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    “Foi um nome que surgiu como o vento. Uma das três partes de algo que seria bem lembrado até o final daquela Era. Três metades: um dragão que tudo sobrevoa, uma espada que a tudo aguenta e uma cegueira que tudo enxerga.”

    Izandi, a Oniromante


    A protuberância óssea à sua frente se dividia em três, duas das quais, escondidas detrás da maior, pareciam um pequeno par de longos e afiados chifres de um tom de cinza sólido e áspero, quase prateado. Massas de penas longas e prateadas se projetavam na direção dos álgidos ventos, que colidiam contra sua face como gotas de uma chuva forte — e terrivelmente fria. Já havia espirrado menos vezes tendo uma gripe forte ou outras doenças do nariz.

    — Deve segurar as penas com mais força, irmão! — gritou Natharel na Língua dos Dragões-Reais, ainda que sua voz mal conseguisse chegar às orelhas de Ezekel, cujo coração batia num ritmo audível mesmo com a tão forte ventania. — São tão guias quanto sua voz!

    “E como, Deuses, eu seguraria isso com mais força do que já estou fazendo!?”, gritou consigo, mordendo os dentes expostos pelo vento que fazia dos seus lábios uma bandeira. Ainda sentia neles o gosto do chá recifano; e nos braços, tronco e pernas, seus músculos ardendo e se estilhaçando como se houvesse navalhas no seu sangue. “Isso é culpa sua, irmão Natharel!’

    ‘Ainda que a escolha seja minha…”

    Desde que tinha pernas para andar e braços para segurar seus brinquedos, a Mata dos Grilos não o polpou de esforços. A velha ama não permitiu que ficasse sem treinamento educado. A magreza era parte do sangue dos Godwill, imaginava o rapaz, e essa parcela era bem mais densa no seu sangue do que no dos irmãos.

    Rei Rikard era gordo e barbudo, parecia mais um homem comum do que um Godwill; já Natharel, que se não pela voz sedosamente masculina, seria inconfundível com uma mulher graciosa senão pela altura e músculos visíveis por trás das camisas de treino.

    Ezekel era baixo, como seu sangue fizera desde a Bruxa Louca, tinha curvos olhos azuis serenos e nem um fio de pelo no peito ou no queixo; como boa parte de seus ancestrais —  e era magro, mesmo que sempre tivesse treinado. Não negara totalmente seus treinos ao receber a Coroa dos Acenos, e Ofina não polpava esforços para deixá-lo em forma. Todavia, depois que pedira pessoalmente para o irmão um treinamento para o recém-liberto Theo, o Draconeiro não perdeu a chance de por os dois louros no mesmo lugar.

    E Natharel era bem mais cruel que o instrutor Jim da Mata dos Grilos. Muito bem, você segura a espada de uma maneira melhor do que lembrava. Portanto, agora terá de ter resistência, proclamou, momentos antes de fazer Ezekel obrigar-se a balançar a espada até suas mãos ficarem vermelhas e ensanguentadas de calos estourados. Não se compara a tirar uma vida, repetiu para si.

    O homem que mata foi ascendido enquanto estava no esconderijo. Não se lembrava de um traço do rosto do seu quase assassino. “É o primeiro, e somente isso”, afirmou para si.

    No final daquela tarde, tinha chegado da mansão dos Goldwey após uma curta discussão e um delicioso suco de amoras. Fizeram questão de providenciar vinho de manga. Cortesia a dona sua esposa, Vossa Graça, dissera a filha do casal Goldwey, Hildhit, usando roupas de Greanalg invés das… A conheci numa visita recente ao Palácio. É uma esposa maravilhosa, meu senhor.

    Agradeceu pelo barrilete do amado vinho da esposa, decidindo mantê-lo escondido dela por algum tempo, e pôs no peitoril de Cei Awril Goldwey a prova de que agora era o Guardião-Mór da Cidade de Diamante. No Palácio, ordenou que servos levassem o vinho para longe, e Natharel surgira como uma sombra e um rosto nada ameno.

    Os treinamentos eram sempre no pátio de treinos do Palácio. No entanto, o Draconeiro o levou até um salão escondido através de uma passagem secreta que Ezekel não conhecia. O mecanismo velho quase não fizera barulho enquanto uma parede se dividiu em três pedaços e uma passarela.

    “Mais passagens que não conheço”, pensou, recordando-se de seus estudos antes da Cidade e da Coroa. “Os castelos de Suas Majestades são cheios de passagens secretas. O dos Reis das Flores tinha uma caverna escondida por quilômetros debaixo de seus tijolos.” Por que sua residência seria diferente?

    O caminho que seu irmão iluminou com seu flamejante ahvit projetou-se devagar até um tablado escuro como um dique de pinche, cercado por uma alameda de manequins com armaduras esverdeadas fedorentas. O lugar fedia a abandono, teia de aranha e poeira; todos bem presentes durante seu andar.

    Assim que o Mestre acendeu archotes velhos, o chão escorregadio que pisava demonstrou uma forte cor verde-escura; musgo tomou todo o tablado e arredores como terra virava lama após a chuva.

    Natharel estendeu sua mão para que subisse. Com um movimento espaçoso, os dois deslizaram um pouco; Ezekel quase teve as pernas separadas em uma abertura dolorosamente não viril, mas o irmão o salvou da castração por esmagamento, e o deixou para andar a só por alguns minutos.

    — Se acostumou o suficiente? — questionara. Com um aceno de Ezekel, ele retirou uma das espadas embainhada na cintura e jogou para o mais baixo, que pegou por muito pouco. Era uma espada de quase um metro e dez, encapada por uma bainha de couro prateado e metal escurecido. — Foi feita especialmente para você. De agora em diante, será sua nova esposa. Mantenha-a sempre bem afivelada no cinto, irmãozinho.

    O irmão mais novo abriu um sorriso com o dizer do mais velho, mesmo que a lâmina fosse pesada. Seu punho tinha quase quinze centímetros de madeira polida, enrolada por uma sensação enrugada e coriácea. O guarda-mão era simples, duas longas hastes entalhadas no formato de asas de dragão-real; o brasão dos Godwill jazia orgulhosamente no centro, com a cabeça do Dragão saindo dos limites da moldura e tornando-se metálico até a lâmina. Os músculos de Ezekel se comprimiram para tentar puxá-la, mas no curto movimento, ela saiu quase por inteira.

    Como se nem estivesse embainhada.

    Era uma orgulhosa e fina lâmina de dois gumes, cujo corpo afinava-se até formar uma ponta de lança que rebrilhava o vermelho dos archotes. Ver seu rosto refletido no metal fê-lo perder a respiração. Não entendia de armas, mas confessaria abertamente que aquela era linda.

    — Eu prestaria mais atenção na bainha, irmãozinho — e Ezekel o fez. Embainhou a espada como se fosse água e deu sua atenção para as costas da bainha; tinha uma espécie de apoio metálico. Imaginou ser para prender melhor.

    — Obrigado, meu irmão. Não imaginei que fizesse isso para mim.

    — Não fui eu. Foi Rikard. Mas ele não a deu um nome. Deixo isso com você, irmãozinho.

    Ezekel fechou a boca e engoliu ar fétido. “É o primeiro presente que recebo de Rikard…”, pensou. A espada parecia ainda mais bela e alegre. “Preciso de um nome bom, algo ótimo”, todavia nenhuma ideia surgiu na sua mente além de “Ofina”.

    — Agora desembainhe-a, treinaremos com aço. — Natharel fechou os lábios, retirando sua longa camisa de linho. Ele sempre fazia isso quando ia treinar seus alunos. Para melhor conhecer seus corpos, disse uma vez. Ezekel obedeceu o irmão, que estava com olhos culposamente cerrados. — Há dezessete anos atrás, quando Rikard mal tinha barba no rosto e eu tinha pouco menos que sua idade, participei de uma batalha em Aavier. — Ouvir que seu irmão tinha entrado em batalha mais cedo do que entraria deixou o príncipe mais novo com um gosto amargo na boca. — O Império é geralmente muito sujo, todavia, encontrei um comandante que, se não fosse de Eztrieliz, gostaria que fosse meu amigo. Suas tropas eram muito maiores do que a minha, no entanto, ele propôs combate singular. Eu liderava meus homens e, querendo que todos eles voltassem para seu lar, aceitei. Estávamos poucos dias à frente de Mão da Queda, em um campo quase aberto para trás, um pequeno penhasco à direita e montanhas e colinas à esquerda.’

    ‘O comandante deles utilizou de uma arte de esgrima de duelo que não conhecia. Logicamente, eu ainda era muito inexperiente, ainda que talentoso, modéstia parte. Lutei contra ele em um duelo justo, mas ele tinha o triplo da minha idade e o dobro do meu tamanho. A diferença de força me obrigou, naquele momento, a criar algo novo. Algo que reagisse a meu estado de fraqueza. No entanto, ele parou, riu e disse em risadas: “Ora, conheço esta forma, quem o ensinou?”. Fiquei irritadiço, e antes de que pudesse completar o fruto da minha nova Clareza, ele entrou em uma instância semelhante a minha, e a fez de uma forma muito melhor e completa.’

    ‘Obviamente, eu ganhei a luta. Seus homens se dispersaram honrosamente, enquanto os meus ficaram para trás, em respeito pelo comandante daqueles bárbaros imundos e a mim. O que fiz, assim que retornei aos meus, foi chamar o maior dos homens e obrigá-lo a tentar arrancar minha cabeça fora com sua espada. Com os movimentos do comandante em mente, recriei… da minha forma, aquela esgrima imperial. O encontrei mais uma vez, e o venci de novo, algumas semanas depois. Mas foi em campo de batalha, e usando do meu orgulho e do que roubei dele. Em suas últimas palavras, avisou-me que aquilo era uma Escola para crianças fracas e mulheres. Engraçado, ele era muito mais forte do que eu e tinha eu certeza de que ele era um homem.”

    Natharel retirou a Eclipse da sua bainha, mas também retirou a bainha da sua cintura. Apontou a lâmina na direção do pescoço de Ezekel, com seu cotovelo inclinado e guarda-mão a poucos centímetros entre a orelha e os olhos. O cotovelo esquerdo ficou como a espada, apontado para frente, com o punho direcionado ao próprio peito — enquanto segurava a bainha verticalmente, como uma espécie de segunda espada apontada para os próprios pés. A lâmina repousou sobre o cotovelo esquerdo. Suas pernas ficaram espaçadas e de lado. O mais novo observou-o com atenção redobrada, ainda que não entendesse nada.

    — É de natureza defensiva mas, contudo, precisa. — Deu um passo para frente. — Coincidentemente, eu tenho quase o dobro da sua idade e três vezes à sua força. Não é uma situação perfeita?

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