Capítulo 42: A espada que prevalece (1)
“Alguma vez em vossa vida, mesmo que somente uma única vez, já experienciaram serem tão bons em algo, tão monstruosamente talentosos, que seus mestres sentiram medo e repulsa de vós?
Se nunca sentiram isso, provavelmente nunca entenderão o coração de Ereken Zwaarkind.”
Izandi, a Oniromante

Neve despencava dos céus — mesmo com a tempestade ainda estando longe, ela parecia tão próxima…
— E pensar que teria a chance de ver o grande Ceire Joran Cyreck, o homem que cegou Better Bloemennen em voo…! — cantarolou Cei Mauric Hoone. Os fios joviais da barba loira-escura escanhoada cintilavam à luz do archote segurado por um cavaleiro ao seu lado, balançando junto dos cabelos curtos ao ritmo de seus passos longos. Era raro que Ereken visse quase ou mais altos do que ele. Cei Mauric Hoone deveria ter dois centímetros a mais do que o Mestre de Armas guardados em sua longa testa, mas Ereken dava mais atenção ao tamanho da espada longa que mantinha na cintura. — E o quase tão legendário Duas Espadas…
— O espaço está ficando fechado, Cei Hoone — avisou Ereken, penetrando na floresta obscurecida pelas copas dos tortuosos pinheiros pálidos. Oito homens e quatro cães caminhavam habilmente dentro da floresta após a ponte antiga, agora cercados somente por um oceano de pinheiros pálidos, ainda mais embranquecidos pela neve escura que prenunciava a tempestade. “O céu está em chumbo”, pensou Ereken “, chumbo escuro.”
Cei Mauric Hoone lançou um sorriso no canto do lábio.
— Meu bom pai, Duque Hoone, sempre me ensinou que o ideal era não precisar usar a espada. — Coçou o pescoço, coberto por uma espessa pele de ovelha. — Não é à toa que virei um Cei — e riu. — Por via de dúvidas…
O cavaleiro desembainhou sua espada e, mantendo-a próxima do peito, mordeu seu polegar esquerdo. Um filete de sangue fluiu, mas antes que gotejasse no chão, foi espalhado por todo o sulco frio da espada; e logo já não era tão frio. Ereken não fazia algo considerado tão básico há… quanto tempo? Um leve sorriso surgiu na sua face obscurecida pelas copas, porém fora contido por um suspiro sério e o movimento de abrir e fechar sua mão letárgica.
Apesar de ser o único arqueiro, Ceire Joran Cyreck andava à frente de seus homens; acompanhado pelos cães de Cei Mauric Hoone, que farejavam Thirtu. Ereken sentiu-se inútil frente ao trabalho dos animais — ainda que soubesse que eles jamais perceberiam todos os detalhes que seus olhos conseguiam ver.
— Aliás — chamou o Cei outra vez —, Ceire Cyreck, espero que considere a proposta de minha Casa.
— Sabe de meu juramento, Cei Hoone — falara o paladino, sem dar para trás. — Não tomar ações que tragam prejuízos políticos…
— Ah, por favor!
Ereken seguiu à frente.
— Nós sabemos bem dele — continuou o de olhos azuis, balançando a espada longa na mão. — Sabemos até demais, não se esqueça. Eu poderia bem ser só um rapaz na época, mas ainda estava lá quando acertou meu tio com uma flecha nos olhos. Isso me parece prejuízo político, não acha? No entanto, nós estamos dispostos a ignorar isso. Afinal, és Ceire Joran Cyreck, juramentado em celibato, pobreza, justiça, honra e jejum, proteção eterna aos mais fracos, o homem que dedicou trinta anos de sua vida ao arco e a luta contra monstros! O herói do meu filho. — Saltou por uma pedra. — Simplesmente queremos que faça o que já está fazendo aqui, só que abaixo das montanhas.
— …
Vendo o silêncio do Ceire, Cei Mauric Hoone não pôde nada senão suspirar e dar de ombros. Ele fechou seu rosto, e fitou as costas do paladino com olhos cheios de uma tristeza doce. Ereken deu um longo passo à frente, aproximando-se do seu capitão e adentrando o fino caminho entre os pinheiros. Moitas curtas de arbustos congelados e mortos rodeavam algumas das árvores, marcadas pelos respingos de uma chuva de granizo recente. Ereken sentia a brisa gélida do anoitar mordiscando seu braço enrijecido.
“Espero que a garota esteja bem.”
Ereken e Cei Mauric tiveram que se abaixar para não serem pegos por uma flácida sumagreira quase morta, empurrada pela crescente ventania. Neve atingia seus rostos e se prendia nos seus cabelos e barbas.
Há quanto tempo Ereken não fazia a sua? Estava longa, grande demais. Willmina detestava quando deixava a barba crescer demais ou cortava; dizia atrapalhar o beijo como uma parede, futucando sua pele como se pequenos espetos. Sua filhinha dizia quase a mesma coisa. Machuca e faz cócegas!, grasnava. Propositalmente, às vezes a capturava e esfregava a barba recém-cortada contra suas bochechinhas.
Seu coração foi esmagado.
“Não pense nisso, não agora. Ela está bem. Duque Theolor não mentiria para mim”, pensou. “Onde ela deve estar agora? Já acordou?” E os pensamentos continuaram a surgir. “Só a verei quando adulta?”, veio. Temeu. “E se, da próxima vez que fosse vê-la, já seja avô? Conheceria suas paixões?” Sabia que sua filha não se casaria sem permissão dele… mas tanto tempo longe do pai… Houvera uma vez, quando Bert finalmente voltara de sua longa viagem, que sua menina esqueceu-se completamente quem era o irmão.
“E se não me reconhecer?”, pensou. “E… meu filho ainda no ventre?”
Sua mão esquerda cerrou na adaga. Não chegará a tempo, soou a voz maldita. Sempre. Tarde. Demais. Não era irônico que alguém com a fama de “Relâmpago” tivesse a voz da consciência o acusando de atraso?
A hoste continuou a caminhar, cada vez mais dentro da floresta antiga e esquecida. O relevo se tornava cada vez menos terra e cada vez mais rochas de neve velha, que nem o verão conseguia expulsar. Os cães se aventuraram entre as árvores…
— Os cães estão andando mais devagar do que deveriam — notou o Ceire. Os cães de Cei Mauric saltaram para trás e latiram baixo. Ereken coçou o pescoço e semicerrou os olhos. Tanto o Ceire quanto o conde fitaram Ereken, que tornava o olhar entre os cães e a floresta ainda mais adensada poucos passos à frente do séquito.
Pinheiros jovens aglomerados se uniam com pinheiros mais altivos e largos e os resistentes carvalhos-espinhosos, e suas copas se misturavam, unindo os galhos nus do carvalho-espinhoso com as folhas vestidas do tecido da neve.
As árvores abrigavam um mar de escuridão diante do fim da ruela fina. Ereken olhou para os cães. Seus rabos estavam suspensos como se de pé, suas patas estavam bem abertas e seus dentes trincados uns nos outros, como se adiante estivesse uma coisa hedionda.
Lembrou-se da Floresta dos Traiçoeiros. “Mais um comedor de folhas que enlouqueceu?”, supôs. Se fosse isso, resolver não seria um problema. O animal poderia ser hábil, mas tinha dentes retos e garras curtas demais — lobos eram piores. Muito piores que negrilapis. Se fosse o caso…
— Irei na frente — anunciou. Ceire Joran deu de ombros. Cei Mauric estralou os dedos com um sorrisinho, moveu o pescoço e correu para o lado de Ereken, porém se arrependeu. Um passo à frente e era puro breu, solo soterrado por neve, árvores amontoadas e odor de sangue congelado.
Árvores que Ereken nunca havia visto alternavam entre poças de sangue congelado, circulando como se plantadas por alguém, tão próximas que suas copas baixas, porém compridas, se abraçavam… escondendo um som de estalos e fagulhas vermelhas quase apagadas.
— Tem alguém aqui — sussurrou Ereken. Abaixado, seus olhos esquadrinharam à frente.
Tendas camufladas pela neve estavam erguidas: seis longas tendas, com espaço para seis ou sete homens dormirem com conforto, rodeadas por restos de fogueiras meio apagadas, cuspindo filetes de fumaça ao céu cada vez mais sombrio.
— Vê alguém? — perguntou Cei Mauric Hoone em voz de sussurro. Ereken balançou a cabeça e, respirando o ar frio, tentou separar os sons que viam de trás e de frente. — Até — sussurrou o Hoone — onde eu saiba, não há ninguém morando aqui… Não deveria haver, é claro.
— Não vejo sinal de pessoas em nenhum lugar. — Suspirou, erguendo-se com a suavidade de uma ave. Fitou Ceire Cyreck, que já preparava seu arco, por trás do ombro. — Irei na frente. Com sua permissão, Ceire.
— Toda sua — respondeu Mauric, apontando com a palma. Ceire Joran Cyrekc permaneceu em silêncio quase de prece, retirando uma flecha de sua aljava dourada. Ereken continuou a abrir e fechar sua mão letárgica, e então deu um longo passo para longe da poça de sangue congelado.
Árvores como as da “cerca” estavam plantadas por entre as tendas escurecidas. A luz fugia cada vez mais conforme a tempestade se aproximava, escura como se banhada pela noite. Ainda assim, Ereken não precisou semicerrar os olhos para observar o acampamento. Supunha que eram de nômades do outro lado da Cordilheira, algum dos inúmeros povos da vermelha Greatean — nunca unificada.
No entanto, não havia nada lá que o trouxesse conexões com as informações que já recebera — nada dos padrões de correntes entrelaçadas como peixes, das pelagens trabalhadas ou do trabalho em aço que tanto se orgulhavam. Eram somente simples tendas longas sustentadas por toras de madeira, rodeadas por galhos secos das árvores estranhas e cercadas por várias fogueiras quase apagadas… O seu olfato foi quem deixou os pelos de sua nuca ouriçados. Próximo de uma árvore estranha de folhas sebosas e verdes, havia algo como um grande turíbulo de latão esquentado por um estrado de carvão aceso. De lá, não sentia quase calor nenhum, como se o fogo estivesse lá somente para impedir a coisa fedorenta de congelar. Ereken tampou o nariz com a mão hirta.
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