Índice de Capítulo

    “Ah! Pobrezinhos! Ratos possuem uma vida tão curta…”

    Izandi, a Oniromante

    O riscar áspero do metal da pena contra o papel cingia o escritório do rei como o único barulho além das cortinas farfalhando com o vento forte do céu em negrume, ainda assim, era o menos irritante. Vez ou outra, príncipe Howan Bloemennen fungava e mordia o dedão esquerdo, ou tragava um chá negro sarhyhardo de uma vez só para continuar acordado. O odor era forte, por si só deixando Cei Bert e Cei Gherrit acordados.

    — Acha que está bom? — Fungou; olheiras feias surgiram sob seus olhos nos últimos dias. Tinha que admitir, o garoto trabalhara muito. O ministro dos conselhos deu um passo cansado até o príncipe, recebendo o papel. Os grossos óculos quase escorregavam pelo nariz oleoso.

    Seus olhos balançaram pelas letras.

    — Howan, o Pacifista — riu o velho ministro, devolvendo os papéis. — Decerto, chamá-lo-iam assim, caso fosse possível fazer paz com os imperiais. — Bert gargalhou com os olhos. “Não dá mesmo.” O ministro apoiou a mão ossuda no ombro do príncipe. — Meu jovem príncipe, peço que me ouça…

    — Não, não irei, de maneira alguma — respondeu, trincando uma expressão rija. — Só de pensar em inimigos marchando por minha terra, penso em minha amada com o peito sangrando com uma lança. Não quero guerra, de maneira alguma! — bateu na mesa. — E gostei de Howan, o Pacifista. Não soa bem, ao menos tentar?

    O ministro fechou os sábios olhos cálidos e cansados, balançando o rosto barbudo. “Isso não irá à lugar nenhum.” Invés de apoiar-se nas amplas estantes, cheias de calhamaços e pergaminhos velhos, dispostas por quase todo o escritório de tijolos laranjas e chão de tapetes de lã, Bert queria deita-se na cama que ganhara. Descobriu que era muito prazeroso não ter que se recurvar para caber no descanso de plumas.

    — E quanto a este — questionou de novo. O ministro recebeu os papéis, e logo seu rosto escureceu.

    — São muitos lírios de ouro, Vossa Alteza — respondeu; sua voz enrouqueceu ainda mais. — Não é sábio dar tanto dinheiro a estrangeiros. Não nos recuperamos completamente da última guerra…

    — É pela saúde do meu pai nosso rei! — Ele bateu na mesa de novo. Cei Bert lembrou-se de Theolor Beesh. “Pobres mesas”, ridicularizou-os.

    — Uma sala de farmácia no castelo foi uma boa ideia, meu príncipe. Mas contratar mais de cem medistas é uma péssima. Ocas Ciled regula seus ciles e escolhe onde os melhores irão trabalhar. Ainda seria pior se abrisses as portas de vosso castelo para medistas que adoram falsos deuses… — Juntou as mãos. — Eu sei o quanto dói, meu príncipe, também perdi meu pa…

    Cale-se! — atingiu a escrivaninha pesada de madeira torpói. A xícara tremeu e quase respingou em outros papéis. — Não perderei… — falou, e sua boca quase fechou-se para sussurrar. — Passei tantos anos vendo-o como… — Se ergueu de supetão. Seus olhos estavam vermelhos, e cerrava os dentes como um cavalo enfurecido. Ele fungou, engoliu todo o chá negro e apontou para a saída. — Me deixem só. Vão descansar. A noite já acabou.

    Joris Cyreck meneou os olhos e suspirou.

    A velhice tirou-me o sono, meu príncipe, para que pudesse ajudá-lo. Estarei aqui, sempre que precisar avisara o ministro antes de partir; Cei Gherrit abrindo a porta larga recheada de ferro. Bert só ficou um segundo a mais, o suficiente para receber um olhar violento do príncipe.

    — O que ainda está fazendo aqui?!

    — Perdão — suspirou e prestou uma mesura ruim, mas cerrou os dentes. — Também é bom descansar, Vossa Graça. — E assim saiu.

    Diferente do salão do trono, o escritório do rei não ficava no lugar mais alto do castelo, mas sim à frente dos quarto reais — pelo que ouvira de Betha, antes era um depósito. Rei Rheider Bloemennen movera-o para trabalhar mais rápido e melhor. Os frontões de seu quarto eram largos e enfeitados com letras na língua antiga que não sabia ler e não tinha curiosidade.

    Medistas entravam e saíam, e cinco cavaleiros com armaduras pesadas a guardavam de cada lado. Poucas dezenas de metros à direita, o quarto da princesa era guardado por poucos, e em breve Bert os substituiria. O cavaleiro sem armadura bocejou. Seu quarto, como de todos os outros cavaleiros da Guarda, era andares abaixo.

    O Castelo dos Pavões fora erguido no topo de uma colina, e mais do que um castelo castanho, vermelho e louro, parecia-lhe mais uma fortaleza cercada por torres cheias de canhões e arqueiros. O edifício central era largo, cheio de escadarias e circular como se fosse uma torre também.

    Assim que desceu, sentiu cheiro da cozinha e dos cachorros e seus latidos e, conforme continuava seu andar cansado, começava a morder o próprio lado e sorrir. Sentiu cheiro de vinho com canela, e ao entrar no último corredor, uma das servas batia suavemente na porta de abeto.

    — Betha — chamou Bert, com voz de sussurro. A mulher loura virou-se e sorriu. Poucas vezes a ouviu falando, achava que era muda, mas saltara nos seus braços por causa dos ratos. — A que devo a honra tão tarde? — perguntou, arqueando um pouco as costas para ficar mais perto dela. A jovem corou um pouco, entreabrindo os lábios vermelhos.

    — Vim trazer-lhe vinho. — Deu um sorrisinho e abaixou as sobrancelhas. — Cortesia de Lemne pelos ratos, e de mim também, Cei. — Deu uma risadinha. A jarra pendia ao lado do pé direito dela.

    Bert levou sua mão para as costas dela, que deu um sorrisinho. Parecia magra, mas por trás da libré, tinha carne nos lugares que o homem mais adorava. Ele abriu a porta do seu quarto e continuou:

    — Não acho que posso beber isso tudo sozinho. — Pegou o jarro com a mão esquerda, então puxou-a contra seu corpo, sentindo especialmente os seios pressionarem sua barriga. Deu um passo para trás, então ela deu um para frente. E fechou a porta.

    Bert sentou na cama e despejou o vinho em dois copos, enquanto ela desamarrava os laços na parte detrás do uniforme. Retirou sua camisa e jogou-a em direção da única mobília que tinha além da cama: um guarda-roupa empoeirado.

    Iria dar o primeiro trago quando ficou com olhos bem fixos: o avental caiu no chão, então um cinto. Bebeu o copo de uma vez e sorriu, com um filete do vinho escorrendo como sangue de luxúria. Logo foi o uniforme caindo no assoalho.

    “Garotinha perversa”, riu-se, enchendo mais vinho. Ela saltitou até Bert, olhou para os arredores, e pôs suas roupas abaixo dos pés do homem. Seus joelhos se dobraram e ela ergueu a cabeça, esperando por um gole de vinho. Bert o despejou nas clavículas de Betha, tingindo-a com o carmim, e tomou os lábios dela com uma mão agarrada no seio pesado.

    Ela enlaçou sua nuca com as mãos, aceitando o carinho que escorregava pela barriga. Bert pegou-a pela fina cintura alva, a ergueu de uma só vez e atirou-a na sua cama, então um ruido como o de madeira raspando de pedras lisas.

    Bert se virou de uma vez, com suor escorrendo para os olhos, e viu a princesa Silale surgir de uma parede.

    — … — fizeram ambos, as olheiras marejadas dela tornando-se uma mistura de surpresa, ânsia de vômito e tristeza. Ela retornou para dentro do guarda-roupa, então o fechou com força, surgindo o mesmo ruído doloroso.

    — … — ele fizera.

    De repente sentiu-se tão nu e desacreditado que estapeou a própria face. Betha cobriu-se com o cobertor, mais rubra do que o vinho.

    Bert engoliu em seco e agarrou a espada na sua cintura. “Ao menos ela não me viu pelado”, tentou confortar-se.

    Saltou da cama sem olhar para Betha, mas seus pés calçados tocaram um chão duro como se um pântano lamacento de vergonha, tão frio que apagou a febre que vinha da virilha. Bert respirou um ar sujo, andrajoso quanto Betha suja e semicoberta. “De… como raios ela saiu do meu guarda-roupa?”, pensou, e concluiu clicando a língua. “Da mesma maneira que os pais de Jeanny.”

    Seu peito subia e descia depressa quando olhou para o guarda-roupa mais uma vez. Nunca se sentira assim antes; não era a primeira vez que alguém dava o rosto onde não era chamado, mas nunca sentira-se tão… encoberto de lama. “Que merda”, a voz de sua cabeça disse.

    — Não me espere de volta — falou à Betha, deliciou-se nos lábios carnudos e fez carinho seu mamilo uma última vez na noite. Afivelou de volta seu cinto e caminhou até o guarda-roupa com bile subindo a garganta. “Merda.”

    Deu um puxão brusco na aldrava. Roupas, roupas e nada. Não tinha muitas roupas, se achava bonito o suficiente para não ter muitas. Sempre funcionou. Mas seus olhos não viram nada. Retirou suas roupas jogando-as contra o chão e viu somente uma placa de madeira pouco mais alta que sua cabeça.

    “Ah, que raio… Como que…”

    Betha o abraçou por trás e beijou suas costas.

    — Tem uma coisa ali — ela disse, apontando para uma pequena, minúscula elevação de madeira no meio esquerdo da parede do guarda-roupa. Bert deu uma olhadela antes de cravar seu dedo nela.

    Um estalo soou. O ruído doloroso de antes ecoou mais uma vez, e, diante de seus olhos, a parede falsa se moveu como um mecanismo dando estalidos de mal funcionamento. Um odor de limo e bolor atingiu o rosto dos dois e fez a mulher cobrir o nariz torto com a mão e trinar os dentes pela umidade e frieza.

    — Ah, obrigado! — Abraçou-a. — E desculpa por isso.

    — Está bem — afirmou Betha, dando um sorriso amarelo. Bert beijou-a. Seu marido ficaria irritadíssimo se voltasse à casa com fedor de musgo. Invés disso, ela pegou uma vela do quarto e acendeu na lareira e entregou a Bert.

    — Você é sempre tão atenciosa — riu, olhando para a escuridão cinzenta à frente.

    — Sou uma boa esposa — respondera. Bert riu mais uma vez e entrou, e seus braços de imediato sentiram dedos frios apertando-os. A porta trancou-se com um impacto barulhento, quase apagando a vela.

    Bert não olhou para trás. “Que podridão…” Não sabia dizer se era do lugar ou sua. “Por que estou aqui?!” Isso não era da sua conta. Seu pé quase deslizou quando deu um passo à frente. A luz pálida da vela mostrou um chão quase verde de musgos peludos.

    Talvez a passagem já fosse feita de tijolos bem organizados e vigas de aço, mas o que Bert via eram pedras irregulares encimentadas, chapinhadas por musgos verdes e azulados e muito mofo, agrupadas formando um corredor que pingava estalactites e vinhas como de vinhedos, todavia fedorentas e escuras. Centenas, talvez milhares de pedaços decompostos de ossos e carne de gatos e ratos pintavam o chão lamacento, que curvava à direita e esquerda.

    “Merda”, pensara. “Se ela se perder aqui, vai virar comida de rato!’

    ‘É esse título maldito. É essa jura maldita…! E onde ela está?!”

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