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    Não era exagero dizer que Sienna foi a maga mais importante da história da magia. Se Mer tivesse todas as memórias de Sienna, não havia a menor chance de que os magos de Aroth a tivessem deixado em paz.

    Poderiam ter desmontado Mer para extrair todas as memórias mágicas que ela possuía, ou então tê-la usado como base para pesquisar novos feitiços. Por mais que respeitassem Sienna, se algo como ‘aquilo’ estivesse diante deles, não poderiam sequer se chamar de magos se não a desmontassem para estudá-la.

    Eugene concluiu: “O fato de não terem feito isso significa…”

    Que ou era algo impossível de se fazer.

    Ou não havia necessidade de fazê-lo.

    Ou já tinham feito.

    Eugene encarou Mer abertamente. De acordo com sua compreensão, a existência de Mer como uma inteligência artificial da Feitiçaria era absurda. Era exatamente como Lovellian havia dito. Quando o Arquimago leu o primeiro volume da Feitiçaria, dissera que toda a magia que aprendera até aquele momento parecia brincadeira de criança em comparação.

    “Certamente, isso está muito além do campo da magia comum”, Eugene assentiu em entendimento.

    Seria por isso que Melkith o havia alertado para usar fralda, dizendo que ele poderia se urinar? Ao se lembrar do sorriso travesso de Melkith, Eugene balançou a cabeça.

    “O texto original da Feitiçaria continua sob os cuidados exclusivos de Akron. Qualquer mago autorizado a entrar em Akron pode lê-la”, Eugene ponderou.

    Como os segredos da consciência e da existência de Mer estavam claramente registrados na Feitiçaria, não havia necessidade de desmontá-la.

    Eventualmente, Eugene perguntou — …Você sabe por que a Dama Sienna se retirou ou para onde foi?

    — Claro que não sei — Mer bufou. — O desaparecimento da Dama Sienna foi ao mesmo tempo surpreendente e sigiloso. Nem seus discípulos, nem os criados de sua mansão, nem eu sabíamos nada sobre sua reclusão.

    — Sério?

    — Sir Eugene, quantas vezes acha que me fizeram essa pergunta nos últimos duzentos anos?

    A expressão de Mer havia mudado. Já não estufava o peito, os ombros caíram, e o sorriso orgulhoso desapareceu do rosto. Seus olhos frios e apagados pareciam não conter nem um fio de luz, emoldurados por sobrancelhas franzidas e um meio sorriso torto.

    Aquele sorriso era tão semelhante ao de Sienna que Eugene ficou arrepiado.

    — Já ouvi essa pergunta tantas vezes que perdi a conta. Já estava armazenada em Akron muito antes da Dama Sienna decidir se recolher. Mas o rei de Aroth, os Mestres das Torres daquela época, o Chefe da Guilda dos Magos e incontáveis outros magos ainda me capturaram e exigiram saber o paradeiro da Dama Sienna — reclamou Mer, amargamente.

    Será que algo assim realmente havia acontecido?

    — Eu disse a eles que não sabia de nada — Mer continuou. — No entanto, assim como o senhor agora, eles não acreditaram em mim. Então, mandei que fizessem o que quisessem. Homens que não sabiam o que estavam fazendo e que careciam de habilidade começaram a tentar acessar a Feitiçaria e a mexer nas minhas memórias. Parece que perderam a capacidade de aprender com os próprios erros, pois continuam vindo até mim para repetir as mesmas tentativas a cada poucas décadas.

    Então eles já haviam feito isso. Desde que Sienna entrou em reclusão, os magos de Aroth já tinham vasculhado a Feitiçaria e a mente de Mer diversas vezes.

    — No entanto, eu realmente não sei nada sobre o desaparecimento da Dama Sienna — Mer repetiu. — Da última vez que vi a Dama Sienna, ela não demonstrava nenhum sinal de querer se afastar do mundo.

    — Parece que fiz uma pergunta inútil — Eugene se desculpou.

    — Desde que esteja ciente disso.

    Eugene se afastou da Feitiçaria. Embora quisesse observar de perto a magia de Sienna contida ali, a verdade era que, no momento, não tinha confiança de que conseguiria compreendê-la mesmo se tentasse.

    — …Dizem que só o primeiro volume está exposto em Akron, certo? — Eugene perguntou.

    — Aham — confirmou Mer.

    Ele fez outra pergunta — Os outros dois volumes também estão guardados aqui?

    — Não — Mer balançou a cabeça. — Aquilo ali é, sem dúvida, o texto original da Feitiçaria, mas apenas o primeiro volume está armazenado ali dentro. A Dama Sienna levou os outros dois quando partiu.

    — O quê? — Eugene exclamou surpreso.

    — Ummm… — Mer parecia relutante em admitir. — A Dama Sienna ‘extraiu’ o segundo e o terceiro volumes do texto original e, quando restou apenas o primeiro volume, doou o texto para Akron. Por conta disso, eu sofri bastante. Todos eles… não apenas querem encontrar o paradeiro da Dama Sienna, mas também querem descobrir onde estão os dois volumes restantes — disse Mer, aproximando-se de Eugene. — O Sir Eugene parece estar bastante interessado na Dama Sienna.

    Eugene se defendeu — Isso não é verdade para todos que vêm aqui?

    — Pode até ser, mas o Sir Eugene não é exatamente um mago comum, certo? Embora eu nunca tenha deixado Akron ou tido motivo para isso, nesses últimos séculos até eu ouvi falar do clã Lionheart. — Mer ergueu a cabeça para olhar Eugene e continuou — O clã deixado pelo Grande Vermouth. É a primeira vez que vejo um dos seus descendentes, então é um pouco impressionante.

    — Não precisa ir tão longe a ponto de se sentir impressionada.

    — Mas eu realmente estou. Pelo que consigo lembrar, antes de Dama Sienna me doar para Aroth, ela jamais teve qualquer interação com o clã Lionheart. Ela sequer voltou a se encontrar com Vermouth.

    Eugene também sabia disso. Nos registros de trezentos anos do clã Lionheart, era estranhamente raro haver qualquer menção a contatos com Sienna e Anise.

    O mesmo valia para Molon. Embora Eugene não soubesse o motivo, aquele idiota nunca tinha aparecido para ver Vermouth depois que ele fundou o clã Lionheart.

    No fim, após Molon abdicar do trono, seus descendentes, a realeza do Reino do Norte de Ruhar, e o clã Lionheart começaram a fazer contato aos poucos. Mas, considerando os laços entre seus ancestrais, a relação entre a família real de Ruhar e o clã Lionheart era bastante superficial.

    Eugene definitivamente não sabia explicar o porquê disso. Apesar de Vermouth ser um sujeito com habilidades sociais horríveis, Anise o seguira afirmando que ele seria o herói que salvaria o mundo. Molon também havia sido intimidado por Vermouth, e geralmente evitava suas tolices quando estava diante do herói.

    Mas por que não mantiveram contato após voltarem de Helmuth, sem jamais se reencontrarem?

    Eugene se lembrou: “…De acordo com os registros do clã Lionheart, não houve mais nenhuma interação depois da fundação do clã. A próxima vez que qualquer um dos companheiros se viu novamente… foi no funeral de Vermouth.”

    O funeral de Vermouth foi declarado um dia de luto nacional pelo Império de Kiehl. Na ocasião, Anise fez um discurso como Santa do Império Sagrado, e Molon, como rei do Reino do Norte de Ruhar, tirou sua coroa chamativa e carregou pessoalmente o caixão de Vermouth. Como Mestre da Torre Verde de Aroth, Sienna havia… quando o céu parecia prestes a desabar em chuva, usado magia para abrir as nuvens e fazer brilhar uma luz solar morna sobre Vermouth, enquanto todos se despediam dele.

    No fim, o único reencontro daqueles companheiros após o retorno de Helmuth foi no funeral de Vermouth.

    Isso fazia Eugene sentir que havia uma separação muito forte entre eles, e isso lhe despertava questões difíceis de responder.

    Eventualmente, Eugene perguntou — …Nas suas memórias, houve momentos em que Dama Sienna falava de seus antigos companheiros?

    — Às vezes ela olhava para o Sir Molon e o chamava de idiota — Mer confessou.

    — E a Anise?

    — Chamava ela de mulher traiçoeira.

    — …E o Hamel?

    — Idiota, filho da puta, imbecil e desgraçado.

    — Você não disse que a Dama Sienna era ‘muito mais nobre e transbordava dignidade’? E que ela quase nunca sorria?

    — Mesmo uma pessoa nobre e cheia de dignidade pode xingar. Além disso, sempre que Dama Sienna falava sobre seus antigos companheiros, ela nunca sorria. Na verdade, seu rosto sempre parecia prestes a chorar. — Enquanto relembrava essas memórias de centenas de anos atrás, Mer virou a cabeça e comentou — Especialmente quando falava de Hamel, era algo extremamente doloroso para ela.

    Na direção para onde Mer havia virado a cabeça, havia um grande retrato. Era o mesmo retrato pendurado na mansão de Sienna.

    Aquele em que ela exibia um sorriso benevolente.

    — …Aquele retrato é falso — revelou Mer.

    — Falso? — Eugene perguntou.

    — A Dama Sienna nunca sorriu daquele jeito.

    — Talvez ela tenha sorrido assim antes de criar você.

    — Não, é falsificação mesmo. Claro que o retrato foi pintado antes de eu ser criada, mas uma vez perguntei diretamente a ela durante as conversas frequentes que a Dama Sienna tinha comigo para moldar minha personalidade.

    — …E o que você perguntou?

    — Perguntei por que ela sempre parecia tão triste. — Mer ficou alguns instantes olhando o retrato antes de voltar a encarar Eugene. Então, imitou o mesmo sorriso que Sienna exibia na pintura e disse: — Embora a Dama Sienna não fosse capaz de sorrir como eu, ela me explicou por que deixou um retrato assim para trás.

    Se era algo que seria passado para as futuras gerações, seria melhor mostrar um rosto sorridente do que um triste.

    — Quanto àquele retrato… o artista desenhou um sorriso aleatório. Talvez por isso a Dama Sienna nunca tenha gostado muito dele. Apesar de atualmente estar em exibição pública na mansão dela, enquanto eu estive lá, o retrato ficava pendurado com a face virada para a parede. O mesmo vale para o retrato neste salão.

    — … — Eugene contemplou o retrato em silêncio.

    — Fui eu que virei o retrato neste salão — Mer confessou. — Porque é verdade que é sempre bom ver um rosto sorridente.

    Instintivamente, Eugene estendeu a mão e afagou a cabeça de Mer.

    No entanto, Mer imediatamente afastou a mão dele e disse com seriedade:

    — Não ultrapasse os limites.

    Caindo em si, Eugene se desculpou — Ah… tem razão. Desculpe.

    — Embora eu tenha um corpo menor que o seu, Sir Eugene, estou aqui há mais de duzentos anos, sabia?

    — …A Dama Sienna disse algo sobre Vermouth?

    Mer fechou os lábios e se virou de costas — Ela não disse nada sobre ele.

    Será que estava brava por ele ter lhe afagado a cabeça? Sem sequer olhar para Eugene, Mer se afastou com passadas curtas e rápidas.

    — Ela não fez elogios, nem críticas, nem observações.

    Um pequeno gesto, um grande impacto!

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