto outros tentavam a sorte nos metrôs superlotados da Grand Central Terminal, os quais faziam os metrôs paulistas parecerem brincadeira de criança quando o assunto era movimento.

    No caso, em condições normais, seria assim…

    Infelizmente, não estávamos em condições propícias, pelo menos não nos últimos anos.

    A cidade em que eu estava, a tão popular e movimentada Nova Iorque, vivia um momento de calma e pouco agito, incomum para a querida cidade que nunca dorme.

    E lá ia eu, pelas ruas desertas, vendo os estabelecimentos fechados, os pontos turísticos vazios em sua maioria, poucos carros estacionados aqui e ali. Mesmo com a neve dos dias anteriores, aquela falta de movimento era inquietante, estranha e deixava claro que algo estava errado.

    Até os movimentados metrôs… outrora sinônimos de lentidão, agora eram apenas referências de lugares a se evitar. Além do mais, tornaram-se terras de ninguém.

    Chegando a um dos pontos mais populares da cidade, geralmente a esquina com maior tráfego nesses horários, a situação estava evidentemente estranha. Afinal, até a própria Times Square, referência em grandes aglomerações de pessoas, estava como todos nós estivemos nesses últimos anos.

    Isolados.

    Presos pelas correntes invisíveis de uma pandemia global que, há pouco tempo, chegara ao seu quinto ano de emergência declarada. E as marcas dessas correntes eram evidentes pelas paredes caídas da cidade, assim como pelas pichações no chão e nos prédios.

    Olhando para o meu lado direito, a longa avenida que se desenrolava à minha frente possuía vários veículos queimados, móveis destruídos e muito vidro no chão. Olhando para cima, era fácil descobrir a origem de tanto vidro: dois prédios com suas fachadas inteiramente destruídas.

    O mundo se sentia preso e em um estado frágil. Essa destruição era o sinal de que as correntes estavam prestes a se partir, mesmo com seus governantes que tentavam constantemente encontrar medidas para controlar os surtos de contaminação daquela droga.

    Ao mesmo tempo, lutavam para não quebrar a economia já fragilizada, por causa das pequenas guerras que ocorriam por baixo dos panos ou, melhor, por baixo das correntes.

    Entrando num beco lateral ao prédio para o qual me dirigia, uma das pichações que marcavam as paredes por todo lado, em cor roxa, característica da infecção da droga, me chamou a atenção.

    Ela dizia: Morte aos traidores em azul! Todos saúdem a nova ERA! HAIL TT!

    Aquele era o lema característico de um dos grupos insurgentes: chamavam-se Neoiluministas. Várias pequenas milícias como essa surgiram nos últimos meses, financiadas por grupos apoiadores da legalização da droga TT, causadora da pandemia.

    “Muitos decidiram pegar em armas, ou melhor… em livros, para atacar a infraestrutura do governo.”

    Eles queriam prejudicar o desenvolvimento de uma vacina o máximo possível. Para o infortúnio deles, não era do meu interesse que fizessem isso.

    Afinal, era meio que o meu trabalho impedir que aqueles prédios governamentais caíssem. Ao mesmo tempo, tinha que ficar de olho em quaisquer traços de contrabando da droga.

    Exatamente por isso eu estava naquele momento andando pelas vielas e becos devastados pelos ataques de ontem. Diversos grupos se juntaram e tentaram atacar o prédio principal do NYC Health: queriam roubar as amostras da droga usadas para os testes da vacina.

    “Esse tipo de coordenação… vindo desses caras, é suspeito. Eles eram rivais até pouco tempo…”

    Falando na droga… percebo que, ao lado daquela sequência de pichações em roxo, havia algumas caixas destruídas da bagunça de ontem. Eram caixas pretas, com tampas reforçadas, supostamente para suprimentos militares. Mas estavam escancaradas, sinal de que roubaram parte das doses…

    Aproximando-me da caixa, vejo um frasco pequeno com um símbolo de guarda-sol do lado, em azul e vermelho alternado. Era a embalagem de uma dose de TT roubada.

    “Tsk… Agora há mais da droga circulando na cidade”

    Aquilo não era bom. Afinal, há pouco tempo, os sintomas da droga estavam se provando piores do que as pesquisas iniciais previam. Era a cereja no bolo de problemas que tínhamos que lidar naquela situação.

    Vendo a embalagem com mais cuidado, percebo que há um papel que, sem querer, deixo cair dentro da caixa escancarada à minha frente, ao lado de uma lixeira cheia de sacos de lixo podre.

    O papel em si era uma bula com os benefícios que a droga supostamente trazia ao seu usuário. Parte da bula estava errada, parte correta.

    Em letras miúdas, dizia: Aumento de energia mágica do usuário várias vezes.

    “Aumentar a energia mágica era uma coisa. Agora, ter que consumir três vezes mais do que a dosagem original era um problema muito maior…”

    Pegando o papel e colocando-o em minha bolsa, me dirigi para o final do beco, a fim de acessar a porta lateral da instalação. Cheguei perto de um cano sujo que servia como uma indicação da entrada da base. Toquei-o, ativando o mecanismo com energia.

    Uma parte da parede recuou, mostrando uma porta falsa. Empurrei-a levemente e entrei na pequena sala. Era simples, mas continha uma mesa circular com várias cadeiras. Era ali que faríamos a reunião do dia.

    Mas acabei chegando bem cedo…

    “Bem, vamos aproveitar o tempo e concluir aquele relatório dos novatos”

    Suspirei. Além do mais, tinha que terminar o relatório que explicava o teste de infecção para os novos membros da SLI.

    Abri minha bolsa, tirei meu notebook rapidamente, coloquei-o em cima da mesa e me aconcheguei na cadeira mais distante.

    Vi o relatório que havia começado há alguns dias. Era basicamente uma página que elaborava o teste de forma rápida.

    O trecho consistia no seguinte:

    O comportamento comum de um usuário do TT seguia o seguinte padrão:


    Um indivíduo que ingere o elixir mágico TT precisa mantê-lo em consumo por, no mínimo, duas horas diárias, para evitar quaisquer possíveis sequelas, que podem variar de dificuldades de concentração, lapsos de atenção e ansiedade até casos mais graves, como vício em altas dosagens de QP e dopamina em um curto período de tempo, levando o usuário a desejar consumir ainda mais da substância. Isso pode causar inibição do sistema endócrino, responsável pela regulação de hormônios cruciais para o desenvolvimento do corpo humano, especialmente em jovens. Uma das formas mais rápidas e práticas de avaliar se o indivíduo apresenta sintomas que podem indicar algum estágio de contaminação é por meio da exposição à leitura de textos longos ou da observação de sua capacidade de acompanhar linhas de raciocínio complexas por um período prolongado de tempo.

    Por exemplo: para o leitor deste relatório, você sentiu dificuldade em ler o último parágrafo?

    Caso sim, devido à extensão do parágrafo, recomenda-se que procure um médico imediatamente, pois este é um dos primeiros indícios de que você teve contato com a droga.

    A dificuldade de leitura concentrada é o primeiro sintoma apresentado pelos jovens da escola de João Batista, um dos primeiros casos vivenciados por nosso Agente de Campo, Sunflower, meses antes do início da pandemia global.

    Ass: Agente Helena Ivyra, Codinome: Clover.

    Aquele simples documento servia como forma de testar os sinais iniciais da infecção.

    A falsa crença de que estavam ficando mais poderosos se tornava combustível para o vício.

    Era o nosso maior problema nessas últimas encruzilhadas com os grupos insurgentes. Quando nossos agentes entraram em contato com os usuários da droga, vários relataram que sua energia mágica crescia descontroladamente.

    Divagando levemente diante da tela do computador, percebo que deixaram um jornal ao lado, na estante do canto da sala.

    Peguei-o levemente e dei uma olhada apenas para passar o tempo.

    Constavam relatos dos ataques dos usuários de ontem à noite. As imagens falavam por si só: era perceptível quem eram os usuários, pois seus corpos e rostos mostravam sinais de cansaço extremo, como fortes olheiras, fadiga muscular e o característico problema dos olhos que nunca ficavam em apenas um lugar.

    Uma das principais manchetes mostrava a existência confirmada de um usuário de grau dois.

    “Droga… Lutar com essas pragas sempre dá problema. Como pode alguém perder tanto a razão?”

    Passando a folha dos acontecimentos recentes, havia a seção interna que mostrava resumos do cenário mundial da pandemia, como uma espécie de plantão dos principais acontecimentos.

    Um trecho chamou minha atenção…

    (…) as organizações nacionais e internacionais tentam colaborar para encontrar uma forma de controlar essa crise, porém, até o momento, sem sucesso.

    “Aparentemente, Chatness estava preparado para esse conflito muito antes da gente… Desgraçado”

    Passando os olhos pelos demais trechos, percebi os diversos relatos sortidos…

    Novos indícios de infecção em áreas que antes eram seguras aqui, novas migrações para zonas de quarentena lá…

    A bagunça padrão de sempre. A rotina dos últimos cinco anos foi assim.

    “Espero que essa reunião de hoje seja esclarecedora sobre as demais frentes…”

    A briga estava acontecendo em várias partes do mundo ao mesmo tempo. Me sentia como Sunny durante a guerra para manter os quadrantes da Terra. É complicado.

    O problema era que havia uma tensão forte rolando nessa cidade.

    E era o meu trabalho prevenir que essa bomba estourasse…

    — Hora de revisitar o ensino médio… — disse para mim mesma, enquanto fechava o laptop. — Preciso escavar algumas memórias.


    Arquivo Confidencial: V-1206-V
    Classificação: Sigilo Alto – Acesso restrito às patentes: Leitor Fanático e Leitor Novato.
    Instituição Responsável: SLI – Sociedade dos Leitores Livres.
    Data da Transcrição: X/XX
    Relator: IVYRA, H. Codinome: Clover.
    Assunto: Relatório de Contenção – Tempo de Contaminação.

    TEMPO DESDE O INÍCIO DO SURTO: 5 ANOS.


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