Capítulo 22 - Terceiro distrito
O Oitavo Distrito mergulhava na calmaria.
Casais trocavam beijos roubados e conversas que os levavam para longe da realidade, enquanto patrulheiros contavam os minutos para o fim do turno.
Presos em um instante frágil e silencioso que ousavam chamar de paz.
Uma criança birrenta.
Não vem quando é chamada, e, quando chega… não fica por muito tempo.
Como todas as coisas boas, tem data de validade.
Esvaem-se com o tempo.
Oh, relativo tempo.
E do outro lado, no Terceiro Distrito, nas bordas escarpadas dos Vales dos Bastardos, onde deuses haviam pintado carnificinas com o sangue de seus mestiços, a guarda mantinha os olhos arregalados.
Ali, até o farfalhar da relva parecia conspiração.
Dois mil anos antes da última guerra e, desde então, há uma grande medo de que tudo retorne.
— Então… Asael Dagan tá mesmo treinando aquele humano? — soltou um ruivo de cabelos longos, que caíam como chamas pelas costas.
Veste branca, impecável, e seu brasão, cheio de cicatrizes do tempo.
Era um dos quatro lobos da Dama da Luz.
— É… querem transformar aquela anomalia em um Guardião. Coisa do maluco do Elyah. Ehr… às vezes agradeço aos céus por ele não ser o nosso chefe.
Sua face passou da seriedade à vermelhidão de um tomate maduro.
— E… sim, a senhorita Liora, né?
Tentou disfarçar, mas a expressão o entregava.
Seus olhos azuis brilhavam como lápis-lazúli sob o luar – havia ali mais do que admiração.
Era paixão.
Aquela típica devoção adolescente por uma figura inalcançável…
O colega arqueou uma sobrancelha, o canto da boca curvado num meio sorriso malicioso.
— Hmmmm… então é desse jeito?
— Cala a boca — rebateu, virando o rosto, como se o vento pudesse apagar o rubor — Não é o que você está pensando! A senhorita… é minha inspiração!
O sorriso do ruivo ganhou um ar relaxado.
— Sei…
— Não vem com essa! Você sempre me zoa… é incrível!
— Eu tô só brincando, esquentadinho… — Então freou os passos — Mas não é como se ela fosse exatamente um poço de maturidade… — Apoiando-se no parapeito — Quando fazíamos patrulhas fora, ela corria atrás do perigo como se fosse um bichinho de estimação.
— Espera… você a conhece nesse nível? — surpresa iluminando os olhos, como quem descobre uma fofoca imperdoável de se ficar de fora.
— Foi mal… mas sim.
Aproximou-se, segurando-o pelo ombro, ansioso como uma criança diante de um contador de histórias.
— Então me diga… é verdade? Que o Eco dela resplandece como o nascer de uma estrela?
O sorriso surgiu sem permissão, tingido de admiração.
Se tivesse um herói, seria ela.
— É… como dizem. E o Atzmut dela… é assustador. Lindo e… terrivelmente poderoso. Quase fiquei cego ao ver sua manifestação. Acredita?
— Acredito! Cacete… então talvez… talvez ela seja mesmo a mais forte dos Quinze?
— Não dá pra afirmar com Elyah, Ben Elohim e Yotzer Hadimyôn na equação. Mas… acho que ela é a mais próxima de superar qualquer um deles.
— Caramba… você fala como quem viu com os próprios olhos…
— Porque vi. Já estive com ela em várias reuniões gerais. Mas calma… um dia será você, camarada.
Ele sorriu largo, pronto para se deixar levar por aquele instante de orgulho emprestado – como se o futuro já estivesse ali, ao alcance do parapeito.
Mas, antes que pudesse saborear o elogio, a realidade o devolveu como uma pancada.
Uma explosão.
Seca, brutal – como o estrondo de uma estrela morrendo.
A mata aos pés da muralha se curvou, tremendo como se implorasse por misericórdia.
E então… o terror atravessou o limiar.
Não era um rugido.
Não era um grito.
Era o silêncio que vinha logo depois do que mais feria.
E, de dentro da cortina de poeira…
…alguém ou algo, deu um passo.
— É isso que a falta de paranóia proporciona a vocês… — sussurrou a criatura.
Dissonante demais para pertencer a um portador do Eco.
Não precisou levantar a voz.
Ela não era feita para ser ouvida. Era feita para ser sentida, como o frio que entra pelos ossos.
Descalço.
Peito nu, mãos vazias.
Pele pálida como o ventre da morte.
Vestia apenas um trapo negro – se é que aquilo podia ser chamado de roupa.
Algo que parecia ter sido costurado com o próprio breu.
Mas o que mais paralisava… eram as asas.
Negras.
Como a ausência. Movendo-se como chamas profanas e escuras.
Triunfante. Caótico.
Seus olhos se estreitaram, pronto para terminar seu serviço.
Havia algum sobrevivente?
Sim.
Revelado por entre um sopro de poeira: o ruivo, com as vestes meio rasgadas.
— Uma… sombra…? — murmurou, voz trêmula, sentindo o sangue quente descer em trilhas pela testa, queimando como ferro em brasa.
Seus olhos turvaram, de repente.
Os sons ao redor chegaram abafados, como se viessem debaixo d’água. Gemidos. Estalos. Fragmentos de vozes presas em outra camada da realidade.
Seriam seus companheiros… vivos? Ou já parte do silêncio?
O fervor subiu-lhe à cabeça como febre.
O chão girou. O mundo perdeu nitidez.
E no centro de tudo…
…aquela presença escura, imóvel.
— P-pessoal…!?
Ele tentou se levantar – o corpo um gatilho prestes a disparar.
Mas bastou um piscar de olhos.
Erro fatal.
O ser já estava ali. A centímetros.
Ele não viu o movimento.
Só percebeu que algo havia mudado…
…quando notou a ausência do próprio braço esquerdo.
Fatiado.
Não por uma lâmina.
Mas pelo braço da sombra que se movera rápido demais para ser visto.
Como se o ar, por um instante, tivesse se transformado em guilhotina.
Ele é rápido demais!
Quando o sangue gotejou aos seus pés, ele se jogou para trás, num reflexo desesperado.
Sua presença é… terrível, como a de um deus!
Mas não é um deus.
Não…
E também não era uma sombra qualquer.
— É impressionante que você consiga se manter de pé, mesmo após ter sentido na pele a explosão de uma Göttlichkeit… — limpou o braço sujo de sangue, balançando-o com leveza; era esguio, até demais — Mas, mesmo sendo tão resistente, ainda não é digno de manchar minha Bösespiegel!
No fim da palavra, ele percebeu.
Num reflexo, viu onde antes estava o braço do ser uma lâmina negra.
E…
decifrar o que, afinal, era seu inimigo.
— Hachaos…
Bastou uma palavra, dita em choque.
Sua aura explodiu, escarlate.
A besta não recuou.
Olhou para a ventania que tentava empurrá-la.
— Lutará? Que… desperdício… Seu desespero podia te salvar. Agora, sua coragem vai te matar!
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