Índice de Capítulo

    A névoa não se dissipava, apenas se moldava à fúria dos tambores de guerra que rugiam como trovões distantes. Eu mantinha os olhos atentos, varrendo cada contorno da paisagem em busca de qualquer sinal deles.

    — Hernán, Ashley… Onde é que vocês estão? — a preocupação crescia em meu peito.

    Cratos se virou para os outros aventureiros e ergueu um dos punhos sinalizando para que não avançassem.

    — Mantenham-se atentos, mas não ataquem ninguém — ordenou Cratos, com a voz mais firme do que eu havia escutado em dias.

    — Mas e se eles precisarem de nós? — questionou um dos jovens, já com a lâmina em mãos.

    Cratos virou-se lentamente, seu olhar escuro como a tempestade prestes a cair.

    — Eu aconselho que fiquem fora disso até entendermos o que, de fato, está acontecendo.

    Eles hesitaram, trocando olhares entre si, mas abaixaram as armas. Foi então que algo surgindo no acampamento Resai cortou minha atenção.

    — Cratos olhe! — gritei, sentindo meu peito apertar como se o ar tivesse sumido por um instante.

    Cratos virou-se ao meu lado e juntos vimos as duas figuras surgindo à frente do acampamento. Ashley e Hernán. Ombro a ombro, espadas empunhadas, firmes como muralhas. E por um segundo, me perguntei se ainda estavam do nosso lado.

    — Será que…? — murmurei, engolindo o resto da frase.

    Cratos manteve os olhos fixos.

    — Só há uma forma de descobrir.

    ***

    A névoa subia lenta, como se o próprio ar hesitasse em mostrar o que estava por vir. Do alto da colina, manchas rubras começaram a surgir, rompendo o branco com uma fúria silenciosa. As bandeiras dos Salfos. Inconfundíveis. Como feridas abertas no horizonte, faróis em meio a névoa.

    — Eles vieram — murmurei, sentindo o frio subir pela espinha, mesmo com o calor da manhã começando a vencer a névoa.

    Hernán se aproximou, seu olhar preso no topo da elevação, onde a multidão de pequenos soldados começava a se alinhar em formação. Eles pareciam incontáveis.

    — Estão marchando como se fosse mais uma caçada — ele disse. — Mas, os Resai não estão indefesos como eles devem imaginar.

    O som de passos firmes atrás de nós chamou minha atenção. O ancião Resai surgiu, as vestes ainda marcadas por gotas secas de sangue dos feridos que havia ajudado. Seu colar vibrava levemente, como se já pressentisse o que vinha a seguir.

    — Então esses malditos criaram coragem para vir até nós — disse ele, a voz embargada por anos de dor contida. — Depois de tanto tempo nos ferindo… nos cansando… Mas dessa vez, eles vão ter uma surpresa.

    Olhei para ele, depois para os Resai que se reuniam atrás dele, ainda marcados pelas batalhas anteriores, mas com um novo brilho nos olhos. Um brilho que nascia de algo que os Salfos nunca compreenderiam: esperança.

    Com a mão firme sobre o cabo da espada, tive o pressentimento que não havia mais espaço para dúvidas. Se aquelas bandeiras eram faróis, era porque anunciavam uma tempestade, e nós estávamos prontos para enfrentá-la.

    O ancião se virou para seu povo com uma firmeza que parecia maior do que seu corpo encurvado podia suportar. Seus olhos percorriam cada rosto; ferido, exausto, mas determinado.

    — Resai… — sua voz rasgou o silêncio. — Eu sei… eu vejo em vocês o cansaço e as marcas das batalhas passadas. Sei que muitos ainda sentem dor. Mas não podemos… não vamos recuar. Que esta seja a última vez que empunhamos armas. Que hoje… seja a última luta dos Resai!

    Por um instante, um silêncio espesso se impôs. Então, um punho se ergueu… depois outro. Logo, os Resai batiam os punhos contra o próprio peito, um som seco e ritmado, que me arrepiou até a alma.

    — A última batalha! — gritavam com força renovada. — A última batalha!

    O ancião ergueu os braços, sua voz se elevando como um trovão.

    — Deixem que a primeira gota de sangue derramada nessa guerra… seque hoje! Por nossos filhos e por nosso povo!

    Um rugido coletivo se ergueu, selvagem e poderoso. Nunca imaginei que vozes tão pequenas pudessem carregar tanto peso.

    Hernán deu um passo à frente, ainda com a espada embainhada.

    — Esperem! — disse ele, voltando-se ao ancião. — Se eu puder convencê-los… se meus amigos puderem entender o que realmente está acontecendo, talvez essa batalha fique a nosso favor.

    O ancião franziu a testa, descrente.

    — Aqueles que ainda caminham ao lado dos Salfos… já devem estar cegos por suas mentiras. Eles os chamam de heróis, alimentam seus egos com promessas vazias… oferecem a saída sem ao menos saberem o que é uma saída. É assim que eles agem… sempre foi.

    Aquelas palavras… me pegaram de surpresa. Porque eram verdade. Os Salfos realmente nos prometeram a saída como se soubessem exatamente o que queríamos desde o início. Nos acolheram e veneraram com sorrisos e títulos. Como se estivéssem nos guiando no caminho certo.

    — Como… como o senhor sabe disso? — perguntei, sentindo a dúvida e o frio escorrerem pela espinha.

    O ancião baixou o olhar por um instante, como quem revisita lembranças amargas.

    — Vocês não são os primeiros viajantes a aparecer neste campo maldito — disse ele, por fim. — Muitos vieram antes. Homens e mulheres de fora, perdidos como vocês. Os Salfos os acolheram. Quando começaram a questionar… a duvidar… já era tarde demais. Alguns foram mortos enquanto dormiam… os envenenaram… jogaram uns contra os outros, como peças num jogo.

    Olhei para Hernán, que mantinha a expressão firme, mas o aperto em sua mandíbula denunciava a revolta.

    — Eu ainda vou tentar — disse ele ao ancião. — Eles merecem saber da verdade… mesmo que tenham sido enganados.

    O ancião assentiu, com pesar nos olhos.

    — Você nos ajudou, e por isso tem o direito de tentar. Mas não abaixe sua guarda, garoto. Quando a mentira se vê ameaçada… ela morde.

    Hernán virou-se para mim, sua expressão mais séria do que nunca.

    — Fique atenta, Ashley. Mantenha sua espada afiada… e os olhos mais ainda.

    Assenti, apertando o punho no cabo da espada. O céu sobre nós começava a se abrir em tons de ferrugem. A guerra estava à beira do despertar. E… eu ainda não fazia ideia de quem realmente estaríamos enfrentando.

    ***

    Eu e Cratos fizemos menção de avançar, mas não demos mais que dois passos. O ancião dos Salfos se colocou em nosso caminho como uma mureta viva, seus olhos flamejavam com indignação disfarçada de preocupação.

    — Saia da frente — Cratos disse, firme. — Eu verei com meus próprios olhos se esse tal “controle mental” é real.

    O ancião suspirou, fingindo resignação.

    — Eu não posso impedir os heróis de fazerem o que bem entenderem… Mas cuidado. — Ele apontou na direção de Ashley e Hernán. — Veja por si mesmo. Suas roupas estão manchadas de sangue Resai. Lutaram ferozmente para escapar do controle. E veja… suas mãos estão cobertas com a substância branca que eles usam para escravizar mentes.

    Engoli seco, olhando na direção que ele indicava. Havia, de fato, manchas em suas roupas. E algo esbranquiçado em suas mãos. Mas ainda assim…

    — Deve haver uma explicação… — murmurei.

    O ancião me encarou com um pesar calculado.

    — Então responda: por que ajudariam aqueles selvagens? E por que surgem com as armas em mãos, nos ameaçando?

    Fiquei em silêncio. Por mais que meu instinto gritasse que havia algo errado naquela história dos Salfos, eu não conseguia refutar completamente o que via.

    Cratos avançou um passo à frente, os punhos cerrados.

    — Eu vou dar uma chance. — Sua voz não admitia objeções.

    O ancião se afastou a contragosto, com o maxilar travado.

    Atravessamos o campo com os olhos varrendo os arredores. Cada passo era tenso. Esperei por flechas de direções escondidas, por armadilhas… mas nada aconteceu. Apenas o vento da manhã cortando o campo em silêncio. Quando nos aproximamos o suficiente, Cratos ergueu a voz.

    — Hernán? É você?

    — Claro que sou eu, que pergunta é essa? — ele respondeu, franzindo a testa. — Não temos tempo para isso, Cratos. Precisam acreditar em nós. Os Salfos não são quem pensávamos.

    Cratos cruzou os braços.

    — Os baixotes disseram que vocês estão sob o controle mental dos Resai. Que tentariam nos fazer mudar de lado… como aliados deles.

    A expressão de Hernán e Ashley congelou.

    — Isso é mentira! — Ashley avançou, indignada. — Vocês não podem estar acreditando neles tão fácil assim.

    Cratos ergue uma sobrancelha.

    — Então por que suas roupas estão manchadas de sangue?

    — Passamos a noite ajudando os Resai feridos. — Hernán respondeu. — Isso é sangue de ferimentos, não de batalha.

    — E essa sujeira branca nas mãos?

    Ashley olhou as próprias mãos, como se só agora notasse o detalhe.

    — Isso… — ela esfregou a palma na roupa. — É da fruta que comemos. Uma bem doce, coberta de pó por fora. Nada além disso.

    Meus pensamentos giravam. O ancião havia descrito exatamente o que agora víamos… mas talvez não pelas razões que ele alegava. As peças se encaixavam demais, e ainda assim… algo não batia.

    — Como vocês foram parar aqui? — perguntei, sem conseguir conter a urgência na voz.

    Hernán virou-se para mim, os olhos carregados de convicção.

    — Durante aquele momento, quando os Resai invadiram, um deles tentou se comunicar… e foi morto antes de conseguir dizer qualquer coisa. Aquilo me incomodou. Tudo nos Salfos parecia bonito demais, organizado demais… como se soubessem exatamente como lidar conosco.

    Ele respirou fundo antes de continuar.

    — Acordei Ashley. Ela era visivelmente a única que podia entender o que eu sentia. Usamos vinhas para escalar o muro e viemos buscar respostas. O que encontramos… foi isso. Feridos, sobreviventes. Famílias. E um povo que teve suas histórias silenciadas.

    Lembrei do grupo de Salfos reunidos naquela manhã ao redor das vinhas secas… Sim, aquilo fazia sentido.

    — Eles não são os monstros, Sophia. — disse Hernán, firme. — Os verdadeiros vilões são aqueles que se pintaram como santos.

    Ele ainda abriria a boca para continuar quando um grito cortou o ar; seco e curto, silenciado no instante seguinte.

    Virei a cabeça e vi… os dois aventureiros que haviam ficado para trás sendo abatidos, sem qualquer chance de defesa. As lanças dos Salfos reluziam com sangue ainda fresco.

    Ataquem! — gritou o ancião dos Salfos, agora à frente de seu exército. — Destruam tudo! Os humanos não são mais úteis. Se interferirem, acabem com eles também!

    Eu senti o chão tremer sob meus pés. Cratos já empunhava o machado. Ashley e Hernán também.

    Eu só conseguia pensar numa coisa… fomos peças desde o início. E agora… o jogo havia começado de verdade.

    Fim do Capítulo 39: Passos Curtos.

    Notas do Autor: Estamos chegando ao ápice desse andar e logo mais ao ápice do arco da Torre do Abismo, esse tempo frio acabou ferrando com a minha saúde, mas assim que melhorar 100% espero conseguir acelerar o ritmo para a conclusão desse arco, agradeço aos leitores por manterem o apoio mesmo que indiretamente. vlw e até o próximo capítulo ou a próxima nota…

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