Teseu acordou em um pulo. A carroça estava balançando. Virou-se rapidamente, quase saltando, tropeçou em alguns panos jogados pelo chão da carroça e se virou procurando pela fresta de luz do luar que invadia o ambiente denunciando a saída.

    Não ouvia nada além do rangido das rodas da carroça.

    Agachou-se tateando no piso de maneira silenciosa, até que sentiu algo que parecia um graveto pressionar um dos dedos de sua mão. Apanhou aquilo, sem sequer saber o que era, e se esgueirou até a saída da carroça. Não havia visto Hermes naquele breu, e não tinha certeza se era ele quem conduzia a carroça.

    Afinal, por que, no meio da madrugada, ele resolvera partir?

    Passou o braço pela fresta do tecido que cobria a carroça e lentamente abriu espaço para poder enxergar. Sua mão esquerda tremia segurando o objeto desconhecido que ele havia encontrado dentro da carroça.

    A visão da frente da carroça o fez arregalar os olhos. Não havia ninguém na condução.

    A carroça seguia em frente em um ritmo lento. O clima estava pesado. Uma noite quente com um céu cheio de nuvens que pareciam descer mais a cada momento para sufocar quem estava embaixo delas.

    Teseu sentiu seu coração disparar, será que Hermes o havia deixado e o cavalo seguiu viagem sozinho?

    Foi quando ouviu.

    IIIIIRRRIIIII

    RUUUUUR

    Um relincho, vindo de longe atrás da carroça, acompanhado de um rugido gutural e animalesco.

    Percebeu então que não conseguia enxergar o cavalo de onde estava. 

    “A carroça está seguindo sozinha!?”

    O garoto sentiu um arrepio na espinha, a semente da dúvida estava plantada em seu coração e germinava mais com o temor de um rugido lupino inconfundível que perseguia seus ouvidos ao longe.

    IIIIIRRRIIIIIKKKKK

    BRUK

    KRACK

    Mais um relincho, dessa vez em agonia e acompanhado de diversos outros sons que pareciam de madeira se quebrando. 

    De repente, a velocidade da carroça aumentou, e o menino foi jogado para trás num solavanco, caindo de costas no chão bagunçado.

    O vento invadiu a dianteira da carroça, varrendo o interior e vazando pelos fundos.

    Teseu paralisou, sentiu um olhar queimar as suas costas. Olhos vermelhos. Famintos.

    Foi quando resolveu se virar. Seu corpo não acompanhava o pescoço. Quando finalmente terminou de se virar, enxergou a razão de seu desespero.

    Uma besta feérica, lupina, que parecia maior que qualquer árvore à vista. 

    Ela estava de pé em suas duas patas traseiras e segurava com extrema facilidade um cavalo, que se debatia e relinchava em dor.

    O ar pareceu pressionar o pulmão de Teseu e seus joelhos que já tinham ido de encontro ao chão tremeram.

    A fera ergueu o cavalo acima da cabeça com uma única mão e apertou seu torso, fazendo com que o animal estirasse os membros com a dor.

    A próxima cena foi ainda mais terrível, sem conseguir desviar os olhos da criatura, Teseu assistiu enquanto o cavalo tinha sua cabeça devorada em uma única mordida pela besta, que olhava indiscretamente para ele entre as árvores.

    O rubro brilhante do sangue se destacou entre as obscuras sombras noturnas. O último gemido do cavalo rompeu com o ruído solitário das rodas da carroça.

    Toctoctoc

    Um novo som tomou conta do ambiente, acompanhando a carroça. Um trotar de cascos.

    A velocidade do veículo aumentou mais uma vez, a fera percebeu. 

    THUMP

    BLAP

    A monstruosidade largou o cavalo no chão de forma brutal e se apoiou nas quatro patas, com uma das dianteiras mais à frente, como se estivesse preparada para uma arrancada.

    O corpo de Teseu foi para trás num instinto e de sua boca ruídos indecifráveis saíram sem produzir uma palavra sequer. Um desespero primal tomou conta do garoto e ele se debateu, levantando-se do chão por puro instinto de sobrevivência.

    Ele virou as costas e correu para a frente da carroça pulando no assento do condutor, desesperado. Foi quando seus olhos já cansados de se surpreender encontraram mais um absurdo. 

    À frente da carroça, segurando as rédeas e a arrastando em uma velocidade absurda, pareciam estar dois homens. Teseu sentiu o coração saltar, quase atravessando o peito. A agonia que provinha do desconhecimento. Nada estava normal desde que ele acordou.

    Poderia ser que ele estava sonhando?

    O que aconteceu depois foi quase um borrão na mente do rapaz. Ele não era capaz de processar mais informações.

    Os dois homens puxavam a carroça numa velocidade sobre humana enquanto ela balançava, instável pela velocidade e pela irregularidade no relevo da estrada. A fera partiu em um ímpeto absurdo contra a carroça e mesmo com a velocidade inacreditável que os dois desconhecidos a puxavam, a distância entre presa e predador só diminuía mais a cada segundo.

    A fera chegou a cinco metros da carroça, e então se projetou para frente em um salto. Suas garras apontando em direção ao veículo como se o quisesse estraçalhar em um único golpe.

    Foi então que a carroça pulou, aparentemente por conta de uma pedra no caminho. Uma das rodas caiu e Teseu se desequilibrou, voando novamente para a parte de trás do veículo.

    A criatura alcançou a parte traseira do veículo por pouco e suas presas se cravaram no tecido de cobertura, o rasgando. Teseu caiu batendo com as costas em uma das laterais da carroça.

    O mundo pareceu girar e uma sequência de impactos acompanhou o som de madeira quebrando. A carroça girou e parecia estar capotando. 

    BRRRKKKRTKBTKKRKBTK

    CRAK CRECK CRAK

    BUMP

    A queda foi longa, e acabou com um baque grave.

    Em meio aos destroços, Teseu estava deitado, recolhido no tecido rasgado da carroça que se enrolou nele durante a queda. Estava tonto, o mundo estava girando e seu ouvido só captava um zumbido irritante.

    Deitado para cima, ele abriu os olhos lentamente e então avistou, no topo do morro em que ele despencou. Se apossando da luz da Lua que florescia logo atrás de si, a criatura o encarou com seu furioso olhar escarlate e presas brilhantes. Um rugido escapou de sua boca, violento, brutal.

    O corpo de Teseu não reagiu. Estava entregue ao destino. Fechou os olhos mais uma vez, esgotado.

    Toctoctoc

    Um som de cascos se aproximou do rapaz. Pareciam ser dois pares que se movimentavam de maneira irregular, porém tranquila.

    Teseu não deu muita atenção. Sua consciência estava se esvaindo quando ele ouviu vozes. Pareciam conversar mas o garoto não foi capaz de entender uma palavra sequer.

    “Que… lingua estranha…”

    Toctoctoc

    Então, o garoto sentiu um bafo quente soprar seu rosto. Não um hálito. Uma respiração.

    A consciência escapava pouco a pouco de seu corpo e ele resolveu abrir os olhos uma última vez.

    A visão turva pôde apenas revelar mais um aspecto da estranheza desta noite. Dois homens conversavam acima dele. Um de cada lado de seu corpo.

    Tinham o torso desnudo e a turbidez da visão do garoto não permitia que fossem revelados os seus rostos. Conversavam em um tom preocupado. Agora de perto, Teseu finalmente percebeu que era grego que falavam, porém em um dialeto muito diferente do que ele conhecia.

    Parecia arcaico, estrangeiro.

    Sua atenção, no entanto, se dispersou por um instante da fala. A luz do luar entrou em seus olhos e trouxe um pouco mais de calidez aos seus sentidos. Enxergou com um pouco mais de clareza as duas figuras.

    Tinham rostos fortes e barbas cheias, narizes longos e pontiagudos. Pareciam também levar algo estranho em suas cabeças. Não pôde pensar por muito tempo.

    Ouviu um deles falar algo pro outro com urgência. Uma frase longa e embaralhada da qual ele só entendeu uma palavra.

    — ἄγγελος1 

    Um som de algo se aproximando pela mata surgiu e os dois homens se viraram em uníssono. E então, fugiram. 

    Os olhos de Teseu tornaram a se fechar pelo cansaço. A dor de cabeça aumentava.

    Toctoctoc

    O garoto, acaso não se encontrasse paralisado, teria erguido a sobrancelha.

    “Que estranho…”

    Toctoctoc

    “Eu podia jurar…”

    TocTocToc

    “Que tinha visto cascos…”

    — ALI!

    …….

    …………

    ……………………

    1. Ángelos – Arauto[]

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