Capítulo 397: Apuração
Passos vieram correndo no mesmo instante, como se aquele grito tivesse disparado uma sirene dentro da CryoBacia. Aspas surgiu de um corredor lateral com dois caçadores armados, o rosto já tenso, a mão sobre o coldre metálico da cintura. Mas quando viu para onde Domma apontava, ele parou.
Literalmente. O chão tremeu levemente sob o impacto do peso dele congelando no lugar.
— Não pode ser… — murmurou Aspas, os olhos saltando das órbitas.
Dante estava ali, parado do lado de fora da barreira de calor, com o rosto parcialmente coberto de gelo seco e o casaco rasgado em alguns pontos. Um corte em sua têmpora ainda sangrava levemente, mas os olhos, Aspas não tinha dúvidas de que ele tinha sobrevivido por conta própria, não pela sorte.
— Tão dramático assim? — Dante disse, erguendo uma sobrancelha. — Eu sei que não me conhecem, mas dá pra abrir? Está frio aqui, é sério. Se possível, se puderem me dar algo para me aquecer.
Domma olhava para ele como quem encara uma fenda se abrindo no mundo.
— Mas você… você estava… — tentou dizer, mas não havia frase suficiente para aquilo.
Dante esticou os braços, girando os pulsos, como se estivesse se alongando após um mergulho profundo.
— Soterrado? Congelado? Esmagado? Sim, quase isso tudo ai. Sendo sincero, já passei por algumas coisas piores. — Ele sorriu de leve, embora uma expressão de dor passasse rapidamente por seu rosto. — Vocês colocam muito drama nesse negócio de avalanche.
Aspas finalmente avançou, empurrando Domma de leve para o lado. Ficou de frente para a barreira, que ainda chiava levemente por conta do contraste térmico. Estudou Dante da cabeça aos pés, procurando uma razão para seus olhos estarem o enganando.
Tron e Rosa o alertaram sobre esse homem ter salvado Dinastio, mas a Avalanche desceu contra ele de uma só vez.
— Você não devia estar em pé. — disse Aspas. — Quem é você?
Dante passou a língua nos lábios rachados. Deu um passo em direção à barreira. O calor quase o fez cambalear, mas ele se firmou.
— Olha, eu posso responder qualquer pergunta, eu prometo.. — respondeu. — Mas… se quiserem me deixar entrar antes que eu congele de novo, eu vou te agradecer bastante. Consegue fazer isso, por gentileza?
Um dos soldados ao lado de Aspas deu um passo à frente, hesitante, pronto para ativar algum tipo de defesa. Mas Aspas estendeu o braço e impediu.
— Baixe a barreira — ordenou. — Só por três segundos. E se ele tentar qualquer coisa… vocês sabem o que fazer.
Dante levantou as mãos, num gesto quase debochado de rendição.
— Justo. Três segundos é tudo o que preciso.
Domma mal piscou quando o campo avermelhado se desfez em uma abertura, e o ar frio invadiu a CryoBacia como uma mordida. Dante atravessou o espaço sem fazer alarde nenhum, apenas mantendo a calma. A cada passo, gotas de gelo escorriam dele, evaporando ao toque do calor interno.
Quando ele finalmente parou à frente de Aspas, os dois se estudaram por um instante. Dante olhou para os braços do homem, para o símbolo marcado no peito da armadura — um urso envolto em uma cadeia de espinhos. Depois, olhou para trás, na direção da avalanche agora silenciosa.
— Joy está bem? — perguntou, sem rodeios.
Aspas fez um leve gesto com a cabeça.
— Está seguro. Graças a vocês dois. Mas… o Dinastio ainda está desacordado.
Dante assentiu lentamente.
— Ele é mais forte do que parece. Vai aguentar.
Então, Dante sentiu suas pernas tremerem. E sem ao menos perceber, ele caiu de joelhos, soltando a tensão dos ombros. Seus braços tombaram para os lados, mas ele abriu bem os olhos e a boca, respirando profundamente.
Aspas se abaixou rapidamente e o segurou antes que batesse com o rosto no piso metálico.
— Médico! — gritou para trás. — Agora!
— Não se preocupe — avisou Dante. Seus braços tremulos ainda permutavam contra o corpo. Não doía tanto quanto as pernas, mas foi o que usou para se salvar. — Estou bem, apenas preciso descansar.
Domma ficou ali, parado, ainda tentando compreender o que tinha acabado de acontecer. Por mais que Tron e Rosa tivessem falado que tinham encontrado um homem que parecia ser forte, nunca imaginou que ele abriria caminho contra a natureza daquela maneira.
Tinha muitas histórias envolvidas em Selenor sobre figuras com capacidades para dobrar e curvar os Felroz, mas eles não viviam ali. Estavam praticamente vivendo a mercê da Rainha. Seria possível que… Hassini era um desses?
— Eu falei que não precisava disso. — Dante deixou o corpo cair, meio desajeitado, na cadeira forrada com pelúcia grossa e desgastada. As mãos se fecharam uma sobre a outra, unindo os dedos, enquanto apoiava os cotovelos nos joelhos. Sua voz tinha aquele tom de exaustão travestida de teimosia. — Só precisava de um pequeno descanso.
— Ninguém ganha de uma avalanche e precisa só de descanso. — Aspas Saser cruzou os braços largos, a sombra dele parecia ocupar metade da sala iluminada pelas lâmpadas penduradas. Fez um gesto brusco com dois dedos, e os curandeiros que estavam na porta se aproximaram com passos firmes. — Ramon Saser, meu sobrinho, vai avaliar seus ossos. — indicou com o queixo o homem baixo, de cabelos espetados e olhos brancos como leite. — Tina e Felicia, sobrinhas do meu tio, cuidam dos músculos e dos órgãos internos. Elas são boas no que fazem.
Dante soltou um suspiro derrotado, relaxando os braços ao lado do corpo. As pernas se esticaram, pesadas como blocos de chumbo. Não resistiu. Fechou os olhos por um instante, e quando os abriu, viu três pares de mãos se erguerem, ficando suspensas poucos centímetros acima da sua pele. Nenhuma delas o tocava.
De repente, linhas finas de energia começaram a se manifestar — fios azulados, como plasma líquido, e outras linhas verdes, pulsantes, iguais raízes vivas em busca de solo. As luzes serpentearam pelos braços, ombros e peito dele, penetrando sob a pele com uma velocidade que parecia impossível, desaparecendo nos poros, mergulhando no interior do corpo.
O som ambiente era apenas o zumbido suave das partículas de energia e a respiração contida dos que assistiam.
— E o garoto? — Dante quebrou o silêncio, a voz um pouco mais baixa, carregada de algo raro que odiava demonstrar: incerteza. — Joy… Ele estava muito mal. Não sei o que houve, só… só lembro dele jogado no meio da neve, respirando por um fio.
Aspas puxou o ar, fechou a mandíbula e estalou os dedos, inquieto.
— Joy é filho de um homem muito, muito forte. E puxou o pai em mais coisas do que gostaria, acredite. — Seus olhos endureceram, ficando duros como rocha. — Se aquele garoto não tivesse sido retirado dali… — balançou a cabeça, apertando os dedos uns contra os outros —…coisas muito, muito ruins teriam acontecido.
Ele olhou diretamente para Dante, como quem pesa palavras que normalmente não se dizem em voz alta.
— Não sei quem é o pai — Dante respondeu, afundando um pouco mais na cadeira — mas sei que… perder um filho deve ser uma dor que não dá pra explicar. — Uma lembrança pontiaguda atravessou sua mente. Uma mulher em Kappz. Não conseguia lembrar o nome dela, só do olhar esvaziado depois de perder o marido e o filho para um Felroz.
Ele balançou a cabeça, dissipando a memória.
— Dinastio também… — apontou de leve, com um giro cansado do pulso — …ele precisa dos mesmos cuidados que eu.
E foi então que algo estranho aconteceu.
Tina, que estava com as mãos suspensas sobre o peito dele, recuou de forma abrupta. Uma fagulha elétrica se formou quando seus dedos distanciaram. Seus olhos se arregalaram, e ela puxou as mãos contra o próprio corpo, cruzando os braços protegendo seu peito e a si mesma.
— Isso… — sua voz falhou, e ela engoliu em seco. — Isso não tá certo.
Aspas franziu a testa, dando um passo pra frente.
— O que foi?
— O… — ela olhou para Felicia, que estava ao lado, e que parecia igualmente pálida — …o corpo dele… tá se curando sozinho.
Dante ergueu as sobrancelhas, exatamente no mesmo momento que Aspas fez o mesmo.
— Sozinho? — repetiram, em uníssono.
Tina respirou fundo, olhando fixamente para a energia que ainda serpenteava de volta às mãos dela, sendo repelida, como se o corpo de Dante não precisasse — ou não aceitasse — mais ajuda externa.
Foi então que a voz bem mais natural irrompeu dentro da cabeça de Dante. Vick.
“Análise em andamento. A Energia Cósmica presente em seu corpo se encontra em estado de deformação e reconstrução. Cruzando dados disponíveis… origem provável: contato direto com a matriz energética do Bastardo.”
Dante arregalou os olhos, apertando os dedos contra os próprios joelhos.
“Conclusão: além da carga residual de Energia Cósmica, há fragmentos de estruturas biológicas codificadas presentes. Hipótese: parte das funções regenerativas do Bastardo foram absorvidas durante o conflito.”

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