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    Acabou.

    Tudo… simplesmente se esvazia dentro de mim.

    Minha vontade de viver escorre como areia entre os dedos. Minha força de vontade, que sempre me sustentou nos momentos mais sombrios, se desfaz como fumaça. Meus sentimentos, antes tão intensos, agora são só ecos distantes. Minhas memórias começam a se apagar, como fotos queimadas lentamente. Meus sentidos se desligam, um por um, até o mundo ao meu redor parecer apenas um borrão sem cor, sem som, sem dor.

    Sinto meus olhos perderem o brilho azul que os tornavam únicos. Aquela luz, aquela chama… morreu. Estou vazio.

    Meu corpo… um mar seco. Nenhuma gota de vida, nenhum sopro de alma.


    Mas, curiosamente… não é ruim. É estranho dizer isso, mas… é bom.

    A dor se foi. Aquela maldita dor que me consumia por dentro, me fazendo desejar o fim… desapareceu. Silenciou. Finalmente. Um alívio morno me envolve como um cobertor após uma longa noite fria.

    E, por mais absurdo que pareça, não me sinto triste por deixar tudo para trás. Pelo contrário… me sinto em paz. Tenho certeza de que Aiza e Kael são fortes. Fortes o suficiente para enfrentarem tudo que vier, fortes o bastante para esmagar aqueles malditos que causaram tudo isso. E quando vencerem… espero que façam um funeral digno pra mim.

    Quero que seja bonito. Não precisa ser grande, nem cheio de gente. Só quero que minha tia… a Aiza… o Kael… e a Laila estejam lá. Se forem só eles, já vai ser mais do que o suficiente. Mais do que eu mereço, talvez.

    Uma lágrima escorre do meu olho morto, sem brilho, sem vontade. Uma última gota de humanidade em um corpo que já não sente mais nada.


    Então, tudo se apaga.

    Preto. Um vazio absoluto.

    E, de repente… eu estou ali. Diante de mim mesmo. Frente a frente com meu próprio corpo morto, suspenso no ar por correntes que brilham fracamente num tom sombrio.

    O que é isso? Um pesadelo? Uma alucinação?

    Já ouvi falar que, nos últimos instantes, quando o coração para, a mente continua funcionando por alguns minutos… dizem que nesse tempo a gente revive a vida inteira. Mas isso? Isso não é lembrança. Isso não é nostalgia. Isso é insano.

    Estou olhando para mim mesmo. E isso… isso não é normal.

    Minha mente… talvez esteja quebrada mesmo.


    Me viro devagar, ainda atordoado, e vejo uma fogueira acesa atrás de mim. Suas chamas não aquecem… apenas dançam num ritmo estranho, como se pulsassem com algo vivo e antigo.

    E à frente dela… alguém está lá. Me observando em silêncio.

    A presença dessa pessoa ou o que quer que seja é sufocante, mas ao mesmo tempo… familiar.

    — Q-quem é você? — pergunto, a voz trêmula, arrastada pelo medo e pela confusão. Não sei o que fazer. Não sei o que esperar.

    Mas ele não responde. Nem se move.

    Apenas levanta o braço esquerdo lentamente… e com a palma da mão voltada para mim, diz com uma voz profunda, como um trovão calmo ecoando no vazio:

    — Não volte aqui tão cedo.

    — O que… — minha frase morre na garganta, sufocada pela surpresa do que acabou de acontecer.


    Em um piscar de olhos, estou de volta. De novo naquele lugar sombrio… onde morri. Só que agora meu corpo respira. Meu peito sobe e desce, arfando. Estou vivo. Vivo. Jogado no chão como uma carcaça inútil. Como um coelho abatido, descartado após uma caça sem propósito. Sujo, esquecido, um fardo sem valor. Tão miserável que nem serviria de alimento.

    Abaixo de mim… sangue. Muito sangue. O chão está completamente encharcado, como se ali tivesse acontecido um massacre. Meu massacre.

    Por instinto, por puro nojo de mim mesmo e da cena grotesca à minha volta, me levanto o mais rápido que posso. A tontura vem como um baque, mas eu me forço a continuar. Cambaleante, corro até uma árvore próxima… e vomito.


    O gosto ácido invade minha boca. O enjoo toma conta de mim, como se meu corpo tentasse expulsar não só o conteúdo do estômago, mas toda a lembrança horrível da dor e do que vivi.

    Termino, ofegante, e limpo a boca com as costas da mão, tentando encontrar algum resquício de dignidade.

    Mas… espera.

    Eu tô me mexendo? Eu consigo me mexer!

    Não sinto dor. Nenhuma. É como se… como se tivesse acordado de um sonho profundo e restaurador. Me sinto cheio de energia. Vivo de verdade.

    Começo a pular no lugar, testando meu corpo. Cada movimento é leve, solto. Como se minha carne e ossos fossem novos. Um milagre.

    Mas minha alegria dura pouco.

    O que aconteceu comigo? Onde está ela?

    Aquela mulher maldita… com aquelas correntes demoníacas. A lembrança explode na minha mente como um raio. Em segundos, revivo tudo. Cada dor. Cada humilhação. Cada grito. Parece que está acontecendo de novo, e meu corpo estremece só de lembrar.

    Não importa. Eu tenho que encontrá-los.

    Aiza… Laila… Kael…

    Principalmente a Laila. Ela… ela não sabe se defender. E depois de tudo que vi… depois do que ela pode fazer… percebo o óbvio: nós não temos chance.

    Nem eu, nem a Laila, nem mesmo a Aiza.

    Mas eu tenho que tentar. Tenho que encontrar a Laila primeiro. Pelo céu vai ser mais rápido. Se eu conseguir voar…

    Ergo minha mão, respirando fundo. Tento sentir a mana. Me concentrar. Reunir o mínimo de energia para formar um escudo de sustentação, algo que me faça flutuar. Qualquer coisa.

    Nada.

    Não sinto nada.

    Me concentro mais. Forço tanto que meu corpo estremece. Tão intenso que quase me dá vontade de… cagar.

    — Merda… — sussurro, desesperado. — Merda, merda, merda! O que tá acontecendo comigo?!

    Não posso perder tempo. Eles estão lá fora. Sozinhos. Vulneráveis. E eu aqui, sem conseguir fazer nada. A mana sumiu. Mas eu não posso parar.

    Então vou. Do jeito que der. Correndo. Como um idiota, como um humano fraco, mas com o coração queimando.


    Corro pela floresta sem olhar para trás, mergulhado na escuridão da pior noite da minha vida… em busca da minha família.

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