Capítulo 38: Sobre os Trilhos da Névoa.
Caminhar pela cidadela dos Salfos naquela manhã me trouxe uma sensação diferente. Não era exatamente medo… mas algo no ar parecia mais denso. O som dos passos apressados, dos sussurros entre soldados e da movimentação inquieta ao redor das torres deixava claro que algo havia acontecido… algo que estavam tentando esconder.
Me aproximei de um grupo de Salfos reunidos junto ao muro externo. Um deles gesticulava com irritação enquanto falava baixo com os outros. Mesmo à distância, consegui ouvir uma frase escapar.
— Eles devem ter escapado durante a noite…
Franzi o cenho, apertando o passo. Quando me aproximei, os três se viraram abruptamente, como se não esperassem ser ouvidos.
— Bom dia — disse, tentando soar casual. — Estavam falando sobre uma fuga?
Um breve silêncio recaiu entre eles. Um dos Salfos, de olhos miúdos e rosto severo, se adiantou com um sorriso forçado.
— Ah… sim, senhora heróina. Durante a noite, fomos invadidos por um pequeno grupo dos malditos Resai. Entraram sorrateiramente… Devem ter escapado por aqui.
Olhei para o muro e notei algo estranho: vinhas secas subindo pelas pedras, pareciam recentes, como se tivessem brotado e secado na mesma noite. Não comentei nada, mas meu instinto se acendeu.
— E por que não nos chamaram? — perguntei, tentando esconder o incômodo na minha voz. — Poderíamos ter ajudado.
O Salfo hesitou.
— Pensamos que os heróis precisavam descansar… Não queríamos incomodar.
Não respondi. Apenas fingi um assentimento e me afastei. Aquela história estava mal contada do início ao fim.
Encontrei Cratos perto do pátio central, encostado em um pilar, observando os arredores como se algo estivesse prestes a saltar das sombras.
— Precisamos conversar — murmurei ao me aproximar.
Ele virou o rosto para mim, curioso.
— Aqui não. Vamos para um canto mais quieto.
Seguimos por um corredor lateral até um pequeno saguão de pedra vazio, longe dos olhos e ouvidos dos Salfos. Lá, contei tudo: o que vi no muro, a desculpa esfarrapada dos guardas, e o mais importante, a ausência completa de Hernán e Ashley.
— Eles sumiram. Mas não tenho certeza se saíram por vontade própria.
Cratos cruzou os braços, a mandíbula tensa.
— Hernán pode ser impulsivo, mas não é burro. E não colocaria a Ashley em perigo… a menos que estivesse certo do que estava fazendo.
Antes que eu pudesse responder, passos leves ecoaram pelo corredor. Um som ritmado e contido, como se o próprio dono não quisesse ser notado.
Viramos ao mesmo tempo. E então, surgiu: Velkia o líder dos Salfos. Sua túnica vermelha oscilava levemente, e seus olhos estavam sombrios.
— Tenho notícias viajantes — anunciou, com certa frieza. — E, infelizmente, não são boas.
Meus olhos se arregalaram.
— O que houve?
Cratos cerrou os punhos, encarando o ancião com a firmeza de alguém que já esperava o pior.
— Durante a noite — começou o Salfo, com tom grave — nossos homens relataram que a cidadela foi infiltrada por Resai. E… seus amigos foram levados.
— Levados? — Cratos deu um passo à frente. — Como assim? Reféns?
— Reféns? Não exatamente — respondeu o ancião. — Os Resai têm… métodos. Técnicas antigas. Eles podem controlar a mente de outros seres com um toque. Quando capturam alguém, não é para fazer reféns: é para torná-los parte de seu exército.
— Isso é absurdo — soltei, sem pensar.
— Sei que parece. Mas vi isso acontecer com outros antes. Pessoas fortes e corajosas, assim como vocês. Quando caem sob a influência deles… dizem qualquer coisa para parecerem normais. Até mesmo para convencerem os outros de que estão do lado certo.
Cratos balançou a cabeça, visivelmente lutando contra a raiva e a confusão.
— E como quebrar esse… feitiço? — indagou.
O ancião fez uma expressão pesada.
— Só há uma forma: eliminar os Resai que lançaram o encantamento. Se não o fizerem… seus amigos estarão perdidos. Lutarão contra vocês com tudo o que têm. E farão isso acreditando estarem certos.
Fiquei em silêncio. Por dentro, a dúvida me corroía. Hernán… sob o controle de alguém? Era difícil imaginar. E mais difícil ainda aceitar a ideia de que só existia uma solução.
***
Fiquei ali por um tempo, apenas observando ela dormir. Ashley tinha caído no sono tão rápido depois de tudo que aconteceu… e sinceramente, não a culpava. A noite tinha sido longa, carregada de revelações que nem eu conseguia digerir por completo. A história do ancião, o que os Salfos fizeram, a maldição. E, no meio disso tudo, ela se manteve firme, ajudando os que ainda estavam feridos.
Ela merecia esse descanso.
Tirei a pedra de amolar do fundo da minha mochila e comecei a passar na lâmina da espada enquanto cantarolava mais baixo que o normal. Deslizei com cuidado, um lado, depois o outro. O som era familiar, quase reconfortante. Me fazia sentir no controle de alguma coisa, mesmo que fosse só do fio da minha espada.
— Bom dia… — ouvi a voz dela, suave, ainda meio sonolenta.
Parei o movimento no mesmo instante.
— Te acordei? Foi mal, não era minha intenção.
Ela bocejou e se sentou, ajeitando os cabelos com os dedos.
— Tá tudo bem. Já dormi bastante.
Sorri de leve, voltando a deslizar a pedra com mais delicadeza.
— A gente precisa pensar num jeito de tirar o pessoal de lá — falei, sem tirar os olhos da lâmina. — Eles precisam saber o que os Salfos fizeram com os Resai. A verdade toda.
Ashley ficou em silêncio por alguns segundos, depois respondeu:
— E você acha que vão acreditar no que dissermos? Apesar de tudo, os Salfos pareceram sempre mais confiáveis…
Suspirei, baixo.
— Não sei… mas talvez se a gente mostrar o que viu. Ou se o ancião falar com eles. Alguma coisa tem que funcionar.
Antes que pudéssemos ir mais fundo nessa conversa, duas crianças Resai se aproximaram com um cesto de frutas. Pareciam pequenas luas, redondas e brilhantes como se tivessem sido polidas à mão pela própria floresta. Peguei uma e Ashley também. No exato momento em que encostou na fruta, o estômago dela roncou alto.
Ela me olhou com um sorriso envergonhado, e um risinho escapou.
— Esqueci que não comi nada ontem à noite — disse, mordendo uma das frutas.
Peguei uma também, curioso. O exterior era macio, quase esponjoso, mas o interior… era doce, suave, com um suco que escorria pelas bordas. Fiquei surpreso.
— Nossa… essa fruta é muito saborosa — falei, limpando o canto da boca com o braço.
Ashley respondeu alguma coisa, mas estava com a boca tão cheia que saiu um som todo embaralhado, tipo “é muto bhom”, e virou pra mim com a fruta quase inteira entre os dentes.
— Que? — ri alto — deixa pra mim também, vai!
Ela segurou o cesto contra o peito e fez menção de correr. Me levantei num impulso e fui atrás dela, rindo como um idiota, enquanto ela tentava se esconder entre os lençóis estendidos. Por um momento… só um momento, tudo parecia normal. Leve. Quase feliz. A alegria das crianças Resai brincando, os adultos sorrindo, contando histórias a muito guardadas… até eu me permitir acreditar que talvez estivéssemos seguros.
Mas aí o som veio. Um som oco, no fundo do ar. Um ruído seco que fez meu corpo inteiro enrijecer. Me virei devagar, puxando Ashley junto. E então o barulho se intensificou. Passos. Vários. Pesados. Como um tambor vindo de longe.
E foi aí que vimos.
Lá no horizonte, sobre a névoa baixa, começaram a surgir… bandeiras. Vermelhas. Vibrantes. Tremulando como se anunciassem o início de algo que ninguém queria ouvir.
***
Os Salfos reuniram suas tropas em frente ao portão. O ancião em cima do muro discursava vigorosamente. Nós, estávamos dispostos em semicírculo diante dele, enquanto sua voz grave percorria os muros da cidadela.
— Dois dos heróis foram capturados pelos Resai — ele disse, firme, como se tivesse certeza absoluta. — E não só isso… acreditamos que estejam preparando um ataque contra nós.
Minhas mãos estavam cruzadas contra o peito, mas não consegui conter a tensão que percorreu meus ombros. Revirei os olhos discretamente. Aquela história estava cheia de furos, como eles poderiam ter sido capturados de baixo dos nossos narizes sem que ninguém percebesse…
— O que vamos fazer? — perguntou um dos outros aventureiros, a voz mais trêmula do que ele gostaria de demonstrar.
O ancião ergueu uma das mãos com teatralidade.
— Atacar. Antes que eles possam se preparar. A melhor defesa… é o golpe mais certeiro.
Senti meu estômago revirar. Ao meu lado, Cratos franziu o cenho.
Me aproximei dele, baixando a voz.
— Não podemos deixar que isso vire um banho de sangue. Se Ashley e Hernán estiverem com os Resai… precisamos trazê-los de volta. Sem matar ninguém.
— Se o que ele diz for a verdade, vai ser complicado — ele murmurou. — Mas vou fazer o possível pra abrir caminho se eles aparecerem.
Antes que pudéssemos discutir mais, o ancião caminhou em nossa direção com um semblante calculadamente pesaroso.
— Se o controle mental já estiver em estágio avançado… — disse, pausando como se precisasse pesar cada sílaba — nada do que disserem convencerá seus amigos. Eles podem tentar confundi-los. Não acreditem no que eles disserem.
Cratos cruzou os braços. Eu mantive o olhar firme no ancião.
— Daremos um jeito — respondi. — Não importa o que digam.
Pouco depois, o ancião ordenou que as tropas guiassem o caminho, seguimos marchando em meio a névoa.
O som dos tambores começou leve, como batidas tímidas no peito do mundo. Mas logo cresceu: grave, compassado, quase uma sentença. Os Salfos avançavam, empunhando suas armas e clamando por uma guerra que não era nossa.
Cratos estava sério. Os dois outros aventureiros que nos acompanhavam mantinham os olhos alertas, mas havia incerteza neles. E eu… eu só conseguia pensar no absurdo disso tudo. Por que, afinal, estávamos sendo arrastados para batalhas que não eram nossas?
A névoa começou a clarear.
Ao longe, entre as copas das árvores e o sussurro da floresta, a silhueta do acampamento Resai começou a surgir. Pequenas construções, fumaça no ar. Um vilarejo vivo… e agora, prestes a ser esmagado.
Tambores. Gritos. O som de marcha.
Meu coração acelerou. Procurei Ashley. Hernán. Qualquer sinal deles.
Nada.
— Onde vocês estão? — sussurrei para mim mesma, enquanto a linha de ataque avançava.
A linha da frente rompeu a névoa com passos firmes e tambores de guerra. As lanças se ergueram, e os gritos dos Salfos rasgaram o silêncio da manhã. Eu segui em frente sem hesitar, se Ashley e Hernán estavam lá… devo minha vida a eles, eu os tiraria de qualquer inferno.
Cratos caminhava ao meu lado, os olhos fixos no horizonte. Não importava o que os Resai fossem. Não importava o que os Salfos alegassem. O que importava agora… era lutar para trazer nossos aliados de volta.
Fim do Capítulo 38: Sobre os Trilhos da Névoa.
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