Capítulo 160: O pássaro de pele e ossos.
Baalat estava agachada, de cócoras, inclinada sobre o cadáver mutilado de Phenex.
Seus olhos eram duros, carregados de ressentimento.
Era a primeira vez que Angélica a via desse jeito.
— Senhorita Baalat… — Satanakia tentou se aproximar.
— Fique longe de mim! — Ela se levantou. — Melhor: vá buscar uma garrafa de vinho!
Satanakia a encarou por um tempo. Não sabia o que dizer. Ele não era alguém que deveria ser tratado como um empregado, mas quando a primeira princesa dava uma ordem, era melhor obedecer. Principalmente no estado em que estava.
— Certo — disse ele, abriu as asas e saiu voando.
— Então nós perdemos? — falou Angélica. Em sua voz, tinha um tom de incredulidade. — Como pode ser possível?
— Nós o subestimamos. Ficamos tanto tempo no topo do poder, que não pudemos entender quando algo mais perigoso apareceu. Foi isso o que aconteceu! — Tinha até um toque de raiva na voz de Baalat.
— Não! Eu não acho que…
— E foi apenas um cavaleiro. — Ela riu com incredulidade, achando a situação tão absurda que era até cômica. — Existem mais três deles. E ainda tem A Besta que Subiu do Mar e A Besta que Subiu da Terra, que devem ser tão fortes quanto eles… ou mais.
— Senhorita súcubo! Essa sua aparência! — disse Angélica, abismada com a forma demoníaca de Clara.
A súcubo deu de ombros. Já não fazia mais sentido guardar segredos.
— Quando selei o pacto com o Renato, uma quantidade absurda de poder fluiu pra mim. Isso rompeu o selo que os Naz-haîm puseram.
— Então você selou o pacto. — Baalat olhou diretamente para ela. — E o poder do Condutor foi capaz até de romper o selo. — Ela olhou para Renato. — Então o Inferno tem a posse do poder de Arimã.
— Então… mais ou menos — disse a súcubo.
— Espere aí! O quê? — Baalat surpreendeu-se após ouvir a explicação do que tinha acontecido.
— Eu sabia! Eu sabia que o senhor humano era incrível desde o início! E você, minha irmã, achando que poderia usar ele como um objeto seu! Achou que poderia tomá-lo de mim! Belfegor, Satanakia… todos vocês demoraram para ver o quão incrível ele era! Mas eu sempre soube! — Angélica falava e gargalhava, no auge de sua arrogância e prepotência infantil.
— Você, humano… — Baalat chamou pelo garoto.
Renato estava num canto da câmara, abraçado junto a Lírica e Irina.
— Que bom que estão bem! Que bom! Eu não poderia…
— Irmão — disse Irina —, então é com esse tipo de poder que você está lidando! Por que não pediu ajuda? Nossos pais poderiam…
— Não. Não posso envolver eles. Seria perigoso demais. Eu nem queria envolver você.
— Isso me ofende! Sabe que eu sei me defender sozinha! Acha que eu seria um estorvo? Acha que eu não seria útil?
— Não é isso, droga! Você sabe disso!
— O Renato não gosta de pedir ajuda — disse Lírica. — Por isso nós precisamos identificar quando ele precisar, para ajudá-lo, mesmo que ele não queira.
— Sim! Você tem razão — concordou Irina.
— Você quase morreu hoje, Irina — disse Renato, com uma sombra nos olhos. — Você também, Lírica. Eu quase perdi vocês duas. Como acham que eu me sinto? Não se importam? Como eu vou ficar se alguma de vocês morrerem?
— E como acha que a gente vai ficar se você morrer, hein? — gritou Irina. — Principalmente se nós não fizermos nada para impedir? Acha que vai ser confortável viver sem você? Você continua se menosprezando tanto assim? — Irritada, ela deu soquinhos no peito dele.
— Desculpe… eu não pensei…
— Você nunca pensa! — Lírica retrucou, e parecia ainda mais irritada do que Irina. — Sempre pensa nos outros, mas nunca pensa em si mesmo. Mas nós pensamos, Renato! E pensamos demais! Não sei se você percebeu, mas nós meio que te amamos, sabia? Não se importa com aquilo que sentimos?
— Me importo, sim! Mas…
Foi nessa hora que Baalat o chamou.
— Humano! — disse a primeira princesa. — Eu testemunhei sua luta. Você lutou bem! E conseguiu cruzar espadas com o um Cavaleiro do Apocalipse, de um jeito que poucas criaturas na Existência conseguiriam. Você fez mais do que eu. — Baalat parecia até um pouco envergonhada.
— Eu tive ajuda de minhas companheiras — respondeu Renato. — Clara, minha irmã Irina, e Lírica, a demi-humana que vocês, por anos, trataram como se fosse uma mera escrava. — Ele desviou o olhar, e encarou o corpo decapitado do orc. — E Hazor. Ele também lutou bravamente.
— O que rolou aqui? — Belfegor pousou no centro da câmara. Olhou os cadáveres e a destruição, e logo entendeu. — Então nós…
— Perdemos — respondeu Baalat. — Depois, quero um relatório detalhado sobre o que estava fazendo e onde estava, Belfegor. Mas agora, algo me intriga. — Ela olhou para Renato. Abriu suas asas e diminuiu a distância entre eles, ficando bem pertinho. — Guerra mencionou uma proposta. Por favor, faça a gentileza de nos contar qual proposta seria essa.
O tom de voz da primeira princesa deixava claro que ela não estava pedindo, e que a educação em suas palavras era mera formalidade.
— Os Cavaleiros querem que eu me junte a eles. A luta deles não é apenas contra o Inferno, mas contra o Céu também. Eles disseram que se eu me juntar a eles… vão devolver todas as pessoas que eu perdi. A própria Morte me disse que traria meus entes queridos mortos de volta à vida se eu os escolhesse.
Baalat sorriu.
— Interessante. Então, até a Morte em pessoa reconhece seu valor. Por que será que nós fomos os últimos a perceber isso? — Baalat direcionava para Clara um olhar de julgamento.
— Aqui! Eu trouxe o vinho! — Satanakia pousou próximo a eles e recolheu as asas. Tinha uma única garrafa, que Baalat pegou de suas mãos e, abrindo a tampa, virou metade do conteúdo direto no gargalo.
— Então as crianças podem mesmo… — disse Irina. Seus olhos transmitiam o choque que se abatia em seu coração, mas também havia uma pitada de esperança.
— Sim. — Renato assentiu. E tudo dependia da escolha dele.
— Posso beber um pouco? — perguntou a súcubo.
— Mas é claro. — Baalat jogou a garrafa pela metade para ela.
Angélica, que estava pensativa, foi a primeira a levantar a questão.
— E o que vai escolher, Renato?
Todos ali olharam diretamente para ele, esperando pela resposta.
O olhar triste de Irina, ainda de luto, tendo que confrontar tal possibilidade, foi a coisa mais difícil de encarar. A esperança tende a ser cruel.
Renato suspirou.
Porém, um grito agudo, como o piado lamentoso de uma harpia, ecoou. O som irritava os ouvidos, da mesma forma que o barulho de giz seco raspando na lousa.
E aquele pássaro monstruoso entrou na câmara. Não era um Carniceiro, mas muito mais terrível.
Com o corpo do tamanho de uma pessoa, e a curvatura das asas ossudas quatro vezes este tamanho, era todo feito de ossos, e uma pele fina e apodrecida que se agarrava em algumas costelas e pernas, parecendo um tecido velho.
Também, entre as costelas e na cabeça, havia resquícios de carne podre.
O bico encurvado, gritava de indignação.
E então, a criatura pousou, e imediatamente sua forma mudou, e se tornou uma garota baixinha, de pele levemente alaranjada e olhos muito pretos. Era Hoopoe, a secretária de Phenex e recepcionista da Masmorra das Luzes.
— Reitor! — murmurou ela, em choque, e correu até o corpo do demônio.
Se inclinou sobre ele, pôs as duas mãos sobre seu ferimento no peito, e fechou os olhos. Uma luz verde cobriu o corpo de Phenex.
Era a magia da cura de Hoopoe.
Mas nada aconteceu.
Ela tentou novamente.
— Vamos! Por favor! Não me deixe!
O reitor permaneceu imóvel, de olhos fechados. O sangue escorria de seu ferimento.
Ela tentou de novo.
Golpeou seu peito com socos, numa tentativa desesperada de fazer o coração voltar a bater.
— Desgracado! Você prometeu!
Sua magia de cura o cobria totalmente. Mas não havia mais nada que pudesse ser feito. Era tarde demais.
O Reitor Phenex estava morto.
Hoopoe engoliu o choro e a raiva que crescia em seu peito.
Levantou-se e olhou diretamente para Baalat.
— Por que que não me chamou? Como podem entrar numa luta sem um curandeiro?
— Porque achamos que poderíamos vencer — admitiu Baalat.
— Seu pai não acharia. Seu pai teria certeza! E ele tomaria as precauções necessárias. — A raiva estava vazando na voz de Hoopoe. — Suas atitudes causaram a morte de um demônio muito valoroso. Espero que se orgulhe disso, Baalat!
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