Capítulo 9 - Alados
Gakina, apesar de ter sido a primeira a sair da embarcação, não chegaria tão cedo. Eu ainda não sabia como Danibor seria capaz de transportar Ralik e Fenriz até a ilha sem ser visto, então por enquanto seria apenas eu e Baplin. Com nossos familiares, é claro.
Toquei no objeto que estava em meu ouvido, torcendo para que ele transmitisse minhas palavras.
— Se parecem com zephyres. — Falei. — Estão voando acima dos escombros, com asas com penas.
Baplin confirmou com um aceno de cabeça, ao meu lado. Deduzi isso como se ele fosse capaz de me ouvir pelo comunicador também.
A maioria das tribos nahuales possuem não apenas traços feéricos, mas também ferais. Os zephyr é uma dessas tribos, com uma forte ligação com animais voadores. Geralmente possuem pelo menos uma característica que os evidenciam sua ligação animal: penas, bicos, garras e asas. Não são restritos a apenas uma dessas características, mas limitados a terem pelo menos uma delas, como se nunca pudessem deixar de ser pelo menos uma parte animal.
Não era muito comum os encontrar na cidade portuária de Gávoia, embora um ou outro pudessem passar por lá de viagem de vez em quando. Nossa tribo, que não tinha traços animais e se parecia mais com os humanos, era predominante naquela região.
Alguns nos chamavam de meio-nahuales, já que não podíamos alterar nossa forma nem a bel prazer como os grão-nahuales são capazes de fazer e nem parcialmente, como as outras tribos. Era um termo ofensivo, usado em tom pejorativo para indicar a presença de sangue humano em nossas veias.
— Uma das raças invasoras possui asas. — A voz de Danibor surgiu de surpresa, quase me assustando. — Avancem com cuidado, são poderosos.
Assenti, como se ele pudesse me ver para visualizar a resposta enquanto eu e Baplin descíamos das costas de Victoria.
Descer a montanha a pé foi um verdadeiro trabalho. Não que eu fosse ficar cansada apenas com essa trilha íngreme, mas por conta do tempo necessário para se aproximar mais.
Lazil era uma ilha com muitas árvores. Protegida dos ventos do leste e da brisa marítima pela cadeia montanhosa que havíamos acabado de passar, as árvores ali naquela região haviam sido capazes de crescer com facilidade. Conseguimos seguir na cobertura pelas árvores, mas Vic não conseguia se mover com tanta facilidade por conta do pouco espaço entre a copa das árvores.
— Eu vou ficar para trás. — Ela disse através do nosso laço. — Se eu for junto, irei apenas atrasar o nosso avanço… Mas irei ficar por perto, para quando precisar de mim.
Olhei para ela, suas escamas verdes refletindo brevemente o brilho da lua, mas não o suficiente para chamar a atenção. Mais como um brilho opaco.
— Se você precisar, venho correndo. — Garanti para ela enquanto passava a mão ao longo do seu pescoço, alisando sua armadura natural.
Kairin estava comigo ainda. Agora eu tinha força o suficiente para lhe carregar no braço levantado, como minha avó fazia com Percevarez, mas eu ainda precisava colocar um pequeno reforço de energia prismática Vermelha para deixar o membro um pouco mais forte do que o normal.
Não demorou para que o cheiro de fumaça nos alcançasse, passando pela peneira natural feita pelas árvores e indicando que estávamos próximos da origem da destruição. Entre as árvores, era possível ver as criaturas voando nos céus, agora com mais facilidade por conta da aproximação.
O fogo, que vinha de baixo, os iluminava em um aspecto sombrio de mais. Permitia que eu visse suas formas, que se pareciam muito com os humanos, com exceção do par de asas em suas costas. Não apenas um par… Pares. alguns tinham mais de duas asas, com quatro ou até seis. E elas batiam, mantendo-os no ar.
Utilizavam uma armadura prateada, praticamente completa. Cobria desde seus pés até seus troncos, embora não fosse possível distinguir se usavam elmo ou não.
Estavam sobrevoando o que parecia ser uma construção de três andares, embora o terceiro andar estivesse com seu teto totalmente aberto. Daqui de baixo, não era possível ver o que eles estavam fazendo ali especificamente, apenas que o lugar atraia sua atenção.
— Não deveria ter corpos? — Kairin perguntou.
Olhei em volta, buscando qualquer indício de feridos ou mortos, mas não encontrei nenhuma vítima. Era possível ver, do limite das árvores onde a floresta começava, que a cidade era pequena demais. Quase como um vilarejo. Muitas construções haviam sido destruídas e manchas de sangue estavam espalhadas nas paredes e nas ruas, mas não dava para distinguir sua origem.
A porta de uma das casas se abriu e uma das criaturas aladas saiu de lá de dentro, as asas recolhidas para não lhe atrapalhar enquanto caminhava para fora. Com o braço direito, arrastava uma criança pelo chão. Ela se debatia, tentando se soltar, mas a pegada do agressor parecia firme demais.
Eles estavam muito perto. Menos de dez metros nos separaram e eu me abaixei um pouco mais, quase que instintivamente. Baplin havia feito a mesma coisa, com Barkot ainda em seu ombro.
O alado levantou a mão, acenando para um dos que estavam lá em cima. Quando ele se virou, a luz do fogo iluminou seu rosto, mostrando um olhar duro e um sorriso debochado. Ele era loiro e parecia muito alto. Provavelmente tinha uns dois metros de altura.
Um dos alados que estava voando bateu as asas e posou ao lado dele.
Afiei meus sentidos, aguçando minha audição para que fosse capaz de entender o que eles estavam conversando.
— Coloque ela com os outros. Nosso alvo deve chegar logo. — O recém-chegado falou.
Ele tinha dois pares de asas. As primeiras eram maiores, acima dos ombros, enquanto o segundo par nascia cerca de um palmo mais baixo, menores. Seu cabelo preto era bem curto e ele trazia uma espada embainhada na cintura.
— Senhor… Ela é só uma criança. — O primeiro respondeu, ainda segurando o capturado.
Houve um momento de silêncio entre os dois, com eles se encarando pelo que pareceu uma eternidade.
— Certo… Você está certo. Leve a criança para junto das outras. — O segundo alado respondeu.
Eu olhei para Baplin e ele respondeu com um aceno de cabeça, se deslocando com cuidado pelas árvores para acompanhar a criança e descobrir o que estavam fazendo com ela. Não demorou muito e, misturando a escuridão da floresta com suas habilidades de se deslocar furtivamente, eu já não era nem capaz de lhe enxergar mais.
Retirei o arco que carregava nas costas, me certificando de que sua corda estava preparada para o caso de surgir qualquer imprevisto e peguei uma única flecha na aljava em minha cintura.
— Precisando de mim? — Vic perguntou, provavelmente sentindo a antecipação em minhas ações.
E eu quase podia sentir a dela também.
— Ainda não. São muitos, fique escondida. — Pedi.
O alado que parecia ter o comando, subiu novamente para se encontrar com outros e, daquela distância, mesmo meus sentidos aguçados não seriam o suficiente para me ajudar a ouvir, o fogo crepitando alto e a própria cidade parecendo gemer de dor enquanto suas construções queimavam.
— Eles sabem de nós.. — Gakina falou através do comunicador. — Estou no barco deles e eles estão com uma unidade pronta para atacar a qualquer momento.
Deveria ter pelo menos uns vinte alados no céu, tirando aquele que já havia ido embora há pouco. Com outra unidade ainda disponível para destacamento, mesmo que eles não fossem poderosos como Danibor havia dito, teríamos dificuldade em lhes enfrentar.
— Mantenha distância e não faça contato. — O general ordenou.
Por que Ralik estava tão quieto? Era estranho que ele, aquele que costumava ser nosso líder, estivesse apenas ouvindo o que meu tio falava sem apresentar nenhum contraponto ou argumento.
O ruído de um galho se quebrando me fez olhar subitamente para trás, apenas para encontrar um homem me olhando. Eu deveria ter ficado muito concentrada e não o vi chegar.
Ele estava com o galho que chamou a atenção nas mãos, cada metade em uma delas. Ele havia escolhido fazer aquilo. Poderia ter me atacado e eu sequer saberia de onde o ataque veio.
A silhueta avançou um pouco, saindo das sombras das árvores e chegando aonde o fogo da cidade lhe alcançava, revelando-se. Seus cabelos eram vermelhos e longos, se perdendo atrás de suas costas. Por conta da iluminação instável das chamas, parecia oscilar como se estivessem sendo soprados pelo vento, embora não estivessem.
Assim que saiu totalmente da sombra, vi que ele também usava aquela armadura prateada e carregava um par de asas em suas costas.
Era um dos inimigos.
Kairin deu um rasante baixo, liberando sua pegada em meu braço e avançou na direção da criatura com velocidade. Suas garras, estendidas, eram capazes de dilacerar presas com facilidade.
Eu não iria lhe deixar atacar sozinho. Armei a flecha que já tinha deixado preparada, mirei no recém-chegado e aguardei apenas um único segundo antes de disparar, ajustando o tempo do projétil com o ataque de Kairin para que o alado tivesse que escolher: ser ferido pela flecha ou pelas garras do meu familiar.
Ele se moveu na direção da minha flecha e a pegou com a mão direita, a poucos centímetros de atingir seu rosto enquanto Kairin passava no vácuo onde ele estivera antes.
— Atirar uma flecha contra mim deve ser considerado pecado em algum dos três reinos, mas não tenho certeza. — Sua voz era suave e eu podia jurar que não carregava nenhuma intenção de batalha.
— Agora… Eu pediria para você manter seu dragão afastado, se não eles vão ver ela se aproximando e você vai ser descoberta. — Ele quebrou a flecha entre seus dedos.
— Não ouça esse cara, já estou a caminho! — Victoria falou.
Eu realmente não tinha por que lhe ouvir. Ou tinha? Ele deliberadamente havia chamado minha atenção para saber que ele estava aqui. Nem os sentidos afiados de Kairin, muito superiores aos meus, haviam sido capazes de lhe encontrar.
Ele olhou sobre o próprio ombro, acompanhando o trajeto circular que Kairin fazia para ganhar mais velocidade enquanto mantinha os olhos afiados mirados nele.
— Eu sei que você já morreu. — Ele levantou a mão, a mesma que tinha segurado a flecha, para Kairin. — Você está no caminho certo para mudar as coisas, mas precisa de ajuda para parar essa guerra.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.