Índice de Capítulo

    Mical e Hiro chegaram à Unidade de Pronto Atendimento. Foi nesse local que o garoto ficou internado por um tempo, recebendo cuidados médicos e se recuperando dos ferimentos causados por Andrei.

    Ainda deveria estar internado, mas graças à magia de cura de Mical, ele já estava novinho em folha e pronto para outra, nas palavras dele próprio.

    Entraram. Havia muita gente. Na recepção, uma fila de pessoas que chegava até a porta.

    Na sala de espera, não havia lugares para todos, e algumas pessoas estavam sentadas no chão, com as costas apoiadas na parede.

    Hiro limpou o suor da testa. O calor beirava o insuportável.

    A única recepcionista disponível parecia desesperada, tentando atender a todos o mais rápido possível, mas claramente não tinha como dar conta. Ela corria rapidamente os dedos pelo teclado e deslizava o mouse sobre a bancada de mármore falso, enquanto preenchia a ficha com os dados do paciente.

    Estressadas, algumas pessoas na fila diziam coisas como “mas que mulher lenta” e “por que está demorando tanto?”

    — Ei, vai demorar pra me atender ainda? Eu tô passando mal aqui nesse calor! — Um homem gordo, de pele muito branca e cabelos ralos saiu da fila e foi até a  recepção, e bateu sobre a bancada.

    — Já vamos atender, senhor! Só aguardar um pouquinho na fila, por favor.

    — Não! Mas que absurdo! Eu que pago seu salário, sua incompetente! Me atende logo ou eu vou quebrar tudo aqui!

    — Calma aí, amigo. — Hiro pôs a mão sobre o ombro do homem. — Todo mundo precisa esperar sua vez. E desrespeitar quem tá trabalhando pra te atender não vai ajudar em nada.

    O homem afastou a mão de Hiro com violência.

    — Tire a mão de mim! Quem você pensa que é pra falar comigo assim, hein, piá? — Ele pegou uma cadeira de rodas que estava próxima e a ergueu no ar. — Eu te dou uma cadeirada!

    — Calma aí, oh, Pablo Marçal da obesidade!

    — Me chamou de qu…arrrg! — Ele gemeu de dor e deixou a cadeira cair no chão.

    Mical tinha agarrado suas bolas e as estava apertando, esmagando-as entre os dedos.

    — Arrg! Ai! Ai! — Ele caiu de joelhos se tremendo todo e suando frio.

    — Pede desculpa pro meu amigo! — ordenou Mical.

    — D-des… desculpa! Arg!

    — Agora pede desculpa pra recepcionista!

    — Me… me des.. me descul… arrg! Droga! Tá doendo! Desculpa, porra! Me desculpa! Foi mal, tá bom? Eu só fiquei nervoso!

    Mical o soltou. Ele quase caiu no chão. A dor das bolas esmagadas irradiava para o abdômen. Era até difícil pra respirar.

    — Agora volte para o seu lugar na fila.

    — Sim, senhora! — O homem se levantou, meio desajeitado, e correu para o final da fila.

    — Isso foi incrível! — disse Hiro.

    — Droga! Eu preciso lavar minhas mãos agora — retrucou Mical, descontente.

    — Hiro! Você.. — chamou a recepcionista.

    — Aline! Querida! Há quanto tempo?!

    — Seu tratamento já acabou? Cadê as talas? Já tirou? Foi bem rápido.

    — Ah, os ferimentos não eram tão graves quanto pareciam…

    — E sua amiga?! Gostei dela! — O olhar da recepcionista estava repleto de admiração para Mical.

    — Aline — disse Hiro —, como estão as coisas por aqui?

    — Ah, cara, cada vez pior! Nunca vi tantos casos de dengue e chikungunya como agora! E até varíola! Pode acreditar? Varíola! Outro dia apareceu um menino com peste bubônica! É só a droga da peste negra! O quê tá acontecendo? Só Deus sabe! Mas as doenças estão aparecendo como nunca antes! Dois médicos morreram depois de pegar covid. Eu tô ficando assustada! Tô até pensando em sair daqui, mas se a gente que é da linha de frente se amedrontar, o que vai ser da população, não é?

    — Não esqueça de se cuidar, Aline. 

    — Vai demorar muito aí? — Alguém na fila gritou, reclamando.

    — Tem alguns pacientes internados que eu gostaria de visitar, Aline — disse Hiro.

    — Hum… sabe como é, né? Agora não tá no horário de visita. Ah, mas quem se importa?! Pode ir! Só cuidado pra não entrar na Sala Vermelha. 

    — Entendido, capitã! Obrigado!

    Depois de entrar por uma porta que ficava ao lado da recepção, Hiro e Mical desceram um corredor. O cheiro de desinfetante era forte e irritava as narinas.

    — Os consultórios ficam por ali — apontou Hiro, quando passavam por um corredor perpendicular. — Tomara que o doutor Ruy esteja de plantão hoje!

    Passaram em frente à sala de raio-x, onde havia algumas cadeiras.

    Numa delas, uma criança estava sentada, chorando, com as mãos sobre uma das pernas, numa tentativa infantil de aliviar a dor.

    Mical foi tomada por compaixão.

    Se aproximou.

    — O que foi, pequeno? O que houve com você?

    — Minha perna! Tá doendo!

    — Deve tá quebrada — disse uma mulher que estava junto dele. — Quebrou jogando bola. Eu já falei pra ele tomar cuidado!

    — Tá doendo, mãe! Tá doendo!

    — Não vai doer mais — respondeu Mical e pôs a mão sobre a cabeça dele.

    Alguns segundos depois o garoto parou de chorar e olhou para Mical, confuso, com a testa enrugada.

    — Parou de doer. O que você fez, tia?

    Mical apenas sorriu.

    — Tome mais cuidado quando for brincar, tá bom?

    Depois ela se aproximou de uma idosa que estava numa cadeira de rodas, com dificuldade para respirar

    — Minha pressão… tá muito alta.

    Mas o poder de cura de Mical também ajudou ela, e a idosa conseguiu se levantar, e não se sentia mais doente.

    Mical curava a todos que encontrava, um após o outro.

    Uma mulher que foi agredida pelo marido teve os ferimentos curados milagrosamente.

    Um homem que tinha caído de moto também viu seus machucados sumirem.

    As pessoas começaram a segui-la por onde ia. Alguns até diziam que ela era uma santa enviada do céu, e a tocavam na esperança de serem abençoados.

    — Por aqui! — falou Hiro, conduzindo a garota pelos corredores do hospital. — Tem alguém que eu quero que veja!

    Mas ao ver toda aquela gente tentando entrar na Sala de Observação, onde ficavam alguns internados, a enfermeira responsável pelo setor protestou.

    — Não podem entrar! Agora nem é horário de visita!

    — Por favor, Tamires — insistiu Hiro —, eu preciso ver ela!

    A enfermeira franziu o cenho. Pensou por um instante.

    — Tudo bem! Mas por que essa multidão tá vindo junto? Isso tá parecendo uma procissão! Eles precisam ficar lá fora!

    Hiro agradeceu, e pediu para as pessoas esperarem do lado de fora.

    Alguns reclamaram, dizendo que também tinham o direito de ver a obra de Deus sendo feita, mas tiveram que aceitar.

    Hiro conduziu Mical até um leito específico, onde havia uma garota. Ela era pequena e magrinha; com idade aparente de 16 ou 17 anos. Pele levemente morena. Seus cabelos tinham sido raspados.

    No chão, próximo de seu leito tinha um livro: O Hobbit.

    — Hiro… onde esteve? — disse ela, com voz fraca, e tossiu.

    — Thais… que bom te ver. Como está se sentindo hoje?

    — Tô me sentindo como alguém que vai morrer em alguns meses.

    Ela riu, como se achasse o comentário engraçado. Hiro permaneceu sério.

    — O que tá achando do livro? É bom, né?

    — É legal. Tem muitas descrições. Eu gosto de ficar imaginando aquelas paisagens lindas… me imagino correndo por elas, lutando com aranhas gigantes ou roubando tesouros de dragões.

    Hiro abriu um sorriso. Seus olhos brilhavam, com uma lágrima que queria cair, mas ele piscou e a manteve presa.

    — Que bom que gostou. Tem alguns momentos bem engraçados, não tem?

    — Tem sim. — Ela olhou para Mical. — Mas quem é ela? Sua namorada?

    — Não, não. — Hiro riu, meio constrangido. — É uma amiga. Thais, a gente pode tentar uma coisa. Podemos te curar.

    Ela riu de desdém.

    — Você tá bêbado? Nada mais pode me curar, Hiro. Nem cirurgia é viável. Meu cérebro já era. Fui sorteada.

    Ela estava lutando para não chorar. Thais tinha decidido há um tempo que não derramaria mais nenhuma lágrima por causa do câncer.

    No fundo soava o som de um monitor cardíaco, e a luz branca piscava, talvez por oscilação de energia, ou talvez porque estava prestes a queimar.

    — Confie em mim. — Hiro segurou a mão dela.

    — Sabe que eu confio.

    O garoto assentiu para Mical, dando-lhe a deixa.

    A garota se aproximou e impôs suas mãos sobre Thais.

    A luz verde a cobriu. Um calor agradável e aconchegante a envolveu. Foi como um abraço.

    Mas não se sentiu curada.

    Mical percebeu que a doença resistia à sua tentativa. Ela insistiu! Se concentrou! Canalizar toda a energia que tinha.

    — Tem alguma coisa errada…

    Sangue começou a escorrer de seu nariz e ouvidos. Perdeu o equilíbrio e quase caiu. Hiro a segurou.

    — O que houve? — perguntou ele.

    — Não sei. Não tá funcionando.

    *

    Os olhos amargos de Hoopoe encontraram os de Renato.

    — Você — murmurou ela —, aquele das muitas afinidades. Das muitas possibilidades, e tão imprevisível que deixou até Phenex inquieto. Agora eu vejo. Finalmente vejo com clareza.

    As íris de seus olhos estavam tão negras que pareciam não natural. Sem pupila e nem esclera.  Apenas uma bola escura, meio disforme e esfumaçada.

    Ela se aproximou do garoto, e pode ter sido apenas ilusão de ótica, ou seu cansaço lhe traindo, mas por um momento, ele pensou ter visto ela toda feita de ossos. Um esqueleto ambulante.

    Foi uma ilusão que durou apenas alguns milésimos de segundos.

    Seus cabelos ficaram molhados e a água começou a pingar da ponta dos fios, mesmo sem nenhuma fonte de água próxima.

    — Phenex falou algo sobre mim?

    — Falou sim. Entretanto, nem ele tinha certeza. Mas agora eu tenho.

    — Certeza de quê?

    — Eu vejo quem você é. 

    — Poucos  sabem — disse Angélica —,  mas Hoopoe é uma vidente poderosa.

    — Eu sou mais do que isso.

    — E o que vê, Hoopoe? — perguntou Renato.

    — Eu vejo o peso da sua escolha. Você sofre… porque quer uma coisa, mas decidiu que não pode ter. Está num dilema. Já fez uma escolha errada antes e se arrependeu. E agora está em situação semelhante. Só fico triste porque Phenex era quem mais queria ver o desfecho, mas não vai ter a chance. A incompetência dos nossos líderes tirou dele.

    — Que desfecho?

    — Você vai derrotar o cavaleiro.

    — Guerra?

    — Não. Outro.

    — Qual?

    — Não sei. Não vejo isso. Isso não aparece pra mim.

    — E o que mais você vê?

    — Vejo suas lágrimas. Você vai vencer, mas vai ser derrotado mesmo assim. Porque derrotar o cavaleiro vai ter um custo grande demais. Vai te fazer sentir ainda mais arrependimento. O custo vai ser enorme!

    — E que custo eu vou precisar pagar?

    — Uma das suas companheiras vai morrer. Não há nenhuma dúvida quanto a isso. Até o poder de cura tem limites e algumas coisas não podem ser revertidas.

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