Índice de Capítulo

    O calor da fonte dissolveu tudo. Corpo, dor, memória… Até o tempo pareceu desmanchar no vapor que dançava pelo teto.

    Quando Dante percebeu, já não estava mais no pátio da fonte. Abriu os olhos e se viu em pé sobre um prédio tomado pela vegetação. A grama balançava ao sabor de um vento suave, mas era antes do inverno que se recordava, antes das chuvas.

    A vista de uma cidade tão distante, tão longa, sem um fim imediato. Dante se recordava bem do lugar que conheceu a mulher que não escapa dos seus pensamentos e dos seus sonhos mesmo depois de tantos meses. Depois de tanto tempo.

    — Você tem lutado tanto. — A voz dela veio de suas costas, mas Dante não se virou. Ao invés disso, ele fechou os olhos. O cheiro das flores penetrava suas narinas. — Estou esperando seu retorno, estou orando por isso.

    Eu sei que está, e vou voltar.

    Uma ondulação forte na água sacudiu seu corpo, puxando-o de volta. Dante abriu os olhos num sobressalto.

    O teto de metal. As grades de ventilação. A névoa densa, agora mais pesada. O cheiro de ervas cozidas. Tudo estava ali — de novo, real. A droga do mundo que o puxava para a realidade.

    Mas não estava sozinho.

    Pelas ondulações na água e pelo rangido da porta pesada, ele percebeu que aquilo não fazia parte do protocolo. O sujeito não parecia um curandeiro, nem alguém comum. O som dos passos na água era firme, pesado, quase desrespeitoso. Ele entrou sem se importar com quem estivesse tomando seu banho.

    Dante levantou a cabeça, os olhos semicerrados, buscando através da névoa a silhueta.

    O homem era alto, forte. Ombros largos. Caminhava nu até onde a água cobria o torso, exibindo cicatrizes antigas nas costelas, no peito e nos braços. Aquelas eram marcas de alguém que já esteve em batalhas sanguinárias. Os cabelos eram raspados nas laterais, mas cresciam em um topete bagunçado, encharcado pelo vapor. A barba curta, malfeita, seguia a linha do maxilar quadrado.

    Ele se abaixou na borda oposta da fonte, mergulhando até os ombros, e soltou um suspiro pesado, ainda ignorando Dante e relaxando também.

    — Tsc… bom lugar pra relaxar, hein? — comentou, olhando para frente, sem sequer cruzar olhares com Dante. — Ouvi dizer que colocaram um peixe novo por aqui. Vim ver se é verdade.

    Dante apertou os olhos, ajeitando Nick, que respirava profundamente, pesado de sono sobre seu peito. A água quente fazia seu corpo relaxar, mas sua mente permanecia desperta, afiada como sempre. A voz saiu rouca, arranhada, um tom seco, desinteressado, mas não hostil. Apenas cansado.

    — Eu estava tentando dormir.

    O som de água sendo deslocada ressoou do outro lado, enquanto o homem se acomodava melhor, afundando até os ombros. Seu sorriso era fácil, mas não tolo — havia nele um peso de quem sabia muito mais do que dizia.

    — Ah, mil perdões. — A voz tinha um tom leve, quase divertido e bem polido. — Não quis atrapalhar. É que… quando eu soube que Joy voltou, fiquei curioso pra ver quem tinha conseguido. Dinastio é um sujeito robusto, determinado… mas aí me contaram da avalanche, da queda, e… de você. — Ele deu uma pausa, piscando devagar, analisando vagarosamente Dante. — Quis ver com meus próprios olhos.

    Dante não se moveu imediatamente. Apenas respirou fundo, afagando de leve as costas de Nick, que se remexeu, mas não acordou. Ele então ajeitou melhor o corpo, escorando a nuca na borda de pedra, deixando que a água subisse até a linha do queixo. Os olhos, antes semicerrados, abriram-se, mirando o teto coberto de vapores que dançavam lentamente, se desfazendo nas ventoinhas que giravam lá em cima.

    — Deixar o garoto lá seria idiotice. — Mais do que idiotice, seria cruel. — Não sei quem o deixou pra trás, mas fizeram isso de maneira covarde. — Apertou levemente os dedos sobre Nick. Como uma criatura tão pequena pudesse sobreviver lá? Crianças não deveriam morrer… — Ele ia congelar até a morte… ou virar comida de Felroz. Nunca deixaria um dos meus pra trás daquela maneira. Nunca.

    Do outro lado, o homem soltou um suspiro pesado, não de tédio, mas de quem compreendia, de quem partilhava da mesma amargura do mundo. Seus braços se abriram, repousando nas bordas da fonte, e ele reclinou, cruzando uma perna por cima da outra, afundado até o peito.

    — Suas palavras são verdadeiras. Eu sinto isso. — Fez um gesto leve reconhecendo as palavras. — Fico feliz que Joy tenha tido sorte de cruzar contigo. Porque… sinceramente? Muitos dos que estavam com ele… não eram exatamente ‘os seus’. — A ponta de sarcasmo era sutil, mas real. — Famílias de Selenor. Uns vinte no total. Todos, magicamente, sem saber onde o garoto estava.

    O silêncio entre os dois ficou pesado, quebrado apenas pelo som ritmado das gotículas condensadas caindo das tubulações acima.

    Dante apertou o maxilar, fechou os olhos por um instante e depois abriu, deixando a pupila mirar um ponto fixo no teto.

    — Vinte pessoas… — repetiu, a voz mais baixa, carregada de desprezo. — Vinte pessoas não esquecem uma posição marcada. Nem uma. — Piscou lentamente, então virou o rosto, encarando o vazio como se as palavras quisessem atravessar paredes. — Ninguém esquece de propósito. A não ser que… queira esquecer. Bando de mentirosos.

    O som do riso do outro lado quebrou a tensão, rouco, grave, meio abafado pela água e pelo vapor. Não era um riso de diversão — era um riso amargo.

    — Eu acredito nisso também. — A voz do homem ficou mais densa, mais sombria. — Acredito que algumas pessoas… gostam de tratar o filho dos outros como se fosse um objeto. Uma isca. Um lembrete cruel. — Sua mão riscou a superfície da água, criando ondas que refletiam o vapor como se fossem espelhos distorcidos. — Eles não se importam com o garoto. O que eles querem… — Ele apertou os dedos na borda da fonte. — É acertar um ponto fraco. É gerar dor. Sabem que, mirando no fraco, ninguém espera retaliação. Pelo menos… eles acham isso.

    Foi nesse momento que Dante ergueu lentamente a cabeça, a expressão deixando o cansaço de lado, assumindo aquele olhar que tantos outros temiam: frio, calculista, desconfiado, e profundamente atento.

    E o homem notou também, mudando sua postura para uma mais rigida.

    — Eles miram nos familiares. — As palavras de Dante não eram mais uma dedução, mas uma constatação. Seus olhos apertaram, a respiração ficou mais lenta, mais pesada. — Foi isso que fizeram.

    O homem ficou em silêncio por alguns segundos. Só depois soltou o ar lentamente, como quem confirmava algo que já sabia, mas não queria dizer em voz alta.

    — Sim. O filho do homem que tomou controle por esse lugar. A família Saser tem um responsável. E mesmo que sua família tenha sido colocada num lugar onde ninguém luta, ainda tentaram levar seu filho, acreditando que o afundariam ainda mais na merda que se encontram. Sem querer, Hassini, você fez algo muito grande para esse homem.

    Dante agora sentou-se, notando que era mais sério do que achou no começo. Nick despertou lentamente, espreguiçando desajeitado e assumindo a posição em seu ombro, agarrando-se a sua pele, mas sem apertar.

    — Do que está falando?

    — Estou falando que ao salvar Joy — seus olhos se tornaram firmes —, você me deu a munição para acabar com algumas pessoas que gostariam de tocar no bem mais precioso de um homem: a sua família.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota