Capítulo 15 - Kairin
Bati minhas asas, me impulsionando cada vez mais em direção às nuvens enquanto o chão sumia de minha visão. Voar era uma sensação libertadora e eu sequer sabia por que me dava ao trabalho de colocar as garras no chão de vez em quando.
Sentindo que minhas asas estavam para se cansar, simplesmente as deixei estendidas enquanto usava uma corrente de ar ascendente para me jogar cada vez mais para cima.
Ultrapassei as nuvens, enxergando o infinito céu enquanto o sol iluminava minhas… Penas? Desde quando eu tenho penas em meus braços?
A súbita compreensão pareceu quebrar algo e já não era mais eu voando, mas sim Kairin. Ele parecia confuso, como se não entendesse o que havia acabado de acontecer. Como tinha chegado ali em cima tão rápido? Estava pegando impulso há pouco e agora já estava tão alto?
Como se um primeiro dominó tivesse caído, outros começaram a cair em sequência. Um atrás do outro. Eu era o pássaro-trovão, então eu não era mais, mas ainda estava com ele. Logo tudo ficou escuro.
Uma pequena parte de mim temeu, se lembrando de quando eu caí na escuridão depois de minha morte. Eu… Morri novamente? Eu não tinha aquela mesma sensação de queda, mas também não conseguia enxergar nada.
Tentei recapitular os últimos acontecimentos para entender onde exatamente eu poderia estar.
A última coisa que me lembro é da luta contra o capitão dos alados.
Eu usei tanta energia prismática que perdi a consciência. Eu poderia ter Desbotado?
A angústia de entender o que realmente aconteceu comigo e se eu estava morta aos poucos era substituída pela angústia de seguir viva, mas Desbotada.
— Ell? — Ouvi alguém me chamando. Eu conhecia essa voz.
Eu toquei a origem da voz e a sensação me trouxe conforto. Então eu me agarrei a ela, com todas as minhas forças.
— Eu…
Não consegui completar minhas palavras.
— Ela está acordando! — A voz disse novamente.
— Estou voltando. — Outra voz respondeu.
Subitamente compreendi que eu estava apenas dormindo e estava muito difícil acordar. Como se meus olhos não quisessem abrir e meus membros não quisessem se mover.
— Eu… Quero acordar! — Gritei através daquele laço por onde me ancorava.
Algo me beliscou e isso pareceu me conectar de vez com meu corpo. Abri os olhos, preparada para ver a montanha onde havia acabado de lutar contra o exército alado, ainda de noite.
O que me recebeu foi um clarão forte, meus olhos com dificuldades em se ajustar rapidamente.
A primeira coisa que reconheci foram as penas amarelas de Kairin imediatamente e vi que minha pele em meu antebraço tinha um pequeno corte, logo ao lado das garras do pássaro-trovão.
O beliscão que eu senti para me despertar foi ele.
Aos poucos meus olhos se acostumavam com a claridade e eu consegui entender onde estava.
Era meu quarto, na casa de minha avó. A janela estava aberta e, lá fora, eu pude ver o olho dourado de Victoria espiando o lado de dentro, tentando me enxergar também.
Tinha uma cadeira ao lado da minha cama, com Ralik encostado e com o pescoço apoiado no encosto. Ele estava dormindo.
Por que ele estava dormindo em uma cadeira no meu quarto?
— Ele queria ficar por perto. — Kairin respondeu. E eu reconheci que era dele a segunda voz de antes.
— Apesar de eu ter dito que não precisava, que eu não iria tirar o olho de você por nada. — Vic falou e a sua voz era a do primeiro laço.
Tentei mexer meus braços e pernas para me sentar, mas meus dedos mal me responderam.
— O que aconteceu comigo? — Fiquei grata ao perceber que eu conseguia falar através da nossa conexão, já que meu corpo parecia não responder.
— Você ficou… Em coma pelos últimos trinta dias. — Vic respondeu.
Isso respondia a fraqueza de meu corpo. Ficar um mês sem fazer nenhum movimento deve ter enfraquecido meus músculos.
Mas um mês era tanto tempo. Eu tinha perdido tudo isso de aula? Como estava a invasão dos Externos?
Percebi que Victoria nem piscava enquanto me encarava do lado de fora do quarto. Não tinha uma árvore ali onde ela estava?
— Tinha. Não tem mais.
Não era a árvore que eu e minha avó regamos juntas com nossa energia, era uma menor que Kairin costumava usar para ficar próximo de mim.
— Como… Nós saímos de Lazil? — Um mês parecia muito tempo.
— Logo depois que nossa conexão vital foi estabelecida, você acessou meus poderes e usou eles para matar o alado, mas isso… Te esgotou. Você já estava muito fraca e tinha perdido muito sangue. — Kairin parecia um irmão mais velho, contando uma história com o cuidado de passar por todos os detalhes.
Assim que ele falou, eu me lembrei. A energia de um raio percorrendo meu corpo, meus sentidos afiados, eu caindo sobre o inimigo como um trovão enquanto cravava a espada de sua própria raça em seu corpo.
E a promessa de que eles viriam atrás de Victoria.
— Espere… Nossa conexão vital? Nós completamos o laço? — Perguntei. — Como foi isso?
Kairin pareceu hesitar, olhando para outro lugar que não fosse para mim. E eu amaldiçoei a fraqueza em meu corpo por não poder lhe envolver com meus braços.
— Eu… Forcei?
Victoria pareceu se afastar para nos dar aquele momento de privacidade.
— Não foi de propósito… Provavelmente você morreria se não tivesse feito isso. — Ele respondeu. Como a resposta de alguém que já havia considerado aquilo por muito tempo.
Formar o laço com um familiar era dividido em três etapas: a primeira conexão, feita quando nahuale e familiar são ainda filhotes. Essa conexão permite que vocês consigam se comunicar mentalmente. É como fazer uma trilha em uma floresta densa, onde o caminho é tortuoso e de difícil acesso.
A segunda conexão é quando essa trilha se transforma em um caminho claro. Surge a capacidade de compartilharmos nossa energia prismática entre nós. Aquilo que Kairin e Victoria haviam feito logo no primeiro dia na academia, cinco anos atrás.
Até esse momento, se acontecesse alguma coisa com um de nós dois, o outro ainda ficaria bem. Nossas vidas estavam separadas e podiam continuar assim, se ambos os lados não aceitassem se unir. Existiam muitos nahuales que não completaram a conexão para preservar suas próprias vidas e a de seus familiares.
Era algo que precisava ser decidido em conjunto. A academia fazia isso na cerimônia de formatura.
Senti quando meus olhos começaram a se encher de lágrimas.
— Me perdoa… — O que eu havia feito poderia ser considerado um crime.
Eu não dei a escolha a ele. Apenas a tomei.
Ele me olhou no fundo dos meus olhos. Suas pupilas fendidas pareceram enxergar não apenas meu corpo físico, mas minha alma. Meu arrependimento.
— Eu perdoo você, Ell. — Ele falou.
Suas palavras não me entregaram apenas suas verdadeiras intenções, mas também seus sentimentos dos últimos trinta dias. Ele não sabia se eu havia feito de propósito ou não e essa dúvida estava lhe deixando cada vez mais angustiado.
Kairin, que em outra vida, tinha feito a escolha de não se ancorar comigo. E agora eu tinha tomado essa escolha dele.
Ele se aproximou e encostou seu bico em minha testa.
— Eu perdoo você. — Repetiu. — Apesar do que fiz na sua… Outra vida. Nunca, nem uma vez, eu sequer pensei em uma vida sem ser o seu familiar.
A sinceridade daquela conexão me transmitiu a verdade em suas palavras.
E eu chorei ainda mais.
—
Vic retornou depois de um tempo e ambos continuaram a história do que aconteceu.
Logo depois que eu desmaiei, Victoria chegou. O resto do exército alado tinha se reunido para nos atacar, mas alguém continuava disparando flechas neles de dentro da floresta e eles tiveram de pousar, perdendo a vantagem aérea.
Vic, Kairin e Fenriz me protegeram e me tiraram de lá. Eles não fizeram isso de forma que saíram incólumes, mas seus ferimentos eram apenas físicos e já estavam quase que totalmente recuperados.
Eu ainda estava na cama e acordava e voltava a dormir entre os cochilos.
Era esquisito como meu dormi o último mês inteiro e ainda consigo ter sono para dormir mais um pouco.
Quando acordei novamente, Ralik estava acordado e folheando um livro em suas mãos.
Ele demorou um pouco para perceber que eu tinha acordado, então eu não me preocupei em lhe avisar e apenas fiquei olhando para ele.
Parecia ter envelhecido um ano naqueles últimos trinta dias: olheiras envolviam seus olhos, as testas constantemente enrugadas por conta de alguma preocupação e os lábios rachados. O cabelo cinzento, desgrenhado, parecia não ver um pente ou um pouco de água há muitos dias.
Ralik folheou o livro, indo para a próxima página. Tentei ver do que se tratava pela capa, mas era apenas preta e não tinha nada de escrito nela.
Ele mudou de posição, como se as costas estivessem doendo da forma atual e, no meio do movimento, me olhou.
E ficou completamente estático, percebendo que eu estava acordada. Seus olhos arregalados denunciaram que ele estava pensando em todas as possibilidades do que deveria fazer.
Até que se decidiu e se aproximou mais, colocando a mão sobre a minha.
Gostei do toque dele e me esforcei para retribuir, mas foi difícil. Então me contentei apenas com o contato físico.
— Como você está? — Ele perguntou. — Consegue falar? Se mexer? Precisa de alguma coisa? Água? — Fez mais umas quatro ou cinco perguntas antes de perceber que eu não tinha respondido nenhuma, então parou.
Encontrei forças apenas para balançar a cabeça, sorrindo com aquela cena.
Cansada de não conseguir mais me mover, falar e querendo fazer qualquer outra coisa para sair da cama, lancei mão de minha energia prismática.
Era fácil conversar com meus familiares através do laço, mas minha garganta e cordas vocais não concordavam que eu devesse falar rapidamente depois de um mês sem pronunciar uma única palavra.
O Vermelho deveria ser o suficiente para acelerar o processo de recuperação do meu corpo, fazendo com que eu retornasse ao normal. Por mais que fosse demorado, eu tinha certeza de que funcionaria.
O que eu não esperava era a dor que veio no lugar do familiar brilho rubro.
Uma dor profunda, que nascia no centro do meu peito e irradiava por todos os membros do meu corpo. Aguda, se espalhava com facilidade enquanto eu não conseguia sequer respirar direito.
Gritei com força, a dor aumentando cada vez mais à medida que eu tentava usar o vermelho. E aquilo pareceu me esgotar muito rapidamente.
Porque tudo se apagou novamente.
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