Capítulo 18: A Véspera do Exame: Entre a Honra e o Prenúncio do Inferno
Eu decidi aceitar.
Respirei fundo.
Naquele instante… todas as dores que estavam espalhadas pelo meu corpo simplesmente sumiram. Ou melhor, elas continuavam lá — hematomas, arranhões, músculos gritando. Mas comparadas ao que estava na minha frente… eram insignificantes.
— Eu aceito. Vai ser uma boa forma de… testar, né?
Minha voz saiu firme, mas por dentro eu tremia. Como não tremer? Estava prestes a lutar com Solara Whitmore.
Ela sorriu. Um sorriso leve, elegante. De quem já sabia o resultado daquela luta.
Colocou uma das mãos para trás, com um gesto quase teatral, e só então reparei.
Ela estava desarmada. Sem espada. Sem nada.
— Vou lutar contra você com apenas uma mão. — disse, com a mesma calma que alguém usa pra dizer que vai dar um passeio. — E se quiser vencer… só precisa me tocar uma vez. Um golpe. Ou me forçar a defender. Só isso.
Só isso.
Ela fez parecer tão fácil. Mas cada palavra carregava um peso.
— E posso saber seu nome, garoto?
Engoli seco. Endireitei a postura.
— Ken Orquídea. É uma honra te enfrentar.
O olhar dela mudou. Não em expressão, mas em intensidade. Era como se aqueles olhos dissessem: “Ah… então é você. O Ken Orquídea.” Como se o nome fosse familiar… mas o rosto ainda fosse um mistério.
Todos se afastaram da quadra, dando espaço para o que estava prestes a acontecer. A tensão no ar era sufocante.
Sayra, que sempre ficou sentada e calada durante meus treinos, estava em pé agora. Atenta. Os olhos fixos em mim e em Solara. Aquilo… me deu arrepios. Se até a Observadora estava interessada, significava que a coisa era realmente séria.
Solara Whitmore.
Terceiro ano. Presidente do Conselho. A mais forte da academia.
Conhecida como “A Quarta Filha do Sol.”
Carregava três estrelas negras no olho esquerdo. Um título que só os alunos mais poderosos recebiam. E ela… era a única com três. O nível dela estava além. Muito além.
Respirei fundo.
“Só tocar nela, né?”
Fácil de dizer. Impossível de fazer.
Mas eu precisava tentar. Precisava usar tudo desde o começo. Sem economias.
Ela assentiu com a cabeça, me autorizando. E eu fui.
Corri. Com tudo. Cada passo ecoava como um trovão dentro do meu peito.
No meio da corrida, abri dois portais, um de cada lado dela. Solara virou a cabeça, intrigada, como se estivesse assistindo uma peça interessante. Um leve brilho de curiosidade no olhar.
Mas quando voltou os olhos pra frente… eu já não estava mais lá.
Duas espadas de madeira saltaram dos portais laterais, tentando cercá-la por ambos os flancos. Era só uma distração.
Porque eu apareci acima dela, saindo de um terceiro portal no alto, o punho fechado mirando direto sua cabeça.
Tudo ou nada.
Mas Solara… não sorria mais.
Seu rosto estava sério. Imóvel. E, no momento exato em que meu punho descia, ela ergueu a única mão livre e segurou meu braço com uma facilidade assustadora.
Foi como se o mundo parasse por um segundo.
E então…
— BAM!
Ela me jogou como uma boneca de pano.
O impacto do ar me cortando foi tão forte que tudo ficou embaçado por um instante. A única coisa que pensei foi:
“Que força…”
Antes de atingir o chão, ativei meu teleporte. Escapei por pouco de uma queda feia… mas só aquele salto custou caro. Meu corpo já gritava.
Exausto.
Solara olhou para a própria mão como se analisasse uma flor rara. Sorriu.
— Interessante.
Ela ergueu o olhar, e pela primeira vez, vi um leve traço de empolgação no rosto dela.
— Vamos quebrar uma regra, então. — disse. — Agora, quero que me acerte um golpe direto. Eu te subestimei. Por ser do primeiro ano, achei que seria básico. Mas você é… habilidoso. Aceita o desafio real?
Meu corpo tremia. Mas dessa vez… não era de medo.
Era adrenalina.
Eu sorri. Coisa rara.
— Mas é claro.
No exato momento em que decidi avançar, determinado a tentar mais uma vez, Sayra apareceu. Do nada. Como uma brisa suave, cortando o espaço entre mim e Solara.
Tudo que meus olhos conseguiram captar foi o reflexo dos cabelos cianos dela balançando sob a luz da quadra.
— Vamos parar por aqui. — disse com a mesma serenidade brincalhona de sempre, como se estivesse apenas comentando sobre o tempo. — O vice-diretor enviou uma ordem. Nenhuma luta a partir de agora. Vocês precisam descansar, o exame é amanhã.
“Droga.”
Foi a única coisa que pensei. A palavra ecoou dentro da minha cabeça como um grito abafado.
Mas no fundo… talvez fosse melhor assim.
Meu corpo ainda sentia o impacto do treino com as Três Glaciais. A última troca de golpes com Solara tinha me drenado mais do que eu queria admitir. E mesmo que eu tivesse tentado bancar o durão, encarar a top 1 da academia naquele estado seria loucura. Loucura de verdade.
Então era isso. Fim do treino.
Me arrastei de volta pros dormitórios, suado, cansado e… meio frustrado. Quando entrei no prédio, percebi uma coisa: eu nem tinha falado com o Shin, com a Holi e muito menos com a… Mina. Só de pensar nela já sentia o estômago dar voltas.
Mas enfim… não podia me distrair agora. Amanhã era o exame.
O problema é que eu tinha esquecido de um pequeno detalhe.
Quando entrei no quarto, dei de cara com o Levi, que já estava me esperando — sentado na cama como se fosse um nobre à espera de um servo.
— Garoto Orquídea… como você sabe… — começou ele, numa voz toda empolada, fazendo um gesto teatral com as mãos. Quase não parecia o mesmo Levi que me ensinou na semana de treino.
Eu fechei os olhos e suspirei. Lá vem.
— O exame também tem a parte teórica. Ou você esqueceu?
Putz.
Tinha esquecido.
Mas tentei manter a pose.
— …Eu sou inteligente. Vai dar tudo certo. — murmurei, com um sorrisinho cínico.
Levi revirou os olhos, claramente nada convencido.
O exame de subida de Rank era dividido em duas provas — uma escrita, uma de combate. Metade teoria. Metade prática.
A primeira parte era a prova teórica, das 8h às 11h da manhã. Assuntos que iam de política até estratégias militares, passando por história dos códigos genéticos e até… economia. Sim, economia. Aparentemente, saber lutar não era suficiente — você também tinha que saber administrar uma cidade.
Depois, às 12h, começava a parte prática.
E aí o bicho pegava.
Seriam quatro arenas, espalhadas pelo complexo da academia. Todos os alunos de todos os anos participariam — primeiro, segundo, terceiro e quarto. Com e sem código genético. Era um torneio de lutas rápidas. Caótico. Selvagem.
Grupos misturados. Idades misturadas. Forças diferentes. Tudo num caldeirão de pancadaria.
Essa era a chamada Primeira Prova do Ano. Um evento que colocava a academia inteira em colisão direta. Só depois disso é que as outras provas se separavam por ano.
As lutas durariam cinco minutos cada. Lutas simultâneas, quase como um campo de guerra. E, apesar de haver algumas vantagens para os mais novos ou para aqueles sem código, a verdade é que…
Os monstros de anos superiores estariam lá.
E cada luta seria observada por um “observador de luta”.
O sistema de pontos era simples:
50 pontos pra teoria. 50 pra prática.
Ou seja: não bastava ser forte. Tinha que ser inteligente também.
E ali, deitado na cama, com o uniforme jogado na cadeira e os músculos reclamando de cada movimento, tudo o que eu conseguia pensar era:
“Amanhã… tudo começa.”
Mas o que eu não sabia, é que amanhã, o que me esperava não era só uma simples prova, era que meu mundo iria mudar.
Eu iria ao inferno.
E uma vez que eu entrasse nele…
…não haveria mais volta.
Camada 10 – Muspelheim
O céu ali era um manto sufocante de fuligem e desespero. Não havia sol, não havia azul. Apenas uma massa escura e espessa de fumaça, poeira e decadência pairando sobre um mar de favelas retorcidas, que mais pareciam feridas abertas na pele do mundo.
Crianças magras, sujas, tossindo sem parar, perambulavam pelas vielas com os olhos vazios. Seus pais, se é que estavam por perto, pareciam zumbis — ossos cobertos de pele seca e desesperança. Cada esquina exalava um cheiro podre de mofo, sangue e abandono.
Duas figuras atravessavam aquela miséria. Soldados, trajando uniformes brancos, agora sujos pela poeira eterna da camada. No peito, a insígnia desgastada de três lanças entrelaçadas ainda cintilava fracamente, um símbolo do controle superior mesmo nos cantos esquecidos do mundo.
— Viver aqui, no meio desse Rank de 100 milhões… — disse um deles, franzindo o nariz com repulsa. — É muita podridão. E esse cheiro… Céus, como fede aqui.
A parceira, de cabelos curtos e expressão fria, não perdeu o passo. Seus olhos passavam pelas ruínas como se já fizessem parte dela.
— Não fala alto demais. — respondeu, sem emoção. — Vamos até o portão principal. Sem chamar atenção.
Seguiram em silêncio por ruas rachadas, entre barracos feitos de metal retorcido e concreto morto. O Portão Principal era seu destino — a passagem direta para as Camadas Negativas. Havia três portões no total, cada um levando a pontos diferentes da Camada -1, mas o principal era o mais profundo… e o mais temido.
Depois de uma longa caminhada entre ruínas e sons de tosse crônica ecoando pelos becos, chegaram. Um enorme arco de metal enferrujado surgia sob uma iluminação alaranjada, fraca, como se o próprio lugar estivesse tentando se esconder.
A soldada, com o cigarro preso nos lábios, se aproximou de uma entrada lateral — uma porta pequena, quase invisível no canto da estrutura. Encostou os dedos em um painel metálico e a fechadura se abriu com um click suave e estranho. A tecnologia ali era diferente, antiga demais ou avançada demais — uma anomalia comparada às camadas superiores.
O soldado franziu o cenho ao ver o cigarro aceso.
— Você podia parar de fumar, né?
Ela nem virou o rosto.
— Não fode.
Entraram no corredor estreito e metálico. O som das botas ecoava abafado enquanto desciam, degrau por degrau, cada vez mais fundo — rumo à fronteira entre a camada 10 e a -1.
Assim que saíram no lado oposto, o ambiente era ainda mais silencioso. Cinzento. Morto.
O soldado abriu um doce e começou a mastigar, distraído.
— Ué… — murmurou entre uma mordida e outra. — Era pra ter uma equipe inteira aqui, né? Cadê todo mundo? Será que foram caçar?
Quando se virou, percebeu.
A parceira dele não estava mais lá.
— Nia? — chamou, olhando ao redor. — Onde cê tá, Nia?
A resposta veio na forma de uma voz suave… e estranhamente animada.
— Hihihi… Que excitante ver ele procurando aquela mulher… Isso me deixa tão animada.
Foi tudo que ele ouviu antes da escuridão.
Em um piscar de olhos, algo cortou sua cabeça. Rápido demais. Frio demais. Ele nem teve tempo de reagir. O corpo caiu no chão com um baque seco. A cabeça, ainda com os olhos arregalados de confusão, rolou até bater contra a parede metálica.
A última coisa que ele viu foi a silhueta de uma garotinha pequena, sorrindo como se estivesse num parque de diversões. Chifres um pouco longos igual ganchos na cabeça. A única parte do corpo que se destacava.
Nada de rosto. Nada de cor. Apenas sombras.
Atrás dela, surgiu outra silhueta. Um homem alto, ombros largos, andar arrastado. A voz dele era cansada, como se cada palavra fosse um fardo.
— Mas que saco… — ele soltou um longo suspiro. — Vamos logo com isso.
A garota deu um pulinho de empolgação, as sombras em torno dela tremeluzindo como fogo brincando com vento.
E então, sumiram na escuridão do portão, indo em direção à camada 10.
O ar ao redor voltou a ficar imóvel, como se nada tivesse acontecido.
Mas algo havia mudado.
Algo terrível estava vindo à superfície.
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