Capítulo 24 - Consequências
— Sua Chaoswirt é… terrível.
Deixou escapar entre dentes, com um sorriso torto, enquanto mancava, ora cambaleando, ora desafiando as leis da física, tentando desviar da criatura que parecia determinada a estraçalhá-lo.
Sua respiração era um caos. O sangue escorria em filetes, manchando o chão com um vermelho tão vivo que começava a evaporar, formando vapores densos e quentes.
Sua aura queimava como brasas ao vento, fragmentando-se em espirais que dançavam como serpentes.
O Refrão estava se tornando mais possível.
Não apenas uma ideia… Uma presença.
A melodia vinha de seus golpes, de sua raiva, de sua vontade quase doentia de persistir.
Cada movimento era uma batida.
Cada grito abafado, uma nota.
E cada gota de sangue, um verso.
— Terrível? — repetiu — Isso é deplorável! Eu nem mostrei um terço do que ela é capaz!
Quase berrou, ofendido, como se tivesse escutado um insulto pessoal à própria mãe.
E, de certa forma… era verdade.
Para uma Sombra, não havia relíquia, nem segredo mais precioso que o parasita que lhe habitava o ser.
Aquela centelha podre, um rancor, um trauma, uma culpa não digerida, que se enroscava na alma como uma hera venenosa.
Quase um avatar de uma sogra… Mas não há tempo para zoeira agora.
As garras da criatura rasgavam o ar em linha reta, direto ao peito.
Elas não o atingiam de cheio, roçavam a pele, como lâminas flamejantes,
deixando um rastro de ardor que queimava sob a epiderme.
O ser era sério.
Direto ao ponto.
Não havia ameaças vazias, nem gestos desnecessários.
Mas…
Não puxava sua arma novamente.
Aquela selada em seu braço.
Sempre ali, latente, pedindo por liberdade.
Orgulho.
Apenas isso.
Mero orgulho.
Se contentava em ferir.
Com uma dor fina, irritante, precisa.
Como se cada arranhão fosse um lembrete cruel de que estava sendo poupado… por arrogância.
Era mais psicológico do que letal.
Ou talvez… apenas sorte.
Porque, se sua mão por acaso atravessasse seu corpo, não haveria tempo para resistência.
Só o fim.
E junto das tentativas, sempre vinha o mesmo arrepio.
Mas medo? Ah, isso era luxo pra quem podia se dar ao prazer de hesitar.
Ele permanecia firme. Olhos semicerrados, pupilas faiscando.
— E você nem vai ter o privilégio de contemplar o resto!
A sentença foi cuspida com mais arrogância, certeza que precede um massacre.
Suas unhas afiadas iriam tocar o peito.
Milímetros.
Só isso os separava.
— Kaskasim!
Ouviu-se um tilintar.
Metal contra metal.
Agudo. Cortante. Preciso.
Seu corpo brilhou intensamente por um breve instante, como um relâmpago, antes de se cobrir completamente pelas escamas de seu dragão.
— Te peguei!
E então… o jogo virou.
— Oh?
Movido puramente por instinto, se jogou para trás, escapando por pouco da violenta liberação de chamas escarlates. A sua melodia, antes distante, finalmente alcançava a harmonia.
Isso fez um sorriso arrogante moldar seus lábios, quase admirado pela própria audácia.
— Acha mesmo que… isso é tudo que eu tenho também?
Orgulhoso? Com certeza. Um privilégio merecido, uma conquista paga com sangue e muita ousadia. Afinal, até ali havia feito muito mais do que qualquer outro ousara sequer imaginar, encarando diretamente um ser tão antigo quanto as muralhas que agora o cercavam.
— É…? — murmurou. E, de repente, o som das brasas negras cessou.
Um silêncio pesado se instalou.
Quase respeitoso.
A nota final que um piano solta antes de encerrar a orquestra.
— Shichrur, ramah eser, hitmotetut!
Como uma explosão contida, a escuridão desabou sob seus pés de unhas navalhadas.
Ondas negras se espalharam ao seu redor, densas como fumaça, pesadas como chumbo. Seu Caos assumiu um tom cinza-escuro profundo, opaco – quase mineral.
O espaço ao redor se rompeu.
O som estalou como ossos sendo partidos.
O chão rachou sob seus pés, como se a própria terra se recusasse a sustentá-lo.
Um tremor atravessou a área e, em um raio de cem metros, tudo foi engolido pelo colapso: árvores retorcidas, rochas partidas ao meio, o ar vibrando como uma harpa tensionada além do suportável.
Até mesmo a escama trincou.
Sua conjuração se partiu.
E, paradoxalmente, foi isso que o salvou.
O rompimento o libertou da própria ancoragem, arrancando-o do colapso no instante exato, impedindo que fosse esmagado pela ruína.
Outros não tiveram a mesma sorte.
Guardiões curiosos, ou apenas azarados foram tragados.
Explodidos de dentro para fora, seus corpos rasgaram como papel de saco de pão aberto na pressa, desfeitos antes mesmo de entenderem o que os atingiu.
Até as almas foram vítimas.
E, mesmo que o estrondo da técnica fosse mais alto que qualquer grito…
Pôde ouvir.
Mesmo aqueles que havia salvado antes… dava para ouvi-los, um por um…
Cada Eco se apagar.
Como se estivesse ouvindo, em tempo real, a morte do nosso universo.
As chamas se extinguiram.
Não em glória. Mas em silêncio.
Companheiros cujo nome sabia de cabo a rabo. Vozes que conhecia desde o ventre de sua progenitora.
Presenças que, até então, pareciam inabaláveis e eternas.
Agora…
Cinza. Só cinza.
— …É como eu disse. A falta de paranóia e desespero é a fórmula perfeita para a morte. Leva à racionalização e isso, para um ser subjetivo como vocês, é uma ameaça real.
Gesticulava com um certo fervor,
como quem prega algo que viu ser verdade pela dor… ou pelo achismo mais poderoso que existe: a ignorância da certeza.
— É natural que haja esses dois pesos na balança! Entende?
Nenhuma resposta.
Só o silêncio, cortado pela aura que ainda queimava ao redor, como brasas vivas girando em espirais tão belas quanto fatais.
— Seja como for…
Ele ergueu a mão, olhos cerrados por um instante.
— Chegou ao fim!
Pronto para terminar a luta.
Como um carrasco executando o último culpado, após já ter enterrado todos os companheiros.
Mas esse…
Esse cerrava bem os punhos.
Os músculos tremiam de contenção enquanto o caos se acumulava na ponta do dedo da sombra.
E então, antes que disparasse…
— Atzmut… Drakon spirali, leidathaanakít haadumá!
A voz rompeu com o tempo.
Clara. Crua.
E com ela, ergueu-se sua aura.
Como uma fogueira, devorando os céus em espirais flamejantes, rasgando a escuridão.
O nível final.
O ponto sem volta.
A última camada de qualquer Eco.
Aquilo que transcende a técnica. A transformação do estado inicial, o ponto em que tudo o que existe… evolui.
E, junto, veio a explosão.
Tremeu o distrito inteiro. O ar se rasgou com o impacto, espalhando fragmentos negros como estilhaços de uma noite quebrada.
Do centro do caos surgiu ele.
Um dragão colossal, flutuando acima de todos. De corpo tempestuoso, expelindo o calor de mil sóis e raios rubros.
Mas o que havia dentro dele…
Lá, onde qualquer criatura teria um cérebro, estava o Guardião.
Com os olhos incendiados, o ódio transbordando do peito.
— EU VOU TE MATAR, SEU DESGRAÇADO!
Sua voz reverberou, engolindo ruas, paredes e céus.
— Isso é inútil!
O ser não recuou.
Nem mesmo com a fúria que havia estremecido os céus e o fato de que não havia feito um arranhão sequer.
Na verdade, quem tremia… estava longe dali.
Eram os que assistiam.
Da grande torre ao centro do distrito,
erguida como um cetro cravado no coração da cidade.
Cotovelos apoiados no parapeito de grades douradas, olhos semicerrados,
não por dúvida, mas análise.
Oran… Então essa é sua essência? Ehr… sua melodia é linda, mas… essa raiva… está consumindo o brilho da sua estrela…
Pensou, aflita, uma garota de cabelos pretos e olhos violeta, com o coração em chamas e os olhos marejados.
Sua alma gritava por ele, mesmo que seus lábios permanecessem calados.
Sua feição carregava a angústia de quem conhece a luz…
…e vê ela ser devorada.
A luz de quem mais admirava.
Ao seu lado, outra mulher.
Olhar firme.
Olhos cor de mel.
Cabelos brancos como neve, um manto preto envolvendo o corpo como um véu.
Essa não demonstrava aflição.
Só certeza.
Como se já soubesse o desfecho.
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