POV: NOAH WILLIAMS.

    Fechei os olhos por um instante.

    Quando os abri novamente, percebi que estava em um barco… à deriva no meio de um oceano escuro, sob uma lua cheia que brilhava intensamente no céu. Ela tentava emular o Sol, mas sem muito sucesso, lançando apenas uma luz fria e prateada sobre as águas.

    A embarcação era um pequeno barco pesqueiro. Olhei ao redor do convés e vi que estava completamente só. O barco balançava suavemente com a maré, de um lado para o outro, num ritmo quase cadenciado, como uma rede embalada ao som de uma canção de ninar.

    O sentimento era estranhamente reconfortante, mas, ao mesmo tempo, profundamente errado. 

    Incongruente. 

    Vários adjetivos me ocorreram, mas preferi não escolher nenhum. Senti que estava fora da realidade naquele momento. 

    Onde eu estava? O que estava fazendo ali? 

    Eram perguntas que surgiam naturalmente, mas que, por algum motivo, eu não sabia responder de maneira alguma.

    Concentrei-me no oceano. As águas ao redor eram negras, de uma tonalidade profunda e ameaçadora. Ruídos estranhos vinham das profundezas: uma batida rítmica, metálica, misturada ao choque constante das ondas contra o casco do barco em que eu estava.

    Foi quando um forte aroma invadiu minhas narinas.

    Cheiro de peixe podre… e enxofre. Um odor pungente de enxofre que rapidamente dominou todo o barco. Percebi então o quão estranha era aquela embarcação.

    Era pequena demais para estar em alto-mar. Sua construção era bizarra. Não era feita só de madeira, remendos de metal cobriam partes do casco, como cicatrizes grosseiras. A cabine era minúscula, com uma pequena vigia no telhado.

    Dentro dela, um painel eletrônico enferrujado compunha os controles. Era feito de um metal cinza-claro, agora envelhecido, coberto por manchas esverdeadas e escurecidas como musgo. Em meio aos arranhões no painel, havia um número marcado: 23051925.

    Instrumentos analógicos com mostradores marrons, velocímetro, profundímetro e outros que não reconheci, balançavam descontroladamente, como ponteiros de relógios sem bateria.

    Foi então que avistei a névoa.

    Uma densa cortina cinzenta avançava rapidamente em direção ao barco. Trouxe consigo uma tempestade súbita, com ventos que cortavam como facas. O balanço reconfortante das ondas cessou ali. A água se agitou, violenta e desafinada, como se o próprio mar tivesse perdido o ritmo e mergulhado no caos.

    E então, uma sombra escura ergueu-se diante do barco, rompendo a névoa. Avançou com violência brutal.

    O impacto foi terrível, abrindo um buraco profundo no convés, diante dos meus pés. Esforcei-me para enxergar através do nevoeiro e da água que jorrava.

    “Era… um tentáculo?”

    Não tive tempo para pensar. Olhei freneticamente ao redor, tentando encontrar uma saída, uma arma, qualquer coisa. 

    Foi então que percebi… Eu não estava mais sozinho no oceano.

    Ao redor, erguendo-se das águas negras como fantasmas, havia barcos. 

    Dezenas deles. 

    Navios quebrados, destroços monstruosos empilhados uns sobre os outros, como num lixão flutuante. Pilhas de metal corroído, cascos retorcidos, histórias mortas e esquecidas naquelas águas malditas.

    “M-mas… isso não estava lá há segundos atrás…”

    Senti meus pés perderem o chão. A gravidade parecia ter se invertido, puxando-me para cima. 

    Escorreguei e caí de costas no convés molhado. O barco balançou violentamente outra vez, e dessa vez o movimento me prendeu ao chão com força.

    Quando o barco finalmente pareceu estabilizar-se, agora elevado sobre a água. O fedor de peixe podre atingiu-me com força renovada.

    Era óbvio o motivo.

    Ao meu redor, espalhados pelo convés inclinado, havia dezenas de peixes mortos, inchados e pálidos. E um som… um som de gosma se movendo, algo viscoso se arrastando sobre o metal e a madeira do barco.

    Algo rastejava.

    Quando me levantei, trêmulo, vi uma longa trilha de gosma verde… e um tentáculo tão grande quanto o anterior. Antes que eu pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, vi-o avançar em direção à cabine. Ele a envolveu completamente, como uma píton estrangulando a presa, e a destruiu por inteiro.

    Assim que o estrondo do metal e da madeira sendo esmagados cessou, o tentáculo se contraiu e recuou. Quando o segui com os olhos, vi algo que me gerou um terror tão profundo que mal consegui respirar.

    Era uma criatura monstruosa, com uma aparência… familiar?

    “C-como isso é familiar?”

    O monstro possuía uma silhueta humanoide, mas sua gigantesca cabeça lembrava a de um polvo. Onde deveriam haver braços, haviam longas asas distorcidas, rasgadas em vários locais, tão afiadas que pareciam capazes de cortar o próprio espaço.

    Nesse momento, um sussurro profundo soou em meu ouvido. Tão frio quanto a tempestade que me cercava. Tão abstrato quanto o próprio monstro que me observava. 

    O tom era calmo, leviano como uma pena, e tão lento que eu ouvia cada fonema sendo pronunciado. 

    Soava como um… Devaneio, que vinha do fundo do mar. 

    O sussurro soara: “Cthulhu.”

    Tal nome me era tão familiar… que parecia ser até o meu próprio. Mas eu sabia que não era.

    “Onde caralhos eu estou?”

    A imagem diante de mim era tão estranha quanto uma miragem. Mas ela ocorria no oceano… e não no deserto, como se espera.

    Fiquei congelado ali, sem saber o que fazer ou para onde correr. 

    O desespero começava a tomar meu corpo… se não fosse pela luz dourada que começou a brilhar no rosto da criatura, revelando aquela imagem mítica como sendo apenas… uma ilusão?

    Olhei na direção da luz.

    O que vi completava aquela paisagem mitológica de forma ainda mais absurda. 

    Um gigantesco maelstrom girava as águas ao redor de um pedestal dourado e, no centro dele, havia…

    Um atril?

    Sim, era um atril, que brilhava num tom branco de quartzo polido. 

    Acima dele, nuvens claras clareavam o céu escuro como tochas acesas no meio de uma nevasca. 

    Aquela paisagem era familiar… mas por quê?

    Até que, num clique silencioso, tudo se encaixou. 

    Minha consciência, até então confusa, se estabilizou, e meus olhos se fecharam.

    “Droga… esse é o efeito ilusório do Chamado!”



    POV: HELENA IVYRA.

    Naquele momento, eu havia acabado de chegar à escada. 

    Com certa dificuldade, manuseei a plataforma com as garotas, fazendo com que descessem primeiro, enquanto controlava o mecanismo degrau por degrau.

    Assim que terminei, voltei à realização anterior.

    Aquele homem provavelmente estava atrás do maldito papiro…

    “Merda! Quais as chances de eu pegar esse maldito papel justo quando ele aparece?”

    Questionei-me, indignada, com a coincidência absurda daquela situação.

    Eu era agnóstica, mas, diante de um acontecimento desses, creio que fosse normal perguntar-me se Deus não teria algum senso de humor particularmente irônico.

    Meu pequeno devaneio foi interrompido quando senti algo anormal vindo do andar de cima…

    As energias monstruosas de ambos se comportaram de forma diferente por um instante.

    Senti que a energia de H havia diminuído abruptamente, sem aviso.

    “Noah o derrotou?”

    Pensei nisso e decidi verificar a situação através de Bala.

    Ativei meu campo de visão secundário, mas tive dificuldade em enxergar o segundo andar por conta das chamas e da fumaça que preenchiam todo o espaço.

    Mesmo assim, no meio de tudo, consegui ver o construto do atril ainda brilhante, estático, fixo no mesmo lugar.

    “O encantamento ainda continua ativo?”

    Levei a mão direita ao pulso rapidamente para conferir… e percebi algo incomum.

    O encantamento estranho do papiro brilhava de forma constante, mesmo sem que eu estivesse imbuída de energia para ativá-lo.

    Aquilo não fazia sentido. Ele não deveria agir passivamente.

    “Ele precisou de um gatilho para funcionar…”

    Deixei a natureza do encantamento de lado por um momento e voltei minha atenção para onde estavam as energias de Noah e H.

    Até que… senti uma forte presença surgir no ambiente.

    Ao mesmo tempo, minha visão através de Bala congelou, e minha energia enfraqueceu drasticamente. Comecei a sentir uma drenagem intensa nos meus QPs.

    Minhas pernas ficaram levemente bambas devido à rapidez com que a energia se esvaía.

    Meus construtos enfraqueceram momentaneamente, e a plataforma onde segurava as garotas tremeu antes de se estabilizar novamente.

    Mas o suficiente já havia acontecido. A plataforma despencou escada abaixo.

    Desci mais alguns degraus às pressas e consegui, por um breve segundo, olhar o primeiro andar.

    Algumas estantes estavam em chamas, e o espaço parecia vazio, exceto pelo grande buraco criado anteriormente durante a troca de golpes, mais ao fundo.

    A pressão que eu sentia aumentou, e percebi que Bala havia tido sua energia congelada, como se algo estivesse rastreando sua presença.

    Nesse momento, sucumbi ao meu próprio peso, vencida por uma estranha fadiga que surgiu do nada em meu corpo. 

    Notei que o papiro havia caído ao meu lado nesse instante.

    Engatinhei com esforço, sentindo minha energia mágica sendo drenada. Tentei avançar até onde as garotas estavam, mas meus movimentos estavam lentos, minha mobilidade drasticamente reduzida.

    “Que encantamento está fazendo isso?”

    Rose, que estava próxima da porta, me viu me arrastando e correu em minha direção.

    — Graças a Deus que você está bem! — exclamou ela, estendendo a mão e se esforçando ao máximo para me ajudar.

    Sorri levemente… mas então, um forte estrondo quebrou a dinâmica.

    Algo despencou do andar superior, rompendo o chão entre fumaça e labaredas. Estantes em chamas desabaram junto com ele.

    Era H.

    Ele surgiu diante de mim e atacou Rose pelas costas com brutalidade, arremessando-a contra a parede.

    — Os garis daqui não limpam o lixo direito… Deixe-me fazer isso por eles. — murmurou ele, pegando-me pelo pescoço e levantando-me alguns centímetros do chão.

    Golpeei seu rosto com as manoplas, mas sem sucesso.

    — Não pense que vai roubar isso de mim — disse ele.

    Tentei convocar Bala para realizar um ataque, mas H, em resposta, deu um soco direto na minha cabeça, atingindo-me em cheio.

    Minha visão escureceu rapidamente. As bordas do meu campo de visão se fecharam como cortinas pesadas, e tudo ao meu redor passou a se tornar um borrão indistinto. 

    Passei a ver apenas fracamente o que acontecia à minha frente, como se estivesse afundando dentro do próprio corpo.

    Ele me soltou. Caí no chão com o peso do próprio corpo, como se fosse nada, como se todos os meus músculos tivessem desistido de mim ao mesmo tempo. 

    O impacto do contato com o solo ecoou surdo dentro da minha cabeça latejante.

    De canto de olho, caída, vi que ele se abaixava. Com dedos firmes e decididos, pegou o papiro amassado no chão, bem próximo de onde eu havia caído. 

    Senti o desespero latejar em meu peito, mas não consegui mover um dedo.

    Lutei para manter a consciência, mas outro forte estrondo ecoou, fazendo o teto tremer com violência. Mais partes da estrutura começaram a desabar, em um caos de poeira e labaredas.

    Mal consegui perceber quando Noah desceu. Ele surgiu no campo da minha visão turva, avançando contra H com uma chama viva nos olhos.

    Vi-o tentar golpeá-lo, mas H desapareceu novamente, deixando apenas um avatar de gosma preta que se desfez com o impacto flamejante.

    Olhei em volta. A biblioteca era um inferno. As vigas rangiam, o segundo andar começava a ceder por completo.

    A última coisa de que me lembro foi Noah correndo em minha direção. Ali, minha visão se foi de vez… e eu apaguei.



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