Capítulo 54 — A Bruxa não tão Boa
Ao sentir que a consciência da garota estava imersa no plano dos sonhos, Kalira passou sua mão em uma das mechas em seu rosto, enquanto admirava a beleza daquela jovem. Seus dedos pálidos logo se transformaram nas suas garras negras, cortando aqueles fios com uma precisão milimétrica.
“Ah, se eu tivesse acesso a um corpo tão lindo e com a genética natural para magia como esse, não precisaria passar todo esse perrengue que foi se adaptar a este corpo.”
Deixando Sarisa imersa em seus sonhos, Kalira levou a mecha de cabelo da garota consigo para a cozinha, colocando em sua mesa. Então, seu rosto começou a descamar, revelando as marcas e os chifres que tinham sido ocultados. Seus olhos voltaram a ser completamente negros, como a obsidiana. As protuberâncias em seus dentes estavam mais afiadas do que nunca.
— Que bom que ainda sei como conjurar uma segunda pele, faz um tempão que não preciso esconder a minha aparência.
A bruxa apagou o incenso que dava um aroma distinto de lavanda ao casebre, estrategicamente colocado para esconder o cadáver ensacado do arqueólogo que estava escondido na varanda.
“Pelo menos deu tempo de remover os melhores órgãos dele. Seria um desperdício caso ela explodisse novamente.”
Antes de resolver trazer a garota para casa, Kalira aproveitou do estágio de fragilidade mental para adentrar suas memórias mais profundas. Afinal, invadir o espaço pessoal dos outros era uma de suas especialidades. Como se não bastasse ter violado sua mente, a bruxa ainda soterrou as memórias e as bagunçou. Eventualmente, a garota conseguiria voltar ao normal, porém demoraria bastante tempo até Kalira decidir o que fazer.
A bruxa pegou seu cutelo de aço temperado favorito e trouxe o corpo de volta à mesa. Para impedir qualquer forma de surpresa, a bruxa conjurou sua cortina negra na entrada da cozinha, proibindo que qualquer uma além da conjuradora conseguisse entrar. Quando a sacola foi aberta, o rosto molengo e sem reações do arqueólogo, com suas cavidades oculares tão vazias quanto a sua boca sem língua e dentes.
“Ela é da era em que o templo abandonado ainda estava em funcionamento, há cerca de duzentos anos. Quando cheguei lá pela primeira vez, achei que toda aquela energia estava acumulada desde a era antiga, quando Malchi-Zarum ainda era vivo. Mas parece que ainda estavam em atividade a todo esse tempo.”
Seu cutelo começou a trabalhar, fortalecido pela magia obscura. A partir do braço esquerdo do homem. A lâmina afiada cortava sua pele, músculos, artérias e ossos impiedosamente, jogando as partes removidas em um cesto de madeira.
“A garota não vai se lembrar disso tão cedo, mas ela foi uma das últimas sacerdotisas vivas deste templo quando a caça aos druidas ocorreu, afetando colateralmente os sacerdotes de Malchi-Zarum. Para impedir que os rituais fossem perdidos, confiaram a ela uma Pílula do Reflorescer Espiritual. Nem se eu trabalhasse por cem anos, eu conseguiria formar uma dessas.”
Uma Pílula do Reflorescer Espiritual era algo de valor imensurável nas eras antigas e apesar dos alquimistas modernos terem ficados mais técnicos e instruídos, o valor de uma pílula dessas só fez aumentar, porque seu principal ingrediente é o tempo investido para refiná-la. É um processo que começa com um alquimista e termina com seu neto.
“Ela recebeu a pílula, consumiu e foi posta em hibernação antes mesmo de completar os ritos necessários. Parece que os outros sacerdotes tinham esperança que seu corpo se adaptasse durante seu sono e quando ela acordasse, teria poder o suficiente para trazer a glória de Malchi-Zarum de volta. A função da pílula seria cultivar a energia sagrada e filtrar suas impurezas para seu corpo absorver. É uma tática ousada, mas imprudente.”
— Isso explica porque ela perde o controle e vira uma fonte de destruição. Sua mente é inundada com pensamentos superficiais sobre seu papel como sacerdotisa e o ethos de Malchi-Zarum: Violência e destruição. Essa garota é uma bomba-relógio se não for tratada apropriadamente.
Sem um pingo de pressa, Kalira retirou o úmero do que sobrou do pobre explorador. O osso ainda estava quente, com gotas de sangue caindo por toda a parte. Segurando com suas duas mãos, seus olhos pulsavam junto com sua expressão faminta, deixando seus lábios entreabertos.
Levando uma das extremidades até a boca, com sua língua deslizando sobre o osso e saboreando cada uma das variações presentes ali. Um arrepio cruzou o seu corpo. Então, seus lábios se fecharam em torno da borda, enquanto sugava o tutano ali presente.
Espesso, quente e gorduroso. Aquele sabor cru invadiu sua boca com uma violência primitiva, revirando seu ventre. Ela soltou um leve gemido, baixo e abafado. Seus olhos se fecharam, enquanto sugava lentamente, mas de forma profunda. O êxtase era intenso, revitalizante e poderoso.
Parte do material escorreu pelo canto da sua boca, passando pelo seu queixo, acariciando seu pescoço e escorrendo entre os seus seios, traçando caminhos carmesins pelo seu decote e encharcando o seu vestido negro.
Quando terminou, o osso se encontrava vazio. Sua respiração era ofegante, seu corpo parecia revitalizado e seu rosto pálido ganhou um pouco mais de cor. A ponta da sua língua acariciou seus lábios, capturando tudo o que tinha sobrado do tutano.
— Pelos deuses, nunca me canso disso!
A bruxa então se levantou, percebendo que teria que tomar outro banho em breve. Com a cesta em sua mão, ela se dirigiu a sua varanda e despejou seu conteúdo lá do alto. Perna, pé, mãos, cabeça, tronco, todos caindo agressivamente no solo. Alguns segundos depois, sons de passos selvagens começaram a ficar mais altos.
Das sombras, criaturas quadrúpedes, do tamanho de um labrador, se aproximavam dos pedaços caídos no chão. Sua pele tinha uma tonalidade verde-escura, perfeita para se camuflar nas áreas mais verdejantes da Selva de Concreto. Embora não possuísse uma carapaça, a couraça parecia ser capaz de resistir facilmente a lâminas de baixa qualidade. Seus olhos eram amarelos e reptilianos, mas a presença de brânquias deixava a sua taxonomia confusa. Sua língua era densa e áspera, porém anormalmente longa. Uma delas capturou a mão que tinha ficado presa em um dos galhos com apenas um movimento, atingindo uma distância de aproximadamente um metro e meio.
A parte mais assustadora eram os dentes. Negros, incisivos e fortes. Suas mandíbulas mastigavam os ossos humanos como se fossem a casca de um ovo. O som deles sendo triturados eram bastante distintos, mas essa nem era a parte mais incrível. A saliva daquelas criaturas tinha uma alta concentração de pH baixo, junto com solventes naturais perturbadores. Antes mesmo daquilo descer pela garganta, não sobrava nada além de uma pasta uniforme de tecidos, músculos, sangue e ossos.
— Eu entendo o porquê Heferus optou por selar todas essas criaturas antes. Lindas aberrações da natureza — disse Kalira, contemplando do alto da sua cabana.
Usando uma bacia de prata cheia de água na mesa ao lado, a bruxa o usou para lavar suas mãos ensanguentadas. Ela não cansava de admirar como aquele corpo jovem tinha vigor para realizar tarefas que pareciam tão exaustivas em seus dias antigos.
— Já que eu vou levar a garota até o templo amanhã, seria bom dar uma conferida como as coisas estão por lá.
Pegando um punhado de pétalas de camomila, a bruxa as jogou sobre a bacia onde tinha acabado de limpar as mãos. Na prateleira acima, pegou um pequeno frasco com pó de alumínio e despejou uma pitada sobre a água. Então, ela comprimiu os lábios e fez um assobio em uma frequência tão baixa que era inaudível para o ser humano.
De repente, a superfície da água começou a se acalmar. As pétalas se concentraram nas extremidades, formando um círculo e o pó se expandiu, transformando a camada superficial da água em uma superfície metálica.
Quando Kalira olhou sobre a superfície, a aparência metálica se transformou em uma imagem em tempo real do templo abandonado. Embora não passasse mais por lá com frequência, tinha deixado criaturas que poderiam constantemente manter a vigilância por lá.
E o que a bruxa viu a deixou horrorizada.
— Como diabos tem tanta gente lá e eu não fiquei sabendo?
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