Capítulo 1 — Espelho
Talvez. Só talvez. Eu esteja morto. Bem, isso pode ser verdade.
Mas… Por que ainda consigo pensar?
Definitivamente há uma resposta, mas como saberia?
Abri os olhos, se é que estavam fechados, mas não havia nada.
Não existia cores. Não existiam sons. Pessoas, lugares, estrelas, o vácuo, nada, nada me acolheu. E, provavelmente, eu também não existia.
‘O quê?’
Nesse nada, também surgiu algo. Era um som, seco e estridente, trazia consigo uma cacofonia desgraçada.
‘O que está acontecendo?’
Parecia que estavam puxando um velcro na minha frente, ambos os lados se separando pela eternidade e novamente. Algo me cegou e o ciclo se reiniciou.
Um líquido viscoso e rubro manchou a minha visão.
‘Isso é… água’
Era uma poça, parecia submerso nela, difícil até para respirar. Tentei levantar, mas algo continuava a me puxar para baixo.
Não…
O meu corpo estava quebrado.
A dor atravessou meus pulmões, como se abrigasse uma viga de ferro nas costelas, atravessando-a.
‘De novo?’
Eu havia morrido novamente? Mas onde eu estava? O que eu havia feito? Quem eu sou?
Cough! Cough!
Escutei ao longe o barulho de sirene, engolfado na própria tosse, meus olhos pareciam ser o nada, destruídos por uma pressão súbita. Não entendia bem a sensação, mas…
De repente cai no sono.
Ou morri.
Ou algo entre os dois.
Algo reverberou.
Uma presença estranha me envolveu, quente como brasa, suave como pluma. Era como ser abraçado por uma memória há muito perdida.
Algo que parecia ser a minha… mãe?
Vi uma imagem tão nítida quanto um sonho vívido. Uma mulher de cabelos cacheados castanhos, olhos esverdeados, sorriso límpido e belo. Ela segurava um bebê envolto em panos brancos, cantarolando algo que eu não conseguia ouvir.
Seus lábios moveram-se, formando palavras silenciosas.
E então, a visão desmoronou.
O nada me engoliu de novo.
Até que uma voz — há muito não ouvida — ecoou na escuridão:
『 Adormecido Damian, bem-vindo à sua primeira provação. 』
O nada.
Quando abri os olhos, o nada me recebeu novamente.
Não era escuridão. Também não era luz. Era a ausência pura, um vazio tão absoluto que parecia sugar até mesmo meus pensamentos. Se estendesse a mão, duvidava que enxergaria meus próprios dedos. O ar — se é que existia — era estático, sem cheiro, sem temperatura, como se o próprio conceito de mundo tivesse sido apagado.
‘Onde estou?’
O pensamento ecoou na minha mente, solitário. E então, como se algo ouvisse, uma resposta veio — não em palavras, mas em sensação. Algo em meu peito reverberou, uma pulsação estranha que não era batimento cardíaco.
Era mais profundo. Como se minhas costelas fossem gaiolas e algo dentro delas tentasse escapar.
Com a palma da mão, pressionei o esterno, tentando conter o desconforto. Não adiantou. A reverberação cresceu, transformou-se em pontadas agudas que se espalharam como raízes venenosas sob minha pele.
“Aaah!”
O grito rasgou minha garganta, mas o som pareceu ser engolido pelo vazio. A dor era viva, inteligente, como se finos arames de aço estivessem sendo torcidos entre meus músculos.
O mundo ao redor — se é que podia ser chamado de mundo — tornou-se dissonante. Havia momentos de escuridão total, depois clarões brancos que me cegavam. Cada piscar de olhos trazia uma nova distorção, como se minha mente não conseguisse mais processar a realidade.
“Onde estou?” perguntei novamente, sabendo que não haveria resposta.
Mas, algo aconteceu.
Era um pressentimento antigo, nada verdadeiro, mas que, naquele momento, parecia como as histórias que um dia eu havia lido.
『Gerando primeira provação.』
A voz — suave como a de minha… mãe? Mas com uma ressonância metálica, quase robótica — tocou meus ouvidos. E com ela, veio uma nova memória.
O acidente.
O cheiro de gasolina queimada. O gosto de sangue na boca. A buzina estridente. O vagão desgovernado vindo em minha direção. Os gritos dos passageiros sendo calados pelo impacto.
Vomitei.
Não havia nada em meu estômago, mas meu corpo arqueou mesmo assim, cuspindo bile e saliva enquanto revivia os últimos segundos de minha vida.
“Ugh.”
Limpei a boca com as costas da mão, os dedos tremendo. A repulsa era física, como se meu corpo rejeitasse a própria existência.
‘Recebi uma segunda chance?’
A pergunta soou ingênua em minha própria mente. Os heróis daquelas mesmas histórias sempre escapavam da morte com a ajuda de outras pessoas, mas eu… eu morri. Isso era vívido demais para ser alucinação. Meus ossos esmagados, meu sangue escorrendo pelo asfalto…
‘Então, que lugar é esse?’
O vazio parecia respirar ao meu redor, como se aguardasse. Como se não houvesse mais tempo para mais perguntas.
Uma frase surgiu em minha mente, brilhante e dourada, antes de se desfazer em partículas de luz. Quando abri os olhos novamente, tudo havia mudado.
O salão que se formou à minha frente era impossível.
『Primeira provação: Salão das Refrações.』
A voz soou melancólica desta vez, quase compassiva.
“Como…?” Engoli em seco.
Vários espelhos flutuavam.
Centenas deles, talvez milhares, dispostos em padrões que desafiavam a gravidade. Alguns pendiam do teto como cristais de gelo. Outros giravam lentamente no ar, refletindo luzes que não tinham fonte. Havia espelhos curvos, distorcidos, alguns tão pequenos quanto uma moeda, outros maiores que portais.
E em cada um, um reflexo diferente.
Mas, havia um que se destacava.
Era o de um jovem de corpo esguio, não tão alto, ele tinha um cabelo cacheado castanho não tão grande e seus olhos o destacavam do mundo.
Parecia que eu estivesse olhando para uma daquelas pedras de jade que só eram possíveis ver em filmes.
‘Quem é?’
Dei um passo à frente, evitando tocar nas superfícies brilhantes. Meus pés não faziam som no chão — se é que havia chão. O ar cheirava a pó de mármore e algo elétrico, como ozônio antes de uma tempestade.
Frente a um dos espelhos, a verdade veio à tona.
‘Esse… Esse não é o meu reflexo, quem?’
Embora não lembrasse exatamente da minha aparência, esse definitivamente não era eu.
‘Damian? Quem é a pessoa que aquela voz chamou?’
Dúvidas tomavam o controle da minha mente, mas, algo também não fazia um exato sentido. Qual era o meu verdadeiro nome?
A figura, a minha frente, era diferente do que eu lembrava de ser, mas… Como eu realmente era?
‘Não consigo me lembrar…’
Analisando o reflexo no espelho, uma possibilidade absurda foi tomando forma em minha mente, insistente como um zumbido no crânio. Algo que desafiava toda lógica, mas que explicava o inexplicável.
“Eu… fui jogado para outro mundo?”
As palavras soaram estranhas na minha própria voz, como se fossem emprestadas. Mas no instante em que as pronunciei, algo dentro de mim estremeceu. Era como se um dique tivesse se rompido — memórias alheias inundaram minha consciência em ondas violentas.
Não eram minhas.
Nunca tinham sido.
E ainda assim… eram.
Incrédulo, dei um passo para trás, as pernas bambas como se o chão tivesse se transformado em areia movediça. Um turbilhão de informações me atingiu:
O meu nome é Damian.
Tenho dezenove anos.
Minha irmã mais velha se chama Lúcia.
Meu pai… não lembro seu rosto, só a sensação de suas mãos calejadas.
E minha mãe…
A imagem do reflexo no espelho — aquele jovem de olhos verdes vívidos e cabelos castanhos — era supostamente eu. Mas como poderia ser?
‘Esse não sou eu.’
A negação veio instantânea, visceral. Mesmo com as memórias invadindo meus pensamentos, algo no meu âmago se recusava a aceitar. Era como tentar calçar um sapato que não servia — quase certo, mas não o bastante para enganar o corpo.
O tempo perdeu significado naquele lugar.
Podiam ter se passado minutos ou horas desde que acordei no salão de espelhos. A ausência de qualquer referência externa — nem mesmo a fome ou o cansaço — tornava impossível medir a passagem do tempo.
E o pior: não havia saída. Nenhuma porta. Nenhuma janela.
Apenas infinitos espelhos refletindo infinitas versões de algo que eu supostamente era.
‘Isso não faz sentido…’
Minhas mãos tremiam ao tocar o próprio rosto, como se pudessem confirmar o que meus olhos se recusavam a aceitar. A pele era lisa, os traços delicados — tão diferentes da imagem que eu tinha de mim mesmo.
Se é que eu tinha alguma imagem.
Porque agora, quanto mais tentava lembrar de como era antes, mais as memórias escorriam entre meus dedos como água. Só restava o essencial: eu não pertencia a este corpo.
Este mundo.
Esta existência.
E o mais aterrorizante?
‘Não existem condições para sair daqui…’
A conclusão pesou como uma lápide. Não havia regras, instruções ou objetivos. Apenas eu, meu falso reflexo, e um labirinto de espelhos que pareciam me observar com interesse mórbido.
E em algum lugar entre os vidros, algo se movia.
Algo que não era eu.
Mas que insistia em ser.
A conclusão veio com um frio na espinha. Não havia instruções. Nada. Apenas eu e os espelhos infinitos.
Foi então que ouvi.
Um choro.
Tênue, abafado, como se viesse de muito longe.
“Quê…?” Virei-me, mas só vi meu próprio reflexo em um espelho ovalado.
O som parou.
Respirei fundo.
“Foi imaginação. Só pode ser—”
Ao me virar novamente, vi.
‘Meu reflexo’ no espelho mais próximo não me acompanhava.
Estava parado, os olhos arregalados, a boca aberta em um grito silencioso.
“Eita porra…” A maldição escapou antes que pudesse pensar.
O reflexo sorriu.
O sorriso do meu reflexo congelou o sangue em minhas veias.
Ele não piscou. Não respirou. Apenas ficou lá, com os cantos da boca esticados num ricto que não era humano — muito menos… meu.
“O que…?” Recuei um passo.
O reflexo não me acompanhou.
Permaneceu imóvel, os olhos escuros como breu, fixos em mim. A imagem era quase perfeita… mas não exata. As proporções do rosto estavam levemente distorcidas, como se vistas através de vidro ondulado. A postura, um pouco mais curvada. E as mãos…
As mãos estavam erradas.
Os dedos do reflexo eram mais longos. Articulados de forma estranha. Como se alguém tivesse pegado minha essência e a torcido, só um pouquinho, o suficiente para ser quase imperceptível.
Um arrepio percorreu minha espinha.
‘Não olhe nos olhos dele.’
O pensamento surgiu do nada, instintivo. Desviei o olhar para o chão — ou para o que parecia ser o chão, uma superfície negra e sem textura que não refletia luz.
O silêncio era opressivo.
Até que…
Pinga.
O som de uma gota d’água caindo em um lago.
Ergui os olhos, contra minha própria vontade.
O reflexo havia se movido.
Agora estava mais perto do vidro.
“Não…” Engoli em seco.
O reflexo inclinou a cabeça, como um pássaro curioso.
Pinga.
Outra gota. Outro passo.
Agora, conseguia ver os detalhes que realmente não batiam: meus dentes, eram afiados. Muito mais afiados. O reflexo suspirava, mas o vidro não embaçava. Ele tinha longas unhas. Escuras. Arranhando a superfície do espelho.
Pinga.
Mais perto.
Senti o instinto primitivo gritar em meu cérebro:
‘Corra.’
Mas para onde?
O salão era um labirinto de espelhos. E em cada um, agora, algo se mexia.
Pinga.
Pinga.
Pinga.
O som se acelerava.
O reflexo estava a um palmo do vidro.
E então…
Ergui a mão.
Pressionei a palma contra um espelho.
E o vidro ondulou, como água perturbada por uma pedra.
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