Capítulo 49 — Confronto Final (Parte Final)
Eram vinte e três e cinquenta da noite. Huan Shen sabia disso, pois era muito bom em determinar a hora baseado na posição dos astros. A mana em seu corpo já tinha atingido um nível crítico devido ao decaimento constante do seu corpo. Sua visão começava a embaçar e uma fraqueza crescente tomava conta dos seus músculos. Seus punhos não tinham a mesma força, seus saltos não tinham o mesmo alcance e algumas vezes sua mente parecia parar de funcionar por alguns momentos.
Aquilo era a decadência em estado final. Sua morte estava a apenas alguns minutos de se tornar uma realidade.
“Esse filho da puta é pesado!”
Ao sentir que seus braços estavam prestes a ceder, o emissário empurrou o druida para o mais longe possível, mas o mesmo simplesmente firmou os pés no solo. Ele olhou admirado para o novo corpo, vendo o quão resistente e escultural parecia. Sua pele estava completamente pálida como o mármore, as veias douradas subiam pelos seus braços e pequenas fagulhas caíam dos seus dedos.
— Meu trabalho é uma coisa maravilhosa! Eu realmente atingi a perfeição com os sulfurizados — disse Heferus, impressionado com o próprio trabalho.
Huan Shen se apoiou nos próprios joelhos, tentando recuperar um pouco do seu fôlego. Mesmo assim, não sentia sua pele absorver nem um pouco da mana presente na natureza. Aquele restante era tudo o que teria.
— Você está tão contente com o que seu corpo é capaz de fazer agora, espera até ele começar a rachar e o seu dantian começar a falhar? Você vai ter uma morte lenta e apática como a minha!
Heferus imediatamente travou seu olhar no emissário, enquanto refletia em suas palavras. Então, seu corpo relaxou um pouco, como se estivesse tentando sondar o seu oponente.
— Você é uma figura bastante peculiar. Um sulfurizado, mas que simplesmente não usa chamas como os outros. Eu até aceito variações, mas percebo que não possui nenhum senso de lealdade para a sua mestra. Ela é tão incompetente ao ponto de criar um servo que tem consciência própria?
— Aí que você se engana, druida — respondeu Huan Shen, estalando os dedos. — Eu não voltei através da magia da bruxa, voltei simplesmente para recuperar o que você e seus servos tomaram de mim! A minha vida e o meu coração! Você achou que tinha o controle pleno de tudo que acontece nesse lugar abandonado pelos deuses? Pensou errado, pau no cu. Agora me diz: onde está a porra do meu coração?
A ideia de um sulfurizado formado pela própria determinação e a reunião da magia divina presente naquele lugar deixou Heferus bastante intrigado. Quantos segredos a Selva de Concreto escondeu através dos anos? Quantos anos seriam necessários para desvendar todos?
— Então você atrapalhou meus planos, matou minhas criaturas e me causou essa enorme dor de cabeça apenas porque queria seu coração de volta? Você poderia apenas ter pedido de volta, sabia?
“Mais um dia desse puto achando que tem graça.”
O emissário ergueu uma sobrancelha.
— Nem, você tem razão. Eu não entregaria seu coração de volta. Mas advinha só! Seria isso aqui que você está procurando?
Suas mãos alcançaram um pequeno saco de couro em sua cintura. A parte inferior dele estava completamente úmida e com um tom avermelhado desconcertante. Quando suas mãos adentraram no interior da bolsa, Huan Shen sentiu um pequeno impulso de avançar contra o mesmo, mas sabia que com um movimento o druida poderia colocar tudo a perder.
— Desgraçado… — murmurou Huan Shen.
Ao retirar sua mão do saco, um coração humano parcialmente murcho residia na sua palma. Alguns fios de sangue escorriam entre os seus dedos.
— O seu tempo está acabando e você precisa disso urgentemente, certo? Que tal correr para pegá-lo? Seus minutos estão acabando.
“Eu não vou deixar você acabar com o resto da minha vida!”
Huan Shen tinha mana suficiente para conjurar apenas duas magias. Como sua conjuração era rápida, ele poderia acabar cometendo o erro de invocar um construto de gelo fraco e ficar completamente indefeso. Se havia algo que ele deveria confiar plenamente era na sua proeza física.
Porém seu plano não era compartilhado pelo druida, que tinha sua reserva de mana em uma quantidade bem maior. Com um simples gesto da sua mão esquerda, quatro raízes surgiram nas proximidades do emissário, alvejando os seus membros. Huan Shen imediatamente saltou para trás, impedindo que suas pernas fossem presas. Uma das raízes conseguiu alcançar seu braço esquerdo, reduzindo sua mobilidade.
“Merda!”
Usando ambos os braços, o emissário conseguiu partir a raiz, mas isso o atrasou a ponto de outras raízes surgirem e o prenderem em ambas as pernas. Quando ele pensou em retirá-las, Heferus fez outro gesto de mão.
— Olha a pedra! — disse ele, em escárnio.
Huan Shen teve apenas o tempo para erguer os braços, antes de uma rocha maciça o atingir em cheio e empurrá-lo para trás. Embora o deixasse fora do alcance das raízes, foi o bastante para deixar seus braços ainda mais danificados. Ele não teria força para competir em combate direto.
— Esse corpo é incrível mesmo! Eu consigo conjurar magias de baixo custo que normalmente levo uns trinta segundos para manifestar em apenas um simples gesto. Sim! Eu vou ser o maior druida que já pisou nesses solos!
Huan Shen se levantou, apenas para ser atingido por outra pedra enorme e ser derrubado no chão mais uma vez. Ao erguer sua cabeça, viu que o formato da sua pele denunciava as cinco fraturas na sua caixa torácica.
— Ainda não acabou, garoto! — bradou Heferus.
Gesticulando seus braços mais uma vez, uma outra vinha surgiu do chão e o puxou para o alto, erguendo-o como se estivesse preso em um laço. Outra vinha surgiu e prendeu seu braço direito, deixando-o completamente estirado no ar.
“Não posso ficar guardando isso para sempre!”
Ele estendeu seu antebraço e a ponta do seu pé, formando uma lâmina congelada em suas extremidades. Então, contraiu o próprio corpo, fazendo a lâmina passar pelas vinhas e cortá-las, derrubando-o no solo.
— Inteligente! Mas não é o bastante — respondeu Heferus.
Quando seus dedos começaram a gesticular, Huan Shen retirou a lâmina em seu pé e fez um arremesso certeiro contra o druida. Antes que o mesmo pudesse pensar em se defender, mesmo com seus novos reflexos afiados, a lâmina atravessou seus dedos como se fossem feitos de papel, arrancando seu indicador, anelar e dedo do meio.
— O-o quê? — balbuciou Heferus, olhando para seus dedos decepados.
Mesmo que não sentisse dor, era a primeira vez que perdia um membro. O sangue negro escorrendo pelo seu braço o deixou em choque por alguns segundos, estes que o emissário não deixou de aproveitar.
Quando Heferus se deu conta que ainda estava no meio do combate, Huan Shen já tinha diminuído a distância entre os dois consideravelmente. O emissário saltava no ar, com seu joelho acelerando em sua direção como uma marreta. O druida cruzou os braços, mas o impacto foi brutal. Foi possível escutar os ossos estalando como um enorme eco pela Selva de Concreto. A distância entre ambos naquele momento era inexistente.
— Miserável! — bradou Heferus.
O mesmo tentou revidar com um soco, tentando aproveitar o máximo do seu novo corpo aprimorado. Era um direto rápido e poderoso, capaz de partir uma árvore resiliente ao meio. Porém, Huan Shen já tinha visto centenas de soco naquele mesmo formato. Seu braço esquerdo escorou no do seu oponente, desviando sua trajetória e o deixando completamente aberto para um contra-ataque.
“Agora é a minha vez!”
Seu cotovelo esquerdo voou direto no rosto do druida, arrancando uns três dentes no impacto. Antes que o mesmo pudesse reagir, as pernas do emissário tomaram impulso mais uma vez e o arremessaram levemente para o alto, na altura perfeita para Huan Shen erguer seu cotovelo direito na altura exata apenas para descê-lo como um machado feroz no topo do crânio do druida.
“Essa vai mandá-lo para as portas da morte.”
No instante que o cotovelo acertou o topo da cabeça de Heferus, toda a estrutura vertebral do seu corpo entrou em colapso, junto com as múltiplas fraturas que seu crânio sofreu. Em um corpo humano convencional, aquilo já seria suficiente para matá-lo imediatamente, mas Heferus ainda se manteve de pé, mesmo que atordoado.
Huan Shen fechou seu punho, prestes a dar um soco meteórico e arrancar a cabeça do druida. Aquilo seria o ponto final daquele dia miserável. Seu braço recuou, tomando o máximo de impulso que era possível. Heferus ainda estava reequilibrando sua mente, nem veria a forma como iria acabar morrendo.
— Quero que você se lembre, em seus últimos momentos, do homem que derrotou você!”
Seu punho voou como um cometa em direção a sua cabeça, prestes a separá-la do seu corpo. Era a hora de acabar tudo aquilo de uma vez por toda.
Porém, já era meia-noite.
Um torpor atingiu todo o corpo do emissário. Sua mente oscilou, fazendo seu corpo bambear. Ele deu uns passos para trás, tentando firmar seus pés no solo.
— Não! Isso não pode acontecer agora! Eu só preciso de mais alguns minutos.
Aquilo foi tempo o bastante para Heferus recuperar a consciência. Ao ver Huan Shen em uma posição tão fragilizada, ergueu ambos os braços. Do solo, dez raízes surgiram e se agarraram em cada um dos seus membros, derrubando-o no chão e prendendo completamente. Huan Shen tentou forçá-las, mas não tinha a mesma força que antes. Alguns de seus poros estavam eclodindo, vazando o sangue negro em seu corpo para o solo. Seus olhos, nariz, ouvido e bota também expeliam sangue continuamente.
Seu corpo tinha atingido a decadência máxima.
“Merda, merda, merda, merda, merdaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Eu estava tão perto!”
Heferus se aproximou de um Huan Shen completamente imobilizado e tossindo sangue negro para todo lado. Um simples vacilo e quase morreu pela segunda vez em menos de quinze minutos. Aqueles dois deveriam ser eliminados o mais rápido possível, antes que atrapalhasse seus planos mais uma vez. A bruxa estava recuada no canto, com dor o bastante para não ser útil. E agora, o sulfurizado rebelde estava contido e a alguns segundos da sua morte.
— Você é um incômodo. Um incômodo mesmo! Eu pensei em arrancar sua cabeça, mas ela parece que já vai explodir sozinha, então vou só aguardar.
Enquanto os dedos do druida já tinham sido regenerados e seu pescoço tinha voltado ao lugar original, o corpo do emissário tremia involuntariamente, enquanto o mesmo se afogava no próprio sangue. Sua mente começava a apagar gradualmente, o pó do enxofre em sua pele se soltava cada vez mais e se juntava a ventania do ambiente.
Heferus retirou do seu saco de couro o coração de Huan Shen, exibindo-o como um troféu de conquista. Aquilo fez o emissário ficar agitado, tentando inútilmente romper as raízes que há pouco tempo não apresentavam muitas dificuldades para o mesmo.
— Tudo isso foi por essa coisinha aqui. E agora, você se encontra com a falha mais uma vez. Isso era apenas para ser um souvenir na minha coleção de inimigos derrotados, mas quer saber? Vou fazer algo pior!
Sua mão direita se moveu lentamente até o seu rosto, onde seus dentes cravaram no músculo ensanguentado que estava portando. Como se fosse uma iguaria, Heferus arrancou os pedaços do coração do emissário com os dentes, enquanto engolia suas porções. Em alguns segundos, tudo que restou do órgão do emissário foi reduzido a marcas de sangue em seus lábios.
“Que…caralhos…”
— Como é saber que eu destruí a única forma que você tinha para voltar a vida?
Aquilo tinha um gosto horrível para Heferus. Embora já tenha consumido órgãos humanos na sua vida ao longo do tempo, aquele em específico tinha um gosto particularmente ruim. Era difícil dizer a causa, se era o tempo que passou guardado, ou se seu corpo novo tinha alterado suas papilas gustativas ou até mesmo se tinha esquecido como era o sabor.
Huan Shen cuspiu o sangue que estava preso em sua garganta, mantendo sua consciência por um fio.
— Idiota…você…literalmente se condenou fazendo isso…
Heferus soltou um pequeno riso.
— Ameaças estando na porta da morte certa. Você tem culhões, mas não é muito inteligente.
— Não sou… idiota a ponto de consumir qualquer coisa sem saber da origem… — respondeu Huan Shen, com bastante dificuldade. — Isso é Sangue Herético e você acabou de engoli-lo!
Como se fosse uma linha do destino, Heferus sentiu um desconforto imenso dentro do seu corpo. Seu sangue parecia estar fervendo e seu dantian estava ficando instável. Aquele não era apenas o pior dos cenários para Heferus, era o mais inacreditável de acontecer. Sangue Herético era um sangue amaldiçoado, que servia para neutralizar a mana no corpo de uma criatura.
— M-maldito! Como um humano tem Sangue Herético dentro do próprio corpo? — questionou Heferus, enquanto tentava expelir o que tinha consumido para fora. — Apenas criaturas nefastas tem essa coisa em seu corpo!
O emissário deu um sorriso ensanguentado ao sentir que os cipós que o prendiam tinham enfraquecido.
— Sabe quando aquela voz fraquinha fala ao lado da sua cabeça “isso pode dar errado”? Pois é, escute ela na sua próxima vida!
Colocando o braço para fora dos cipós, o emissário usou sua última reserva de mana para conjurar sua última magia. Suas mãos encostaram no chão, canalizando até o último fio de mana para realizar a sua última criação. Irrompendo do solo, uma estaca de gelo surgiu com uma ponta tão afiada quanto uma lança.
Em condições normais, Heferus conseguiria ter se desviado. Mas o efeito do Sangue Herético em seu corpo estava tão forte que seu corpo não obedecia aos seus comandos. Quando se deu conta, à estaca já estava perto demais para se esquivar. Ela penetrou o seu abdômen violentamente, saindo do outro lado e rompendo sua coluna vertebral em duas.
Sangue negro começou a sair pela boca de Heferus, que estava pendurado no ar. A tolerância à dor não existia mais, ou seja, suas terminações nervosas estavam explodindo com tanto estresse em seu corpo. Suas reservas de magia estavam vazias, tornando seu destino incerto.
— M-miserável! — esbravejou Heferus! — Sempre com um truque nefasto! Mas não adianta…eu vou sair daqui e sobreviver! Você só assinou sua sentença de morte…
Com o resto do corpo completamente paralisado, o emissário esboçou seu último sorriso, apontando com o seu nariz para algo atrás do druida. Sua visão escurecia cada vez mais a cada segundo, dando tempo apenas para ver Heferus inclinando seu pescoço apenas para ser decapitado pela bruxa que se aproximou furtivamente do seu corpo indefeso.
“Brutal! Sobrou nada para o druida, apenas uma morte fria e miserável.”
A cabeça do homem que um dia representou a grande ameaça a civilização imperial estava rolando e quicando pelo chão, até parar finalmente estando rente a cabeça do homem que o condenou à morte. O emissário olhou mais uma vez para aquela expressão horrorizada e deformada de Heferus, deu um último sorriso e fechou os olhos.
Meia-noite e cinco.
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