Capitulo 5: Passado sombrio
O amanhecer nasce suave, tingindo o céu com tons dourados que escorrem pelas copas das árvores altas. A floresta negra, que à noite se transforma em um labirinto sombrio de sombras e sussurros, agora assume uma nova face sob a luz do sol. Os raios dourados tocam as folhas úmidas, os galhos retorcidos e o leito tranquilo do rio, trazendo uma sensação de paz que contrasta com a escuridão da noite anterior.
Em um canto mais calmo da floresta, entre arbustos e raízes grossas, Nina repousa sobre o chão coberto por grama macia. Seu corpo permanece sereno, e sua respiração se mantém leve, quase inaudível. Seu semblante tranquilo não lembra em nada o pânico e a dor que a envolveram no dia anterior.
Depois de alguns minutos, seus cílios começam a tremer levemente. Ela desperta lentamente, como se emergisse de um sonho profundo. Seus olhos se abrem com hesitação, ajustando-se à claridade do sol. E então, ela o vê.
O caçador está sentado ao seu lado, observando-a em silêncio. Um sorriso leve e reluzente e bem visível em seu rosto, irradiando uma estranha paz que contrasta com sua aparência rude.
Nina pisca algumas vezes, confusa, como se ainda não estivesse certa se está sonhando. Porém, aos poucos, as lembranças da noite anterior emergem em sua mente: o toque suave em sua cabeça, a forma como ele adormeceu em seu colo, o calor do momento…
“Espera, então tudo aquilo realmente aconteceu?! Eu pensei que tinha sido um sonho, mas aquilo… a mão dele tocando meu cabelo, e aquele sorriso sincero… tudo foi…”
Antes mesmo de concluir o pensamento, um leve rubor surge em suas bochechas. Ela desvia o olhar, tentando esconder o embaraço.
O caçador nota a mudança de expressão e franze levemente a testa, confuso.
— Hã? O que foi? Eu fiz alguma coisa para a deixar desconfortável? Talvez eu não devesse ter ficado encarando daquele jeito… eu peço desculpas.
— Eu… eu não fiquei desconfortável, não de uma forma ruim, pelo menos… só fiquei com um pouco de vergonha.
Ela abaixa a cabeça, tímida, estende a mão e arruma com cuidado a franja desalinhada. A luz do sol ilumina seu rosto, destacando o rubor ainda presente.
— Está bem, já que você diz. Eu estou preparando o café da manhã, então é melhor você ir tomar um banho no rio. Ele fica atrás dessa rocha gigante.
— Está bem…
Nina se levanta, seus movimentos ainda um pouco lentos. Ela pega o pano e o sabão gentilmente oferecidos por ele, e segue na direção indicada, onde o som da água corrente do rio ecoa por entre as árvores.
Ficando sozinho, o caçador olha para o céu por um instante.
— Essa garota passou por tanta coisa… eu preciso animá-la um pouco para a fazer esquecer daquele sofrimento, nem que seja por um breve momento.
Enquanto isso, Nina chega até o rio. Com delicadeza, ela começa a despir suas roupas gastas, agora encharcadas de suor e poeira. Entra na água devagar, sentindo o calor inesperado do rio aquecido pelos feixes solares que atravessam a floresta e tocam diretamente a superfície. O calor é reconfortante, como um abraço silencioso da natureza.
“Não sei por que fiquei tão envergonhada… ele só estava cansado e, então, dormiu no meu colo, isso não é tão vergonhoso assim. Mas, talvez eu realmente saiba o motivo disso. Ele me salvou e arriscou sua própria vida para me proteger, então é normal que eu me sinta agradecida. Mas por que meu coração fica tão acelerado só de pensar nele?”
Ao pensar no caçador seu rosto cora, e seus lábios se curvam em um sorriso tímido.
Após o banho, ela se veste com rapidez e segue o caminho de volta ao acampamento. Ao se aproximar, o aroma da comida invade suas narinas. Um cheiro tão reconfortante, tão familiar, que ela quase salta em direção ao caldeirão.
Ela observa o conteúdo borbulhante com olhos brilhando de expectativa. O caçador a percebe e fala com naturalidade:
— O que foi? Vai ficar aí parada? Venha e se sente aqui para comer um pouco.
Nina se aproxima lentamente e se senta ao seu lado. Seus olhos, no entanto, não param de encará-lo.
— Eu não consigo parar de pensar nele… e que ontem ele foi tão legal. Ele parecia um príncipe em um cavalo branco, e sem falar que ele é bem bonito também.
— Aqui está, pode pegar e comer sem cerimônia.
Ele entrega a ela um prato cheio de sopa fumegante. A mistura é rica: pedaços generosos de cenoura, cebola e tomate boiam no caldo espesso, enquanto fatias de carne tenra completam o prato. O aroma é irresistível.
Ela experimenta uma colherada, e no mesmo instante seus olhos se enchem de lágrimas. O caçador se assusta, deixando escapar uma expressão preocupada.
— O que foi?!
— Não foi nada, é só que… essa sopa tem o mesmo gosto da que a minha mãe fazia… ela está deliciosa!
— Obrigado, pode comer mais se quiser.
Ela ainda o encara, como se algo estivesse se acumulando dentro dela.
— O que foi? Pode falar, é sério.
— Não, é só que… eu queria muito saber o seu nome…
— É só isso… Está bem, vou te dizer meu nome. Eu me chamo Shinro. E você, como se chama?
— Nina, meu nome é Nina…
— Nina… com certeza esse é um ótimo nome. — ele, dá um sorriso gentil para a garota.
Mais tarde, os dois caminham pela floresta, colhendo lenha seca para o fogo. O som de seus passos sobre folhas secas é suave, e o silêncio entre eles é tranquilo. Mas Shinro percebe um padrão.
“É estranho… Nina não para de me encarar, e, quando eu vou encarar de volta, ela simplesmente vira o rosto. Além disso, ela não para de corar. Será que está com febre? Melhor eu perguntar.”
Depois de juntarem a lenha, voltam ao acampamento. Com cuidado, empilham os troncos em uma estrutura organizada.
— Nina, eu queria te perguntar uma coisa.
— Perguntar?
“Espera, será que ele percebeu?! Não achei que tinha deixado tão na cara assim!”
— Você está com febre?
— Hã?…
— É que você cora muito e também fica me encarando do nada, isso é uma atitude bem estranha…
— Não tô doente, é só que… não deixa pra lá. Eu sou assim mesmo desde pequena.
— Hum… entendi.
“Eu não posso simplesmente falar que estou gostando dele… isso seria muito embaraçoso. Por enquanto, eu vou ter que mentir.”
Com os dois tendo terminado de empilhar a lenha eles então sentam um do lado do outro para descansar. O silêncio paira novamente, como se o momento estivesse preso entre palavras não ditas.
— S… Shinro!
— Hã?! O que foi?
— E… quantos anos você tem?
— Eu tenho 15 anos.
“Isso! Agora eu sei a idade dele. Ele é mais velho do que eu, mas é por bem pouco, então não tem problema.”
— E você, tem quantos anos?
— Tenho 14…
— Entendi. Eu sou um ano mais velho. Eu pensei que você era um pouco mais nova.
— Por quê?
— É que você é bem fofa, e parece até uma boneca…
Shinro observa o rosto de Nina corar intensamente. Ela parece prestes a explodir de emoção.
“Eu? Fofa?! Nem pensar! Sério que ele me acha fofa? Haaaa! Parece até que meu coração vai explodir!”
— Mesmo depois de tudo aquilo, você consegue sorrir. Isso me deixa muito feliz. Quero garantir que você tenha uma vida feliz. É uma pena que uma coisa assim tenha acontecido… comparado a você, eu nunca tive uma infância e nem uma adolescência muito normais.
— Shinro…
Ele desvia o olhar por um momento, como se estivesse reunindo coragem.
— Nina, agora eu vou te contar o que aconteceu no meu passado. Eu nunca contei isso para ninguém. Você é a primeira pessoa a saber sobre isso. Estou mostrando que sou confiável, contando sobre minha história, então espero que daqui pra frente você confie em mim.
— Está bem… — diz Nina, em voz baixa, quase num sussurro.
— Tudo começou há cerca de 4 anos atrás. Nessa época, eu tinha 11 anos…
Quatro anos atrás, em uma pequena vila localizada ao sul do reino de Aknar, o som da da natureza ecoa pelas ruas de terra batida. As risadas de um grupo de garotos preenchem o ar, contrastando com o silêncio pacífico das montanhas ao redor. Entre corridas e brincadeiras despreocupadas, eles se sentem invencíveis, como se o mundo fosse feito apenas para eles. Seus nomes são Shinjo, Carlos, Sabito e Shinro, crianças comuns, unidas pela amizade e pelas travessuras que fazem o tempo passar mais depressa.
Em um certo dia, enquanto o sol começa a cair atrás das montanhas, banhando o vilarejo com um tom alaranjado suave, uma ideia surge entre eles. Uma ideia inocente… que mudará tudo.
— Ei, Shinro, vamos brincar no rio!
— O quê, mas agora? Eu acho que minha mãe não vai deixar.
— Deixa comigo! Se eu falar com jeitinho, num instante ela te libera! — diz Sabito, com aquele sorriso travesso e confiante de sempre.
— Não, nem pensar! Nunca que ela vai deixar você falar!
— Hum… é, que tal a gente chamar o Shin? Se ele falar, com certeza ela deixa!
— Se for o Shin, talvez funcione… está bem.
Shinjo, como é carinhosamente chamado de Shin, é o melhor amigo de Shinro. Ele é esperto, responsável, e mesmo tão jovem, já carrega um certo senso de liderança natural.
Pouco tempo depois…
— Pronto, eu trouxe ele! — Sabito aparece, arrastando Shinjo pela camisa como se fosse um prêmio recém-conquistado.
— Me solta, seu maluco! Eu, por acaso, disse que ia ajudar vocês?!
— Não seja assim! Se você ajudar a gente, eu faço o que você quiser por um mês inteiro!
— Eu já disse que não!
Apesar da resistência inicial, Shinjo acaba cedendo, como sempre. Seu senso de proteção por Shinro e pelos amigos fala mais alto. E com a autorização da mãe de Shinro, eles partem rumo ao rio, ansiosos e animados, como se nada pudesse dar errado.
— Não era melhor ter chamado o Carlos?
— Nah, ele tava gripado, então nunca que a mãe dele iria deixá-lo sair de casa.
— Vamos rápido antes que escureça.
— Era melhor se a gente tivesse vindo mais cedo.
— Para de reclamar, Shin! O que tem se ficar de noite? Não me diga que você tem medo do escuro~
— Claro que não, seu idiota! Vai, anda logo!
A caminhada até o riacho segue tranquila, mas ao se aproximarem da trilha principal, Shinro nota algo. Três figuras se aproximam. São soldados — homens altos e fortes, vestindo armaduras escuras. Seus semblantes são sérios, e uma aura pesada parece envolvê-los, como se carregassem uma ameaça invisível.
Eles param diante dos garotos e os encaram em silêncio por alguns segundos. Seus olhos analisam cada um dos meninos como se estivessem julgando-os em silêncio.
— Ei, garotos, podem me dizer onde fica o vilarejo Aknass?
— Posso sim. Ele fica bem ali na frente. Depois que ver uma árvore com um buraco gigante no meio dela, vocês viram para direita.
— Obrigado.
Sem mais palavras, os soldados seguem seu caminho, sumindo na trilha como sombras silenciosas. Por um momento, o silêncio volta a reinar, e os garotos continuam sua jornada até o riacho.
Ali, a água corre cristalina entre as pedras, refletindo os últimos raios do sol poente. As árvores dançam com o vento suave, e o som das gargalhadas preenche a floresta. Eles brincam, mergulham, jogam água uns nos outros, se esquecendo do tempo.
Mas então… a noite cai.
Ao retornarem, o caminho de volta à vila se torna mais escuro, e o ambiente mais silencioso do que o normal. Shinro franze a sobrancelha. Ele sente algo estranho.
“Mas o quê? Eu tô escutando alguns barulhos estranhos…”
— Pessoal, acho que tem algo errado. Melhor a gente se apressar e ir para a vila rápido.
— Não viaja, Shinro! Ainda temos tempo o suficiente. Hum… espera, você, por acaso, tá com medo de ficar no escuro? Nossa, que crianção! Hahaha!
— Eu tô falando sério!
— Calma, Shinro. E você, Sabito, para de fazer barulho! — Shinjo, tentando acalmar os ânimos.
— Agora você quer mandar em mim como se fosse o líder do grupo?!
— Não é isso!
Enquanto discutem, passos apressados ecoam pela floresta. Shinro imediatamente se vira, os olhos atentos, o coração batendo mais forte. E então… ele vê.
Lá está Carlos, vindo da direção da vila. Mas algo está terrivelmente errado.
O que deveria ser seu amigo está irreconhecível. Seu rosto está distorcido pela dor, um dos olhos foi arrancado, ambos os braços foram decepados, e buracos profundos cobrem seu corpo como se tivessem perfurado sua carne sem qualquer misericórdia. É uma visão grotesca, antinatural.
Shinro sente o chão sumir sob seus pés.
— Haaaaahhhhh!
— O que foi, Shinro?!
Os outros dois se viram. Quando enxergam Carlos, o choque os paralisa. É como ver um pesadelo ganhar vida.
— Vocês precisam fugir… por favor, chamem ajuda… eles… eles vão nos matar… vão matar… todos nós!
As palavras de Carlos saem fracas, sussurradas, e então seu corpo desaba, sem vida, aos pés dos amigos.
— Não é possível… Carlos está morto…
— Isso não pode ser possível, né?! Já sei, deve ser uma pegadinha! — diz Sabito, desesperado, tentando negar a realidade com risos nervosos.
— Isso, por acaso, parece ser uma pegadinha pra você, seu idiota?! Carlos está morto, não está vendo?! — grita Shin, com seu rosto completamente sério e pálido.
— Droga, mas por quê…? Quem mataria ele?!
— Eu não sei… vamos voltar pra vila, rápido!
Eles correm. Os pés pisam a terra com desespero. O coração martela no peito. E então… eles veem.
A vila que antes era cheia de risos e vida agora é um cenário de puro horror.
Corpos dilacerados, sangue espalhado como tinta em uma tela de morte, braços e pernas jogados como se fossem lixo. Cabeças decepadas. Há cadáveres abertos ao meio, com tripas, pulmões, intestinos pendurados, expostos. Um fedor insuportável de sangue e carne queimada invade suas narinas.
Mas o que eles não esperavam é que os assassinos eram os mesmos soldados que haviam indicado o caminho. Eles caminham pelo vilarejo como ceifadores, com suas lâminas ensanguentadas, matando sem piedade, sem hesitar, sem olhar para trás. Eles encaram de frente aquele massacre completamente desumano.
Os três garotos assistem tudo paralisados. Seus olhos não compreendem o que veem. É como se suas almas gritassem em silêncio. Shinro, especialmente, sente o mundo desabar. O terror toma conta de cada célula de seu corpo.
Naquela noite, a vida desse garoto tinha se tornado um verdadeiro inferno.
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