Índice de Capítulo

    Demônios da Noite gostavam de invadir os sonhos dos humanos.

    Ao contrário da realidade, nos sonhos tudo era possível. Não importava o quão miserável fosse sua vida, nos sonhos você podia alcançar toda a felicidade que desejasse.

    Mesmo que agora você não tivesse nada para comer, nos sonhos podia provar todas as iguarias do mundo. Mesmo que não tivesse um único centavo no bolso, nos sonhos podia viver em uma mansão repleta de tesouros de ouro e prata. Familiares mortos, amigos ou amantes, mesmo que não pudesse vê-los na realidade, nos sonhos poderia até criar novas memórias com eles.

    Nos sonhos, você podia fazer tudo que quisesse.

    Seus sonhos podiam ser preenchidos com felicidade e alegria eternas.

    Era por isso que se chamavam sonhos.

    Mesmo entre os demonídeos, os Demônios da Noite eram especialmente perversos. Eles atacavam os pontos fracos do coração humano contra os quais suas vítimas nada podiam fazer. Mostravam às pessoas aquilo que elas não conseguiam alcançar na realidade, aquilo que só era possível em sonhos. E, com isso, criavam uma falsa sensação de felicidade que usavam para aprisionar suas presas.

    Lovellian havia mencionado a Rainha dos Demônios da Noite. Em sua vida passada, ela era um dos demônios que Hamel mais desejava matar. Aquela maldita demonídea atacara Hamel e seus companheiros diversas vezes durante a jornada por Helmuth.

    Os Demônios da Noite que serviam a Rainha invadiam os sonhos deles sempre que podiam, forçando Hamel a reviver seus maiores arrependimentos: a família que perdera num ataque de monstros, a impotência por não ter conseguido fazer nada, e os sentimentos constantes de rivalidade e inferioridade que marcavam sua relação com Vermouth. Tudo isso era intensificado dentro dos sonhos.

    Neles, Hamel não perdia sua família. Em vez disso, os talentos inatos do jovem Hamel floresciam milagrosamente, permitindo que ele massacrasse os monstros. Seus pais e os outros aldeões o celebravam como um herói.

    Nos sonhos, Hamel era simplesmente superior a Vermouth. Não importava o quanto tentasse, Vermouth nunca conseguia vencê-lo.

    — É porque você é um idiota — Hamel zombava de Vermouth.

    Nos sonhos, Hamel liderava a linha de frente da campanha de subjugação. As milhares de pessoas que haviam morrido durante a travessia para Helmuth, aquelas que não conseguiram acompanhar o herói e seus companheiros, e pereceram pelo caminho sem nem deixar seus nomes para trás, nenhuma delas morria em seus sonhos. Prosseguindo, ele derrotava todas as ameaças que surgiam em seu caminho e conseguia salvar todas aquelas vidas.

    E então, finalmente, derrotava o último dos Reis Demônios.

    Mas apenas em seus sonhos.

    “Algo assim não pode substituir a realidade.”

    Hamel, ou melhor, Eugene, sabia disso muito bem.

    Não importava o quão doce fosse o sonho mostrado por um Demônio da Noite, ele jamais poderia se tornar realidade. Quando acordava, a doçura daquela ilusão contrastava com a realidade e só gerava um amargo auto-desprezo.

    Mesmo que você encontrasse felicidade naquele sonho, isso só fazia a realidade parecer ainda mais miserável. E, para mudar essa realidade miserável, o último caminho que deveria seguir era se esconder de novo nos sonhos.

    Era preciso despedaçar a ilusão. Matar o Demônio da Noite que tentava balançar seu coração com uma maldita miragem e, no fim, levá-lo a se perder em um sonho vazio.

    Trezentos anos haviam se passado desde então. Os Reis Demônios, os demonídeos e os Demônios da Noite haviam mudado com o tempo.

    Eugene entendia o que Lovellian estava tentando dizer. Não havia nada de particularmente errado em suas palavras. Ele queria que Eward, esmagado pela dura realidade, ao menos pudesse recuperar o fôlego dentro dos sonhos.

    — Tô velho demais pra isso — Eugene murmurou, massageando as têmporas.

    Mesmo que pudesse compreender, ainda assim não conseguia aceitar. Ele conhecia o terror dos Demônios da Noite e a futilidade dos sonhos que ofereciam. Eugene não conseguia ver a conduta vergonhosa de Eward como algo trivial.

    Enquanto Eward permanecesse viciado nos sonhos, ele continuaria fugindo da realidade. Acabaria se tornando um tolo.

    E, embora Eugene não sentisse nenhum afeto fraternal por Eward, ele havia recebido muitos favores de Gilead.

    — ‘Velho’? Do que você tá falando de repente? — perguntou alguém, surpreso.

    — Tô dizendo que sua roupa é brega demais — respondeu Eugene, virando a cabeça para encarar o interlocutor.

    Ele estava sentado em uma das carruagens aéreas. Gargith estava sentado à sua frente. Apesar de o interior da carruagem ser bem espaçoso, Gargith, com seu corpo absurdamente grande, precisava curvar os ombros para caber ali dentro.

    — Por que tá dizendo que minha roupa é brega? — Gargith perguntou.

    — Não é por causa desses babadinhos ridículos pendurados aí? Quem foi que te vestiu assim? — criticou Eugene.

    — Foi minha mãe que escolheu, e ela disse que eu estava muito bonito com isso.

    — Agora que olho melhor, realmente combinou com você. Quando adiciona babados ao seu visual, que já é praticamente transbordante de ferocidade, você fica igual a uma fera selvagem escondendo as presas.

    Com essas palavras apressadamente corrigidas, Gargith sorriu, feliz.

    — Eu também pensei a mesma coisa.

    Embora Eugene quisesse desesperadamente engolir o que acabara de dizer, o olhar anterior de decepção patética de Gargith tinha sido doloroso demais de encarar. Gargith usava atualmente um terno formal com babados costurados nos braços e no peito. Embora o perfume cobrisse o cheiro de suor de seu corpo, a adição do perfume ao visual já incomum de Gargith tornava tudo ainda mais perturbador.

    — …Você não precisa passar perfume nenhum — Eugene acabou cedendo.

    — Por quê? — Gargith perguntou.

    — Com a sua cara, o cheiro de suor parece mais natural e combina melhor do que perfumes.

    — Eu também senti a mesma coisa.

    Eugene voltou a virar o rosto e olhou pela janela novamente.

    Era noite de lua cheia. A noite em que a Rua Bolero finalmente se abriria.

    Eward havia saído da torre naquela manhã. Eugene ouvira de Hera que Eward dissera que ia comprar materiais para experimentos mágicos. Embora Eugene não soubesse se essa desculpa era verdadeira ou não, não havia como um cara que vinha se trancando no quarto esse tempo todo sair justo hoje por coincidência.

    “Idiota”, Eugene resmungou ao ver seu reflexo no vidro da janela.

    Seu rosto e cor de cabelo haviam sido alterados. Ainda era cedo demais para ele usar a magia avançada de Polimorfia, mesmo que quisesse. No entanto, conseguia usar feitiços de nível mais baixo para modificar os traços do rosto e a cor do cabelo.

    No momento, Eugene só tinha aprendido magias até o Segundo Círculo. Embora ainda não houvesse resposta para a carta de recomendação enviada por Lovellian, ele decidira seguir o conselho do mago. Talvez não tivesse certeza de que um passe de entrada para Akron lhe seria concedido, mas até ter uma resposta, Eugene havia decidido não aprender mais magias novas.

    Em vez disso, ele revisava as magias já memorizadas. Organizava os feitiços do Primeiro e Segundo Círculo que aprendera nos livros introdutórios de magia. Ganhara prática substituindo um Núcleo por um Círculo e estava cada vez mais familiarizado com a conjuração.

    Como resultado, Eugene conseguia conjurar qualquer feitiço de Primeiro ou Segundo Círculo sem dificuldade. O feitiço que lançara em si mesmo era também de Segundo Círculo. Era uma magia de transformação rudimentar que podia ser desfeita até por uma dissipação de baixo nível, mas era adequada para um lugar como a Rua Bolero.

    Embora tivesse aprovação tácita das autoridades, a maior parte do comércio feito na Rua Bolero ainda era ilegal.

    Entre os que vinham e iam pela Rua Bolero, muitos optavam por esconder suas identidades. Como Polimorfia era um feitiço de alto nível, não era algo tão fácil de usar, então a maioria recorria a magias de transformação rudimentares. Por isso, dissipar a magia de transformação lançada sobre os visitantes da Rua Bolero era estritamente proibido.

    “Mas isso não significa que seja impossível reconhecer alguém só pela aparência”, Eugene observou.

    Dissipações não eram absolutamente necessárias para ver através de um disfarce. Magos de alto nível conseguiam ver com facilidade através de magia fraca. No fim das contas, usar esse tipo de feitiço diante de um mago poderoso era como tapar os olhos com as mãos e fingir que estava invisível.

    Mas isso ainda não era melhor do que não fazer nada?

    Ao puxar o capuz do manto para cima, Eugene abriu a porta da carruagem. Tinham chegado à Rua Bolero.

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