Capítulo 31: Vilarejo
As vozes ecoaram profundamente, atravessando o corpo e atingindo a alma do ouvinte, espalhando ao horizonte a injustiça oculta, e o seu desejo em não prosseguir com o que tinha que fazer.
Sua presença tinha um aconchego gélido, mas, em seu olhar, havia o calor necessário para apagar as lágrimas, ao mesmo tempo em que fechava o seu coração para o que achava certo.
S4 — Eu vim aqui para introduzir uma prévia dos sonhos que te perseguirão até que a paz te separe da dor. Meu trabalho é mostrar-lhe a vida das pessoas que tu mataste recentemente, transformando-as em suas sombras.
A pétala da dúvida pousou no olhar de Ônix, arregalando-os por um momento. O que aquele sistema escuro tinha dito era verdade? Além do que ele já sofre, ainda terá sonhos incômodos todas as noites?
A dor pousou nas pálpebras. Seus olhos fecharam-se lentamente, agulhas cravaram em seu peito, mas a culpa o envolveu como uma névoa grudenta e traiçoeira.
“… Se fui eu quem os matou, essa punição é justa.”
Mesmo que repita isso infinitas vezes em sua mente, justificando sua dor com as mortes que causou, ou que tente inventar uma história que justifique um pouco de sua dor… Nada disso vale, pois até mesmo ele sabe que nada disso responde.
“Eu… Não tenho nada a reclamar.”
Abriu os olhos, indo contra as lágrimas que escorriam da alma. Com a pouca força que tinha, moveu-se para o sistema, atentando-se ao que ele poderia dizer.
S4 — Darei início. Envolvê-lo-ei em escuridão. Tu não terás um corpo, sua perspectiva será como a de um drone que obedece aos comandos de quem o porta.
O que foi dito estava prestes a acontecer. As partículas que formavam aquele sistema desapareciam pouco a pouco, abandonando sua interface até que ela desaparecesse.
Sua presença foi-se tão rápido quanto a queda de um raio. O abismo abraçou Ônix tão rápido quanto uma mãe desesperada para proteger seu filho.
Nada existia à sua frente. O silêncio tomou conta dos tímpanos. O frio alfinetava seu corpo, o incômodo apertava seu coração, e os pulmões se negavam a respirar.
Seu coração parecia pulsar alegremente, espalhando a presença que tinha em cada fibra do corpo de Ônix, mas isso era só uma tentativa desesperada em mantê-lo consciente.
Nenhum pensamento percorria sua mente, nem mesmo indagações ou autoconsolo. Não podemos chamar isso de silêncio, o que existia nele era solidão.
Os olhos abertos mais pareciam fechados. A vida que tinha era tão pouca que não sabia diferenciar se estava acordado, ou se sequer ainda estava vivendo.
Em meio ao seu ambiente monótono, algo começou a abraçar a sola de seus pés, como se os aconchegasse, entregando-os a um solo tão macio quanto algodão.
As agulhas deixaram de existir, sendo substituídas por ar puro, que pousava em suas narinas gentilmente, enquanto massageava com carinho os olhos, abraçando seu corpo com delicadeza.
Um calor, tão confortável quanto o doce, caiu sobre ele como a água em tempestade, iluminando seus olhos com um brilho tão aconchegante quanto um casaco no frio.
A escuridão abandonou suas pálpebras. Os olhos, depois de tanto tempo, puderam presenciar um lugar tão puro e calmo, como se ali não existisse maldade alguma.
Uma grama tão verde que parecia irreal, movimentando-se com o ar como se tivesse vida própria. Incontáveis árvores existiam no horizonte, dançando com suas folhas como se fossem crianças.
Por fim, casas de palha existiam sob o solo, com uma aparência tão simples, mas, também, tão sincera. Cada pequena parte da moradia exclamava o amor e paciência que lhe fora dado.
As narinas de Ônix abraçaram o ar profundamente, e os pulmões esticaram-se em alegria. Pela primeira vez, em muito tempo, finalmente sentiu-se vivo.
No entanto, uma estranheza percorreu seu peito. Ainda que estivesse agraciado com o ambiente saudável ao seu redor, algo parecia estar faltando.
Seus instintos sussurraram para que ele olhasse para baixo, e assim o fez. Para sua surpresa, mesmo que sentisse a grama, seus pés, tampouco suas pernas, estavam ausentes.
Os olhos arregalaram-se ligeiramente. Como podia pisar, sentir-se firme, mas, na ausência de uma base? Isso também era algo desse mundo ou fazia parte da transmissão?
Começou a mover os dedos, sentindo-os colidir com o gentil vento que os rodeava. Moveu-os rente ao seu rosto, mas, também, não havia nada lá.
Direcionou sua mão para o peito, e pôde senti-lo sem problemas, mas, ao tentar observar, não conseguia enxergar seu próprio corpo, nem sequer um membro.
Demorou um pouco, mas, eventualmente ele percebeu: estava invisível. Nada, nem mesmo ele, poderia enxergá-lo, provavelmente nem mesmo senti-lo.
“Que… Estranho.”
Perdeu-se por alguns segundos nesse evento. Saltitou, enquanto levava os olhos ao céu, com o ar massageando tanto seu corpo quanto os pulmões, fechando os olhos em gratidão.
“Eu não me importaria… Em ficar aqui para sempre.”
De repente, algo gélido e agudo tocou o seu peito, como se tentasse puxá-lo para um lugar distante e isolado. Com o intuito de descobrir o que lhe incomodava, abriu os olhos.
“O que será agora?”
Não havia nada à sua frente, mas o incômodo não recuou. Moveu os dedos para o peito, mas, nada, senão a angústia abrupta, estava existindo lá.
Os olhos espremeram-se, expulsando a pouca alegria que ali restava. Seus lábios torceram-se ligeiramente, enquanto o pensamento negativo criou seu império:
“… Eu realmente não posso ter paz.”
O abraço da grama começou a se distanciar de seus pés, tocando-os com as pontas, até que estivessem fora de seu alcance, deixando-o flutuar com o vento.
O incômodo em seu peito ampliou-se, logo tornando-se uma força que o puxava para algum lugar gentilmente, com uma velocidade tão alta quanto um idoso caminhando.
“Estou indo para algum lugar…?”
Distante de seu rosto, havia uma casa de palha, mas não estava tão longe para não poder enxergar. A luz do sol parecia ter um favoritismo com aquela moradia, iluminando-a com mais destaque que o restante.
“Deve ser ali.”
De repente, a gentileza transformou-se em violência. O puxão em seu peito aumentou drasticamente, direcionando-o para aquela casa como se estivesse carregando-o em um jato.
Em um estalar de dedos, já estava frente à casa, mas, mesmo assim, continuou acelerando sem controle. As mãos rapidamente moveram-se para seu rosto, e os olhos fecharam-se por instinto.
Passaram-se alguns segundos, e nada havia acontecido. Uma textura firme e gélida parecia grudar seus pés no chão, enquanto um frio agradável ofereceu boas-vindas para seu corpo.
Mesmo inseguro, abriu os olhos pouco a pouco, absorvendo os detalhes. O chão era feito de madeira, mas, era puro e limpo demais para acreditar que alguém passou por lá.
Havia móveis no horizonte, e alguns eram de uma tecnologia que deveria ser avançada demais para aquela casa, como se algo sussurrasse que aquele lugar não era algo normal.
Uma televisão tão grande quanto um carro, e a tela mais limpa que a água filtrada, sendo segurada por um suporte de madeira, que parecia sorrir para o chão.
Ar condicionado grudava na palha com uma facilidade difícil de acreditar. Como um item tão pesado poderia estar preso em algo tão leve?
Por fim, atentando-se um pouco para a direita, um sofá grande e cinza parecia ser mais macio que o algodão, tendo firmeza no solo, garantindo que de lá ele não iria sair.
Um globin estava deitado acima dele, com algumas gotas de suor escorrendo pela bochecha, enquanto as pálpebras pareciam tremer em ansiedade e preocupação.
Em sua barriga, um bebê de sua espécie estava adormecendo pouco a pouco, com uma pequena e inocente baba escorrendo dos lábios macios.
Quando finalmente pegou no sono, aquela criatura adulta suspirou em alívio, fechando brevemente os olhos para que pudesse descansar do breve estresse acumulado.
Suas mãos tremiam ligeiramente, os olhos semiabertos imploravam para que nada despertasse o bebê de seu sono, mas, ele tinha que sair daquele sofá de alguma forma.
Respirou fundo, absorvendo o máximo de confiança que podia, entrando em ação logo em seguida. Moveu as mãos cuidadosamente para a cintura e costela de sua criança, pausando ligeiramente para respirar.
Como se tentasse levantar um leão adormecido, agarrou-a com cuidado, a movendo para o céu em seguida, enquanto fitava seu rosto inocente como um anjo.
Começou a mover suas pernas de uma forma tão lenta que mal dava para acreditar que elas realmente estavam em movimento, até que alcançassem o solo.
Firmou seus pés no chão, levantando-se tão rápido quanto uma tartaruga. Estava quase tudo pronto, faltava apenas o toque final: posicionar o bebê no sofá.
O coração pulsava como um tambor em fúria. Seu corpo tremia tanto que parecia quebrar como caco de vidro, mas, agora era tarde demais para recuar.
Com todo o cuidado que o mundo tinha para oferecer, moveu-a para o sofá, soltando-a gentilmente enquanto a observava com plena atenção.
O rosto do bebê começou a pender para a esquerda. Seus lábios torciam-se lentamente, até que estivessem totalmente curvados, como se estivesse prestes a chorar.
O globin adulto começou a suar frio. Seus olhos arregalaram-se enquanto um rio de preocupação e ansiedade acertavam seu corpo como uma flecha impiedosa.
“Por favor…”
De repente, a curvatura transformou-se em um sorriso gentil, e o bebê permaneceu estático, sinalizando para o mundo que finalmente tinha conseguido adormecer.
Seu pai suspirou aliviado, com um largo sorriso tampando o rosto. Ainda com cuidado, caminhou para uma porta, abrindo-a com lentidão para que não fizesse barulho.
Do outro lado, havia uma mulher globin. Sua pele era tão macia e cuidada que parecia irreal. Seu cabelo, longo e ondulado, parecia amaciar o chão em gentileza.
Ela olhou para trás. Os olhos azuis brilhavam como o céu, e seu sorriso era mais luminoso que o sol. Sua voz, como um sussurro dos anjos, perguntou ao seu amado:
— Conseguiu, meu amor?
O conforto abraçou o coração daquele homem. Sua ansiedade desapareceu, substituída por um amor infinito. Com um singelo sorriso, respondeu com confiança:
— Sim!
Próximo capítulo: Vilarejo (2)
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