Capítulo 39 — cara ou coroa
Corro sem parar pela floresta, meus pés pisando em galhos e folhas molhadas, o coração disparado batendo contra meu peito como se quisesse sair. O ar está denso, carregado de fumaça. Em alguns trechos, o fogo já começou a se espalhar, labaredas baixas lambem a base das árvores e iluminam a neblina com um brilho alaranjado assustador. Tosso, sentindo o calor aumentar conforme avanço por aquela parte da floresta em chamas.
Olho para todos os lados, mas só consigo ver silhuetas estranhas, formas animalescas que jamais imaginei encontrar. Estou numa parte profunda da floresta, onde a luz da lua mal toca o chão, engolida por copas densas e neblina baixa.
Esses animais… Não. Eles não são normais. São monstros. Criaturas selvagens, perigosas. Lobos gigantes com mais de três metros de altura, garras como lâminas de aço e olhos que brilham no escuro. E há também os lagartos… dezenas deles, com um metro de altura, escamas brilhantes e bafos de fogo que iluminam a escuridão. Eles se movem em bando, rápidos como flechas. Um único deslize e eu viro pó.
Essa noite… não está para brincadeira.
O que eu devo fazer agora?
A única coisa que me vem à mente é encontrar a Laila. Precisamos fugir juntos. Nós dois estamos em perigo constante desde que aquela mulher demoníaca das correntes apareceu. Ela… e os outros que estavam com ela… Eles estão em um nível completamente diferente. Não são pessoas normais.
Tive sorte de não cruzar com eles de novo até agora.
Já faz um bom tempo que estou correndo, e ainda assim… nada. Não vejo a Laila. Nem Aiza. Nem Kael. Onde estão todos?
O que aconteceu com a Laila?
Por que ela simplesmente desapareceu?
A ansiedade me consome. Estou suando tanto que descubro novos lugares do corpo que nem sabia que podiam suar. Meus pensamentos giram em círculos, e só consigo repetir uma coisa em silêncio:
“Laila… onde você se meteu? Aparece, por favor.”
(Perspectiva da Laila)
“Ai… Eu tenho que me esconder… Eles estão chegando!”
Corro o mais rápido que posso entre as árvores, o rosto sujo de cinzas e suor. O cheiro de fumaça preenche o ar, a floresta pega fogo às minhas costas, lançando um brilho alaranjado na escuridão da noite. A cena parece saída de um pesadelo.
— Menina… cadê você? — diz uma voz grossa e debochada. — O tio aqui vai te dar um presente… então seja uma boa menininha e venha com o tio… vem…
A voz do homem ecoa entre as árvores, cada palavra mais próxima.
Tenho que fugir…
Esse homem… ele vai me matar. Eu vi o que ele fez com o Kael.
O Kael… Nunca pensei que alguém seria capaz de derrubá-lo daquele jeito. Ele sempre foi tão forte… tão invencível aos meus olhos.
Kael… me desculpa.
É tudo culpa minha.
Se eu não tivesse ficado perto de vocês… nada disso teria acontecido.
(Algumas horas antes)
Essa tarefa que o Kael me deu… é muito chata.
Sentada num tronco, olho para o arco e flecha em minhas mãos. O objetivo era simples, pegar pelo menos um animal. Mas para mim… é quase impossível.
Kael me ensinou como usar, mas eu mal consigo lançar uma flecha direito, muito menos acertar algo. E… mesmo que eu conseguisse…
Matar um animalzinho? Eu não consigo.
Eles são fofos, inocentes. Eu amo os animais. Eu nunca poderia machucar um deles.
Olho para o chão e vejo uma formiguinha carregando uma folha enorme, quase do tamanho dela.
“Ela tá levando a comida dela pra casa… pra sua família… pros seus amigos…”
Eles têm uma vida também. Como a minha.
Por que eu deveria tirar isso dela?
Às vezes acho que… eu não queria ser humana.
Os humanos são cruéis. Só fazem guerra, causam dor, matam por dinheiro, poder, ou por nada.
Exceto a Aiza… e o Lucas.
Eles são diferentes. Aiza é gentil, e o Lucas… por mais que tente esconder… ele tem um coração bom. Só eles dois. O resto… é assustador. Até o Kael.
Kael é meu mestre. Eu gosto dele, de verdade… mas ele é rígido. Mata monstros como se fosse normal.
Esses monstros têm família também. Eles não merecem esse destino.
Às vezes, eu só queria ser um unicórnio.
Eles são livres. Gentis. Majestosos.
Eles não matam. Eles protegem.
É isso que eu quero: liberdade.
Ser como a Aiza… livre como os pássaros que voam alto, sem limites.
Eu sou presa. Presa ao meu país, ao meu cabelo, ao chão… ao medo. Presa à floresta.
E tudo que vejo ao meu redor me prende ainda mais.
Quero ser livre.
Quero voar.
Enquanto observo a formiguinha, agachada, com os olhos úmidos e o coração leve por um segundo… uma sombra enorme cobre meu corpo.
Congelo.
Lentamente, me viro. Meus olhos se arregalam.
Um homem… alto, de postura estranha, me observa com um leve sorriso. Ele usa roupas incomuns, um chapéu de mágico antigo, torto, e um sobretudo longo, coberto de sujeira e folhas. A mão dele repousa sobre o chapéu, como se estivesse prestes a fazer um truque.
Ele me encara, sereno, como se tudo ao redor não passasse de um espetáculo.

— Oi, princesinha… você poderia vir comigo por gentileza? — disse ele, com a voz suave demais, o olhar gentil demais… falso demais.
Aquele homem estranho estava parado, com um sorriso calmo no rosto e os olhos negros fixos em mim. Ele segurava o chapéu pontudo com uma mão, como se estivesse prestes a fazer um truque de mágica. Senti um arrepio me subir pela espinha.
— Oi… n-não posso — respondi, gaguejando, e comecei a dar passos para trás, tentando disfarçar o medo que crescia no meu peito.
— Calma, não se assuste. Eu sou legal. Vou te dar doces, você gosta? — disse ele, ainda com aquele tom doce e falso, enquanto tirava uma bala velha e amassada do bolso do sobretudo.
— N-não, obrigada… m-mas agora eu preciso ir — murmurei, tentando manter a voz firme enquanto virava o rosto e começava a andar rápido, quase correndo, olhando para o chão.
— Ei, espera. Criança… olha pra mim só por um segundo, por favor — disse ele de novo, e quando levantei os olhos por impulso, vi sua mão estendida na minha direção. Na palma, havia uma moeda esquisita: metade dourada, metade prateada. — Vamos fazer um jogo. Se cair o lado dourado, você vem comigo. Se cair o prateado… você está livre.
— Eu não quero partici—…
Antes que eu terminasse a frase, ele jogou a moeda para o alto com um movimento dramático.
A moeda subiu tão alto que desapareceu por um momento na escuridão entre as copas das árvores. O homem a acompanhava com o olhar, sorrindo, como se já soubesse exatamente o que iria acontecer. Aquilo me deu arrepios. Era como se ele não estivesse jogando para decidir, mas apenas para brincar com a minha cabeça.
A moeda caiu — rápida, girando no ar — e ele a pegou com uma só mão, bem na frente do rosto, com uma elegância teatral.
— Vamos ver se hoje é meu dia de sorte — disse ele, se aproximando devagar.
— N-não chega perto! — gritei, dando mais um passo para trás.
Mas ele apenas sorriu.
— Não precisa ter medo de mim, minha cara. É só um joguinho inocente… — falou com a calma de quem estava comentando o tempo. Então, abriu lentamente a mão e olhou para a moeda.
O sorriso no rosto dele permaneceu idêntico. Seguro, confiante. Como se nada no mundo pudesse tirar ele do controle da situação.
— Deu prata — disse ele com a cara mais lavada do mundo, como se estivesse me fazendo um favor.
— Q-QUÊ?! DEU PRATA?! — gritei, surpresa, quase tropeçando de susto. — Se eu ganhei, por que você ficou com essa cara de quem já sabia que ia ganhar?!
Ele piscou algumas vezes, fingindo confusão.
— Não tô te entendendo, minha querida… essa é minha cara normal.
Que cara estranha.
— Bom, já que eu ganhei… já vou indo! Tchauzinho! — respondi, girando nos calcanhares e correndo o mais rápido que pude.
— Melhor se apressar… meus amigos não vão ser tão calmos quanto eu — disse ele atrás de mim, a voz ecoando suave pela floresta.
Virei o rosto para olhar… e ele não estava mais lá.
Nada. Nenhum som. Nenhum passo. Nenhuma sombra.
Só a floresta em silêncio, com as árvores ainda tremendo levemente como se tivessem acabado de presenciar alguma coisa errada.
Tenho que correr. Preciso encontrar o Kael. Preciso contar o que aconteceu. Aquele homem… aquele homem era muito estranho.
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