Com passos pesados, dois jovens avançavam por uma biblioteca de horror. As estantes, feitas de massa encefálica que pulsava com um brilho azul etérico, elevavam-se aos céus, parecendo tão vastas quanto eles.

    Ao lado de Laab, cuja pele de ébano e músculos definidos contrastavam com seus cabelos curtos e encaracolados, estava Jito Valtross. Os olhos verdes de Laab tinham olheiras profundas, marcas da privação de sono. Jito, de cabelos castanhos desgrenhados e pele oliva, carregava olheiras tão acentuadas quanto as do amigo, seus olhos âmbar revelando o mesmo cansaço.

    — Vamos parar… um pouco — Valtross murmurou, sua voz arrastada. Ele deixou a mochila pesada cair no chão, ajeitou a postura e passou a mão pelos cabelos castanhos, tentando em vão arrumá-los.

    Laab também baixou a mochila. Abriu o zíper, pegou uma garrafa de água e tomou um gole longo. O líquido desceu pela garganta como um alívio abençoado em meio àquele caos, refrescando sua secura e dor.

    — Não beba muito. As garrafas estão acabando — Valtross alertou, lançando um olhar sério para Laab.

    Já haviam se passado três dias desde que chegaram à Verdadeira Biblioteca de Alexandria. Desde o primeiro ataque do demônio com uma cabeça feita de olhos, eles praticamente não descansaram. Laab havia dormido menos de oito horas nesse período.

    Toda vez que paravam, em menos de uma hora, Laab começava a ouvir um zumbido em seu ouvido. Por algum motivo, esse som o avisava da aproximação dos demônios.

    “Eu ouvi esse mesmo som agudo antes do ataque demoníaco em Nova Osíris… por que ouço isso? Não encontrei nada do tipo nesses livros,” Laab refletia sobre o som que surgia de sua mente, agudo, mas estranhamente silencioso.

    “Não é algo ruim. Na verdade, é extremamente útil e já salvou a minha vida e a de Jito várias vezes… mas eu gostaria de ter uma compreensão maior dele para assim poder deixá-lo mais poderoso. Talvez eu consiga que esse som vire um tipo de premonição mais concreta, já que agora eu ouço apenas o som, mas não sei de onde o perigo vem, de quem é e quão perigoso é.”

    “Se eu tivesse uma compreensão mais profunda desse som, poderia ter salvo Omar…” Laab ficou sombrio, lembrando-se de sua fraqueza. A chama da determinação, contudo, ardia ainda mais em seu coração.

    Laab sorriu levemente. “Parece o sentido aranha…”

    Desde o primeiro ataque do demônio de infinitos olhos, eles enfrentaram apenas outros quatro demônios. Dois deles não lhes causaram grandes dificuldades; Lab e Jito estavam mais resilientes a ataques mentais e já haviam montado uma boa estratégia para matá-los. O maior problema era quando Laab dormia e, por conta disso, não ouvia o zumbido. Nessas vezes, foram atacados e quase mortos.

    — É sua vez de ficar de guarda — Laab disse para Jito enquanto bocejava. Jito apenas deu de ombros, endireitando a postura no processo.

    Laab abriu outro compartimento da mochila e retirou algo que brilhava em tons azulados.

    Era uma esfera que irradiava lindamente um brilho safira. De longe, sua luz parecia conter tranquilidade e ordem, mas logo revelava o oposto: um brilho sufocante que trazia consigo uma sensação estranha de inquietação e desordem. Era um brilho profundo e doentio, como o reflexo do inferno.

    Ela parecia conter um universo de sensações contraditórias — poder, sim, mas também Morte, pesadelos, brutalidade e maldade. Era como mergulhar em águas tão profundas que até a luz se recusava a segui-lo. Um poder que arrastava a alma para o abismo… e ainda sorria enquanto fazia isso.

    Aquilo era um núcleo profano.

    Todos os demônios carregavam núcleos profanos em seus corpos — fontes de energia, como baterias. Quanto mais núcleos um demônio possuía, mais poderoso ele era. Essa era a forma pela qual os humanos aprenderam a classificá-los.

    O demônio que atacou Laab e Jito possuía um único núcleo — um demônio de grau Rastejante. Em contrapartida, o demônio de grau Marquês que devastou Nova Osíris carregava cinco núcleos profanos.

    No entanto, o número de núcleos não representava totalmente o nível de poder de um demônio. Havia muitos de grau Tentador que superavam demônios de grau Pesadelo, por exemplo, muitas vezes por serem seus predadores naturais. Um demônio de grau Barão feito de chamas, ao lutar contra um de grau Pesadelo com um corpo de água, teria que ter cuidado para não ter seu corpo desfeito.

    Por isso, mesmo sendo uma Potestade, era preciso ter cuidado ao lutar com demônios de grau Pesadelo, mesmo que tecnicamente mais poderosos. Por isso, era sempre bom analisar o demônio antes mesmo de se aproximar.

    Essa era praticamente uma lei não escrita entre os Divinos de categoria baixa e média. Para os mais poderosos, existiam meios de determinar se poderiam derrotar ou não um demônio apenas sentindo sua presença.

    “Está quase acabando…” Laab murmurou, observando a esfera azulada.

    Laab cruzou as pernas, posicionando a esfera azulada de corrupção entre elas, e fechou os olhos, concentrando-se. Jito observava-o de longe, atento, lançando olhares ocasionais para os dois lados do corredor silencioso.

    Então, Laab começou a absorver a divindade do núcleo profano.

    Ele havia lido sobre o processo em um dos tomos antigos encontrados na Verdadeira Alexandria: “Os Sete Graus Divinos — Volume Único”.

    O livro descrevia: “Depois de ascender ao grau Serafim, o indivíduo deve se expor a núcleos divinos, roubando a divindade deles. Assim, poderá ser ainda mais poderoso, além de acelerar a assimilação do grau divino!”

    Mas, nessa mesma página, havia um comentário intrigante:

    “Caso o indivíduo não tenha acesso a núcleos divinos, por serem extremamente raros e caros, pode-se optar por núcleos profanos… Sim, núcleos profanos! Incrivelmente, eles contêm um pouco de divindade, o que pode ser uma forma muito mais barata de ganhar poder do que os núcleos divinos!”

    Laab não acreditou que aquilo fosse uma afirmação correta. Afinal, como um núcleo profano teria divindade? Mas então ele se lembrou que, ao beber o sangue de um demônio poderoso, um humano comum poderia se tornar um Serafim.

    Era exatamente isso que o havia transformado em um Serafim. Laab decidiu arriscar, e realmente havia dado certo!

    Laab não conseguiu retirar o núcleo profano do primeiro demônio de olhos que matou. Dos próximos demônios, felizmente, tiveram tempo suficiente para extrair os núcleos com calma. Como Laab havia sido o responsável pelo golpe final no primeiro combate, Jito concordou em deixá-lo ficar com aquele núcleo. Mas ficou decidido que o próximo núcleo pertenceria a Jito.

    Assim, Laab já havia absorvido um núcleo e agora estava terminando de absorver o segundo. Jito estava na mesma situação que ele.

    Nesse momento, Laab se concentrou profundamente, até entrar em um estado de cogitação.

    Abaixou o rosto, encarando diretamente a esfera azulada de corrupção diante de si. À medida que sua mente mergulhava na essência do objeto, ele começou a enxergar diversos círculos girando lentamente dentro de sua cabeça — a maioria pulsando em tons azulados e corrompidos, mas alguns irradiavam uma luz esverdeada, carregada de uma sensação de poder e nobreza.

    Com sua mente, Laab moldou uma mão ilusória — uma extensão etérea de sua vontade — e começou a puxar os círculos verdes para si.

    Cada vez que absorvia um deles, sentia sua essência se fortalecer. Era como se a vida vibrasse mais intensamente em seu corpo, e sua alma se tornasse mais firme, mais pesada, mais real.

    Sentia-se mais vívido. Mais forte.

    Alguns minutos se passaram, e Laab já estava quase terminando.

    “Mais um…”

    A mão ilusória criada por sua mente agarrou um dos últimos círculos esverdeados — símbolo de poder e nobreza — e o puxou para dentro de si. Naquele instante, Laab percebeu que não restava mais nenhum círculo verde. Tudo estava feito.

    — Terminei — Laab disse, com entusiasmo contido.

    — Você acha que ainda temos tempo? — perguntou Jito, com um traço de apreensão na voz.

    — Vamos descansar mais um pouco. Não estou ouvindo nada.

    Jito se sentou próximo a Laab, em silêncio. O clima ficou tenso, quase sufocante.

    Desde que se conheceram, o único momento que tiveram para conversar de verdade fora uma noite antes de virem para a biblioteca, quando ambos acordaram no meio da madrugada. Desde então, não houve tempo… nem vontade. Mas agora, Laab sentia algo diferente. Havia um peso no olhar de Jito, uma pergunta sufocada que parecia prestes a escapar.

    — Você quer me perguntar algo? — Laab disse, virando-se para ele.

    Jito pareceu surpreso por um instante, mas logo se recompôs. Hesitou. Seus olhos se moveram como se buscassem palavras no escuro, até que finalmente falou:

    — Seu sonho… Beelzebuth disse que seu sonho é acabar com a morte… o que isso significa?

    A pergunta saiu quase como um sussurro, carregada de apreensão.

    Laab já esperava por algo assim. A dúvida estava nos olhos de Jito havia dias. Não se surpreendeu. Respirou fundo e, depois de reunir as palavras, respondeu com firmeza:

    — Eu te conto… mas você vai ter que me dizer por que seu sonho é ser livre.

    Jito o encarou por alguns segundos, avaliando o peso daquele pacto silencioso. Então, assentiu com a cabeça, uma única vez, em um gesto sério e contido.

    Laab desviou o olhar para a esfera azulada ao seu lado. O brilho sombrio do núcleo profano parecia pulsar levemente, como se o observasse.

    Ele ficou em silêncio por um instante, tentando organizar os pensamentos.

    “Como explicar isso? Como colocar em palavras algo que nem eu entendo por completo?”

    “Deveria contar sobre Omar? Sobre aquele dia? Sobre o instante exato em que, diante da morte, eu desejei que ela acabasse?”

    “Mas como explicar um desejo que não nasceu da lógica… apenas surgiu, como se sempre tivesse estado ali, escondido dentro de mim, esperando a hora certa?”

    Laab olhou para Jito e riu, um riso breve e sem alegria.

    — Eu realmente não sei — confessou.

    Jito o encarou, surpreso com a sinceridade.

    — Sabe… eu achava que meu sonho era ser forte. Forte o bastante para impedir que qualquer pessoa que eu amasse morresse.

    Ao dizer isso, o rosto de Laab escureceu, mergulhado em lembranças. Ele se lembrou de Omar.

    — Mas, no fim, tudo o que tive foi um sonho egoísta… um sonho pelo qual eu fui capaz de abandonar minha melhor amiga no momento mais difícil da vida dela. Só por causa desse desejo. E o pior… é que nem mesmo sei como realizá-lo. Nem por que sonho com isso.

    Jito permanecia em silêncio, mas agora havia compreensão em seu olhar. Não era só empatia — era identificação. Era como se algo parecido tivesse acontecido com ele.

    Quando viu que Laab havia terminado, Jito respirou fundo. Depois de alguns segundos de reflexão, falou com um pequeno sorriso:

    — Eu quero ser livre. Livre de tudo. Das correntes do meu clã, das correntes dos laços humanos, das correntes de um corpo mortal… e das correntes do fim. Eu quero ser livre de tudo. Eu preciso ser livre.

    Ele ergueu os olhos, com convicção.

    — Eu quero ser o mais livre… E, assim como você, também não sei por que tenho esse sonho. Ele apenas… surgiu.

    Laab olhou para Jito, dessa vez ele quem estava surpreso. Depois sorriu, genuinamente. Estendeu a mão para o companheiro.

    — Então vamos fazer um acordo. Afinal, se o meu sonho se realizar, o seu estará um passo mais perto de acontecer também… não é?

    Jito sorriu de volta e apertou a mão de Laab, selando o pacto silencioso entre dois sonhadores perdidos no mundo — ligados não pela certeza, mas pela vontade de romper seus próprios limites.

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