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    Faz três meses que entrei na Academia Fjorheim, e até hoje não imaginei que sentiria tanta falta dela… Katarina.

    Sonhei com ela essa noite. Aqueles sonhos que te deixam com o coração apertado quando acorda. Saudade não é uma coisa que você percebe de imediato. Ela só bate de verdade quando a rotina muda e, do nada, o mundo parece vazio de novo.

    Mas hoje o foco era outro. Última semana antes do Exame de Subida de Rank. Nada de aulas, só preparação. E como a Rina tinha me pedido para treinar com ela, acordei cedo. O Levi, meu colega de quarto, já não estava lá — deixou um café quente no criado-mudo, provavelmente saiu pra treinar também. Faz sentido, com aquele corpo esculpido em disciplina.

    Tomei o café, troquei de roupa e saí do dormitório.

    Atravessei o campo da academia. A manhã estava animada. Alunos por todos os lados — alguns dançavam, outros praticavam artes marciais com movimentos afiados. Havia quem lesse, quem cochilasse à sombra, quem apenas observasse. Era uma mistura de mundos em um só lugar.

    Meu destino era o Prédio Azul, o mais distante e imponente da área comum. Um prédio reservado para os veteranos do quarto ano. Só de me aproximar, senti a pressão do ambiente mudar. Os alunos ali exalavam outra presença, como se estivessem mais próximos de se tornarem algo além de simples estudantes.

    Foi aí que percebi… a lente de contato que o Marion me deu realmente funciona. Meus passos passaram despercebidos, como se eu fosse só mais uma sombra no canto dos olhos deles.

    Entrei no prédio e segui pelos corredores altos e largos. O eco dos meus passos se misturava com sons abafados de treino e conversa. Caminhei até o fundo, onde ficava a quadra de treino.

    A porta estava entreaberta. Respirei fundo.

    “Que tipo de treinamento será que a Rina preparou?” Pensei, lembrando das sessões insanas com o Levi. Os dois claramente tinham padrões diferentes… mas nenhum deles sabia pegar leve.

    Desci a escadaria que levava até a quadra. O som metálico das minhas botas ecoava conforme me aproximava. Quando cheguei no nível da quadra, ela apareceu.

    Rina.

    Como sempre, com aquela expressão séria de quem não acorda com menos de três problemas na cabeça.

    — Fico feliz que tenha vindo — disse, cruzando os braços —. E que não ficou com medo do que rolou ontem.

    Não, eu não estava com medo. Confuso? Com certeza. Tanta coisa aconteceu nos últimos dias… palavras, advertências, e o que aconteceu com a Mina… tudo embaralhado.

    Mas mesmo assim, soltei um sorriso torto e respondi:

    — Eu não podia faltar a um treino preparado pela minha veterana, né?

    Rina ergueu uma sobrancelha, visivelmente incomodada.

    — Nunca mais diga isso. É… vergonhoso demais. — bufou, antes de se virar. — Enfim. Quero te apresentar duas pessoas.

    Foi aí que percebi. Duas figuras vinham em nossa direção, passos calmos, mas com presenças tão distintas que o ar entre elas parecia vibrar.

    Rina apontou para a da direita.

    — Essa é a Nevara Lyeis.

    Ela vinha com uma leveza estranha, quase etérea. Pele morena profunda, um contraste lindo com os cabelos extremamente claros, quase prateados, longos e desalinhados como uma nevasca selvagem.

    Os olhos verde-claros eram serenos… frios. Como lagos congelados que escondem segredos em suas profundezas. O olhar dela não era distante — era profundo demais.

    Vestia um quimono azul-acinzentado, bordado com padrões que lembravam flocos de neve sob uma lupa. A faixa vermelha escura na cintura parecia conter algo — talvez energia, talvez um selo, talvez a própria frieza dela.

    No rosto, duas manchas de tinta ritualística. Simbolismos antigos, sem tradução aparente, como se o próprio rosto dela carregasse uma história esquecida.

    Ela se curvou levemente, com um tom neutro e suave:

    — Estou feliz em poder te treinar.

    Antes que eu pudesse reagir, a outra deu um passo à frente, apontando para o próprio peito.

    — Meu nome é Sevira Lunhall.

    A voz dela era firme e ao mesmo tempo preguiçosa, carregada de um tédio repleto de poder. Ela não esperava ser notada — ela era notada.

    Sevira era o oposto visual de Nevara. Um corpo atlético, desenhado por batalhas e suor. A pele era marcada com tatuagens tribais arcanas, linhas que se moviam sutilmente sob a pele como circuitos vivos.

    Os cabelos negros e longos caíam em mechas livres, com uma única trança verde-musgo cruzando o lado direito. Cada detalhe parecia calculado para parecer natural.

    Os olhos dourados dela eram intensos — não investigavam, selecionavam. O olhar dela decidia. A presença era como a de um predador de floresta antiga, silencioso e impossível de ignorar.

    Vestia roupas leves em preto e tons terrosos. Calças soltas, sandálias de combate, um top justo que deixava evidente sua força. Nada nela era ornamental. Tudo era funcional, mas com um estilo que gritava perigo.

    Apenas a presença das duas já deixava claro: esse treino vai ser qualquer coisa, menos tranquilo.

    Quando olhei de novo pra Rina, vi algo que eu jurei que nunca veria.

    A expressão dela — aquela garota que sempre parece pronta pra enterrar qualquer emoção sob uma tonelada de gelo — estava… irritada. E surpresa. Tipo, um misto de “isso não era pra acontecer” com “ela não acabou de me cortar assim, né?”

    Rina parecia o tipo de pessoa que te fuzila com o olhar e resolve tudo em silêncio. Mas ali, no canto do olho, a sobrancelha dela deu uma leve contraída. Quase imperceptível… mas suficiente pra eu saber que ela estava p da vida.

    Antes que eu pudesse dizer algo, Nevara se aproximou.

    Ela parou na minha frente com aquele olhar calmo de sempre, como se o mundo inteiro estivesse congelado ao redor dela e só ela pudesse se mover.

    — Ele é do Clã da Escuridão, assim como você, Rina — disse, com a voz suave como gelo quebrando ao sol. — Vocês são parentes?

    Rina não respondeu. Só me olhou. Fria. Silenciosa. Como se dissesse “não se mete nisso.”

    Nevara, ainda sem mudar a expressão, encostou a mão na minha cabeça. O toque era leve, quase etéreo.

    — Você será nosso irmãozinho mais novo — afirmou, do mesmo jeito que alguém fala “o céu é azul”. Como se já estivesse decidido. Como se já fosse fato.

    Eu congelei.

    Meu corpo não mostrou nada. Mas por dentro? Eu tava vermelho até a alma.

    Antes que pudesse reagir de verdade, Sevira cruzou os braços com aquele jeito dela — corpo relaxado, mas com olhos de fera afiada.

    — Enfim… diga logo pra ele, Rina. O que tem que ser dito.

    Rina deu um passo à frente, firme, como se precisasse retomar o controle da conversa com o próprio andar.

    — Esse treino foi preparado por mim — disse, seca. — Ontem eu falei que foi ideia do seu antigo mestre, o Don. Mas foi só a base. Eu adaptei.

    Ela respirou fundo e pôs a mão sobre o peito, com uma expressão estranhamente orgulhosa.

    — Como ele dizia: “Pra evoluir de verdade em força, lute contra quem é mais forte que você.” Então, durante sete dias, você vai lutar com nós três. Ao mesmo tempo.

    Eu pisquei.

    — Espera… o quê? Eu? Três contra um?

    Uma parte de mim gritou “isso é loucura”, mas… a outra parte? A outra parte sorriu por dentro. Aquilo era exatamente o tipo de desafio que meu sangue pedia.

    Rina continuou, com um leve sorrisinho sarcástico nos lábios.

    — E, nas palavras dele: “Para manter um homem focado, nada melhor do que treinar ao lado de três mulheres lindas.” Então se sinta… privilegiado.

    …Então esse era o tal Don? Um mestre, um pervertido, ou um gênio do caos?

    De todo jeito… interessante.

    Comecei a ajeitar a postura, tentando entrar no clima. Mas aí, do nada, alguém segura meu queixo e levanta meu rosto.

    Meus olhos encontram os dela.

    Sayra K’alani.

    Ela sorri.

    — Espera aí. Cheguei agora, me esperem um pouquinho, ok?

    Era impossível ignorá-la. Dourada. Radiante. Como um raio de sol que decidiu tomar forma humana. A pele bronzeada dela parecia brilhar sozinha, os olhos tão vivos que davam a sensação de que ela estava sempre a um segundo de rir ou derrubar uma montanha só por diversão.

    Sayra não andava — ela voava.

    Fez um mortal perfeito por cima de mim, aterrissando suavemente entre as três garotas como se estivesse entrando num palco.

    — Rinazinha, você finalmente conseguiu minha atenção. Como me pediu algumas semanas atrás, aqui estou. — Apontou pra si mesma com o polegar, piscando. — Serei sua observadora particular durante essa semana.

    Observadora de Luta. Claro.

    Como fui esquecer? São obrigatórios quando o treino envolve códigos genéticos. Se algo der errado… eles intervêm. Dizia-se que haviam quatro observadores na academia. E eu só tinha visto três até agora: Sayra, Natan’zar e Cael.

    O quarto continua um mistério…

    Sayra bate palmas.

    — Enfim, só vou ficar olhando vocês. Espero que deem um show pros meus olhos, viu?

    Ela se virou pra mim com aquele olhar penetrante e curioso.

    — Hmm? Você não tinha um olho rosa? Eu lembro do dia da cerimônia. Era impossível esquecer algo tão icônico. — E antes que eu respondesse, ela já cortava: — Ah, decidiu esconder, né? Que pena… — riu e passou a mão pelos cabelos azul-claros, que caíam como um rio liso até a cintura. — Treinem com moderação.

    E saiu saltitando, quase dançando, até as cadeiras dobradas num canto da quadra.

    Fiquei parado por um segundo. E então respirei fundo.

    — Certo… agora é sério.

    Virei pra encarar as três. Mas mal terminei de falar, e Sevira já estava em cima de mim.

    Os punhos dela vieram como trovões. Não gritou, não anunciou. Só atacou.

    Reagi por instinto, desviando pro lado e recuando. O ar assobiou. E, mesmo assim…

    Um corte fino surgiu na minha bochecha.

    Nem vi o que foi.

    Ela parou, lambeu os próprios dentes e deixou escapar um sorriso curto, quase selvagem.

    — Reflexos bons… — murmurou, os olhos dourados brilhando. — Acho que vou gostar muito disso.

    Eu já sabia que esse treino ia ser intenso… mas isso? Isso já era um começo melhor do que eu esperava.

    Mal tinha me reposicionado depois do primeiro golpe e já fui pra cima da Sevira com a espada de madeira em mãos. Girei o punho, tentei achar um ponto de abertura — mas, antes mesmo de preparar um golpe, outro soco veio direto no meu rosto.

    Do nada. Sem barulho. Sem preparação. Só veio.

    O impacto foi leve, quase brincadeira… mas a surpresa doeu mais que o soco.

    Sevira soltou um sorriso afiado, quase debochado.

    — O que foi? Vai cair sozinho agora?

    Bufei, e sem perder tempo, abri meu portal dimensional. Estava pronto pra puxar minha adaga de lá, mas então…

    Uma mão toca meu braço.

    Eu nem senti ela se aproximar. Quando olhei pro lado, Rina já estava lá — do meu lado, como se tivesse se teleportado com o vento.

    A mulher que raramente se move, agora segurava uma espada de madeira com naturalidade, como se fosse parte dela.

    — Espere — disse, séria. — Você vai usar isso. Esse treino também serve pra te forçar a se adaptar a outros tipos de armas. Não se acomode.

    Nevara permaneceu parada. Inexpressiva. Nem uma piscada.

    Peguei a espada com um aceno breve e me posicionei. Rina cruzou os braços e assentiu.

    — Pode começar.

    Sem hesitar, disparei pra cima da Nevara. Ela parecia a mais frágil. Sua aparência dava pistas: tema de gelo, talvez? A lógica era simples — entender o inimigo mais previsível primeiro. Desvendar o mistério.

    Cheguei perto e teleportei por trás dela, usando meu portal. A lâmina desceu — mas, no impacto…

    Ela se quebrou.

    Nevara estilhaçou como vidro.

    O som foi seco. Uma explosão de fragmentos gélidos. Meu cérebro não entendeu de primeira. O que foi isso?

    Antes que pudesse reagir, Sevira já estava em cima.

    Golpes. Muitos. Os punhos dela vinham como relâmpagos. E eu? Tive que me virar com a espada — desviando, defendendo, recuando. Cada impacto fazia meus braços latejarem.

    Ela tentou atingir meu estômago com um golpe giratório, mas eu ativei o portal e apareci atrás dela…

    Mas ela não estava mais lá.

    Virei o rosto e…

    Ela estava atrás de mim.

    A tempo de me dar um chute. Levantei a espada no reflexo, e mesmo assim — crack.

    A madeira rachou no meio.

    Sevira sorriu, olhos dourados brilhando como se dissesse “isso é tudo que você tem?”

    Me afastei cambaleando. Tentava entender… Como ela se moveu tão rápido?

    E então percebi.

    As tatuagens dela… elas brilhavam. E pareciam maiores. Pulsavam como se estivessem vivas. Não era só força física… aquilo era poder ativo. Um código? Um ritual? Precisava entender.

    Mas aí… algo picou meu braço.

    Olhei, e havia uma agulha fincada. E quando levantei o olhar, lá estava Rina. Calma, como sempre, com um bolo de fios e agulhas entre os dedos. Manipulando como se fosse uma marionetista.

    Até aquele momento, eu ainda não tinha visto a verdadeira Nevara. Mas então, senti um arrepio. Pelo canto dos olhos, percebi.

    Ela estava ao meu lado.

    Sem som. Sem calor. Apenas presença.

    Estava cercado.

    Mas nervoso?

    Nem ferrando. Eu estava com um prazer imenso.

    Eu tava acendendo por dentro. Era como aquela sensação boa de quando você tá voltando pra casa num dia gelado, e sabe que vai comer algo quente e doce. O corpo formigava de empolgação.

    Mesmo com a espada quebrada, ajeitei minha postura.

    Sevira avançou.

    Golpes vinham em sequência. Eu esquivava, observando. Estudando. E quando ela girou pra dar um chute mais alto, me abaixei. Em um movimento limpo, acertei a perna dela.

    Ela escorregou. Ficou surpresa. Isso me deu uma brecha.

    Não hesitei.

    Girei, mirei em Nevara. Dessa vez, fui de frente. Nada de truques. Queria confirmar algo.

    A quadra… agora eu via. Havia pontos brilhantes no chão. Como reflexos minúsculos. Espelhos. Não gelo.

    Nevara não controlava o frio.

    Ela manipulava reflexos.

    Era inútil atacá-la diretamente. Não até descobrir um padrão.

    Então, sem perder tempo, abri um novo portal. Apareci na direção da Rina. A ideia era simples: ela parecia a mais estática — talvez, a menos agressiva. Se eu derrubasse uma, ganharia tempo.

    Corri com tudo, a espada partida na mão, mas com convicção nos olhos.

    Mas então…

    — Idiota — murmurou Sevira, lá atrás.

    Uma agulha zuniu no ar. Veio como um raio. E entrou direto no meu braço.

    CHZZZT!

    Um choque elétrico subiu pelo meu ombro e o braço simplesmente… parou. Membro morto. Inútil.

    Foi nesse instante que Rina se moveu.

    E me deu um chute direto no rosto.

    A visão virou. O mundo girou. E então…

    O chão.

    Fiquei ali, deitado, encarando o teto da quadra.

    Derrotado.

    Cercado. Superado. Sem chance real de vencer.

    Mas por dentro?

    Eu tava rindo.

    — …do cacete.

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