Capítulo 385: Fugitivo (II)
O corredor era estreito, com piso metálico gasto e cheiro de produto químico recém-aplicado. Tron guiava Dante com passos rápidos, desviando de alguns grupos que conversavam encostados nas paredes. O trio de Sesar caminhava logo à frente, enquanto o som abafado das máquinas operando em outras salas vibrava no fundo.
Dante passou de cabeça baixo até lá, não querendo ser avistado por ninguém.
— Aqui — disse Tron, empurrando uma porta de metal para o lado. — Pode usar esse vestiário. A roupa do primo Cessar está ali, dentro daquele armário. Espero que sirva.
Dante assentiu em silêncio e entrou. A porta se fechou com um estalo firme. O ambiente era limpo, mas frio. Bancos de madeira se alinhavam no centro, e fileiras de armários de aço revestiam as paredes. Havia um espelho rachado em uma das extremidades, e ganchos para armas pendiam próximos à saída. O som de algo acima dele, um tipo de máquina que soprava um ar gelado, zumbia como um sussurro irritante.
Enquanto abria o armário designado, encontrou a roupa cuidadosamente dobrada: um conjunto tático escuro, com reforços nas articulações, botas bem polidas e um cinto com diversos encaixes para equipamentos. Era clara a diferença de qualidade em relação ao que vestia. Pegou a calça e começou a se trocar.
Do lado oposto do vestiário, outras vozes surgiram conforme dois homens e uma mulher entravam conversando, sem perceberem sua presença.
— Você viu o último grupo da Torre 6? — disse um deles, baixinho. — Dos seis que mandaram, só dois voltaram… e um deles sem metade do rosto.
— Isso se ainda dá pra chamar de “voltar” — retrucou a mulher. — O cara não falava, não andava direito. Estava em choque. Só tremia e olhava pro chão.
— E mesmo assim a supervisão chamou mais gente. Essa “caçada de teste” tá indo longe demais. Não é mais um teste, é uma limpeza.
Dante vestiu a camisa lentamente, ouvindo cada palavra com atenção. Fechou os botões com calma. O terceiro homem, de voz grave, falou:
— Ouvi dizer que tem algo solto nas cavernas da Zona Baixa. Não é animal nem humano. Dizem que os olhos da coisa têm luz própria. E quem vê, perde a noção de onde está. Três morreram porque se jogaram nos buracos.
— E a administração chamou isso de “influência do ambiente. Ambiente, né? É sempre assim…
Eles riram, mas o riso não tinha gosto. Era mais um alívio nervoso do que humor de fato.
Dante já estava com as botas nos pés, passando o cinto com destreza. No espelho, viu seu reflexo por um instante. A roupa o fazia parecer mais jovem. Mais vivo. Mas havia algo nos olhos que não mudava: a cautela de quem já viu demais.
— De qualquer forma, se te mandarem pro Setor V, recusa — avisou o homem. — Não vale o pagamento. Vi gente treinada gritar pedindo pra voltar. E os gritos… não eram de dor. Era medo.
— E se recusar dá punição.
— Pior é aceitar.
O trio se afastou, rindo de nervoso, e a porta se fechou atrás deles.
Dante terminou de vestir o casaco tático e ajustou a gola. Ficou alguns segundos parado, respirando fundo. As informações giravam na mente. Torres, Setores, criaturas, desaparecimentos. O trabalho naquele lugar não era comum — era um abatedouro travestido de oportunidade.
“O que você ouviu deve servir” — disse Vick em sua mente. — “Agora sabemos que há algo além de caçadas comuns. Alvos desconhecidos. E isso pode nos aproximar da origem desse lugar. Possível ambiente de teste para caçadores, como a Capital mantinha. Similaridade quase igual em quesito missões externas.”
Dante respirou fundo e se sentou no banco. Levou a mão ao rosto, tapando os olhos e respirando fundo.
— Preciso voltar para o Nokia. Onde eles foram parar, Vick?
“Não tenho a resposta para sua pergunta, Dante.”
A porta se abriu de novo. Era Tron, sorrindo como se nada estivesse errado no mundo.
— Ficou ótimo com a roupa, Hassini! Vamos, estamos quase atrasados. E é melhor não irritar o Dinastio. Ele odeia esperar.
Dante lançou um último olhar ao espelho, aos olhos que pertenciam a um homem com muitas perguntas e nenhuma resposta. Precisava mais do que qualquer um, naquele instante, conhecer onde estava para fugir o mais rápido possível.
Se pudesse voltar para o navio…
Se pudesse refazer o caminho até o oceano, sentir novamente o balanço da água sob os pés, o vento cortando o rosto, o cheiro de sal… sentia falta das risadas dos seus companheiros, e da adrenalina que sentia quando tinha algo acontecendo.
E o Bastardo. Ainda precisava lidar com ele de alguma maneira. Precisava saber onde ele estava e quem ele tinha se tornado. Se ficou realmente tanto tempo acordado, então, ele já tinha agido. Precisava saber…
— Algo errado, senhor? — Tron perguntou, com um tom hesitante. Seus olhos buscavam os de Dante, tentando decifrar a expressão distante que o homem carregava. — Está se sentindo bem?
Dante piscou, trazendo o foco de volta ao presente. A voz de Tron parecia vir de longe, como um eco que chegava através de um túnel comprido demais.
— Sim, rapaz. Estou bem… só uma leve dor de cabeça. Podemos ir. Seu primo está esperando, não está?
Tron assentiu, ainda desconfiado, e empurrou a porta do vestiário. Os dois saíram, e o som do mundo voltou a ganhar corpo — vozes, passos, o ruído baixo das máquinas de fundo.
Do outro lado, Dinastio os aguardava. Estava de braços cruzados, conversando com três caçadores. O grupo parou de falar por um instante ao ver Dante surgir com o novo uniforme. Houve um silêncio breve, desconfortável. Os olhos percorreram-no dos ombros até os pés, como se estivessem julgando se ele pertencia ali ou não. Logo voltaram a prestar atenção no gigante que liderava a conversa.
— Quando tiverem o dinheiro, me paguem. — A voz de Dinastio foi firme, definitiva. Ele então se voltou para Dante com um olhar clínico, detalhado. Seus olhos percorreram as dobras do uniforme novo, pararam na linha dos ombros, desceram pelo tecido até a bota bem ajustada.
— Vamos para um lugar bem frio. Vai precisar de um casaco e de uma arma. — A voz dele soava como um tambor abafado, ressoando com autoridade. — Quando chegarmos na nossa casa, você verá o conjunto. Pode escolher o que for melhor. Agora precisamos partir. Estamos com pouco tempo.
Dante nada respondeu. Apenas assentiu e os seguiu.
Atravessaram um salão amplo, mal iluminado, cheio de vozes dispersas e um cheiro metálico no ar. Havia jovens de roupas brancas encostados nas laterais — talvez aprendizes, talvez algo mais — e Dante desviou o olhar ao passar por eles, ocultando os olhos como se fossem uma ameaça discreta. Sentia que, se olhasse demais, veria algo que não queria saber.
Logo se aproximaram de uma estrutura diferente, mais reforçada, com colunas de metal escuro e uma porta larga embutida na parede. Ela se abria para os dois lados, como se estivesse acostumada a receber coisas grandes demais para passagens comuns.
Dois guardas estavam parados ali, com semblantes sérios e rifles cruzados nas costas. Dinastio estendeu um cartão escuro, pesado, quase cerimonial. Um dos guardas o recebeu com cuidado e o examinou sob uma luz azulada que saía de um sensor ao lado da porta.
Dante sentiu um frio na espinha. Ele não tinha um cartão. E se perguntassem algo? E se notassem?
O guarda analisou o cartão por alguns segundos que pareceram longos demais, depois o devolveu com um gesto respeitoso.
— Está com pouco tempo para ficar, senhor Dinastio?
— Recebemos um chamado para casa. Precisamos retornar antes de continuar os trabalhos — respondeu Dinastio, pegando o cartão de volta sem pressa. Em seguida, virou-se para os guardas e fez um leve gesto com a mão. — Esses são meus primos: Tron, Rosa e Hassini. Eles estarão comigo daqui pra frente.
Dante tentou manter o rosto impassível ao ouvir seu nome falso. Seus ombros não tensionaram, e os olhos permaneceram baixos, sem encarar ninguém por tempo demais.
O guarda olhou para os três e sorriu com formalidade.
— Desejamos que retornem com segurança, senhor.
A porta foi destrancada por fora com o som metálico de um giro firme. Um dos curandeiros empurrou-a com o ombro, segurando uma prancheta contra o peito.
— Sala quatro… paciente designado: Dante, condição instável, ferimento abdominal e contusão torácica — recitou em voz baixa, enquanto acenava para os outros dois atrás dele.
Entraram. Primeiro o silêncio. Depois, o pânico contido.
— …Ele não está aqui. — A voz da mulher à esquerda cortou o ar, seca e rápida.
A cama estava vazia. As cobertas jogadas de qualquer jeito, mas não como se tivesse sido feita por alguém. Estavam puxadas de lado, como se alguém tivesse se levantado às pressas — ou fugido.
— Isso não é normal. — O segundo curandeiro se aproximou do suporte de soro, a mangueira ainda pingando no chão. A agulha havia sido arrancada.
O líder do trio parou no centro do quarto e observou em volta, a prancheta tremendo levemente em suas mãos.
— Ele não estava lúcido. Não podia ter se levantado sozinho. Estava sedado na última verificação.
— E se acordou antes? — arriscou a mulher, mas a própria dúvida cortou sua voz. — E se alguém o tirou daqui?
Um silêncio carregado tomou conta. Do corredor, os sons comuns da ala médica: passos apressados, estalos de rodinhas de macas, um chamado em rádio. Mas ali, dentro do quarto, a atmosfera era densa.
— Ninguém recebeu autorização para mover prisioneiros — disse o curandeiro mais velho. Seu rosto endureceu. — Ele era propriedade militar. Não era um paciente comum.
A mulher andou até a mesinha lateral. Um copo de água pela metade. A marca da mão ainda visível no vidro.
— Foi recente. Há menos de vinte minutos, talvez menos. — Sua voz baixou. — Ele estava acordado. E consciente.
— Isso é impossível. — O mais novo se virou. — Ele levou três costelas quebradas. O pulmão esquerdo estava parcialmente colapsado. Eu vi os exames.
— Então não foi sozinho — rosnou o mais velho, jogando a prancheta sobre a cama com raiva contida. — Alguém o levou. Ou… ele não é o que disseram que era.
Do lado de fora, um segurança passou pelo corredor. O curandeiro mais experiente saiu até a porta e o chamou.
— Ninguém da ala médica transferiu o paciente da sala quatro. Comece um relatório. Tranque os corredores laterais e avise os supervisores do setor de caça. Se ele conseguir sair da plataforma, todos vamos responder por isso.
— Sim, senhor — respondeu o guarda, já tocando o comunicador no colarinho.
De volta ao quarto, os curandeiros olhavam em volta como se esperassem que Dante ainda estivesse ali, espiando das sombras.
— O que ele era mesmo? — perguntou o mais novo. — Soldado? Mercenário?
— Não importa. — O mais velho respondeu seco. — A única coisa que importa agora… é que ele sumiu. E a Rainha não vai gostar nada de saber que um prisioneiro dela que estava em observação saiu por ai andando.
E não deixou nenhum rastro.
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