Anexo TLM-001-NNGY: Fantasma - 1.3
—Ambição—
―欲1.3望―
—Desejo—
“Entendeu?”
“Não.”
Nunca entendi.
Nem nunca vou.
Melhor me expressando, eu sentirei nojo profundo de mim mesmo no dia que eu entender.
“Qual parte faltou explicação?”
“Na verdade, acho que o senhor não entendeu a parte onde não concordo com o projeto e nunca pretendi colaborar.”
Talismã.
O projeto novo.
O que envolve entidades.
O que envolve Mazou.
“Você não tem poder para questionar uma ordem do supremo.”
“E o supremo não tem represálias o suficiente para me fazer mudar de ideia.”
“Namae-nai, você não está entendendo a sua posição aqui, e se esse for o jeito para a convivência que você prega?”
“Você acredita nessas palavras?”
“Quem deve crer ou não, é você. Contudo, a sua colaboração não é um favor, é uma obrigação. Você concordou com obediência absoluta, agora é o momento de seguir com os termos acordados. Os demais procedimentos serão feitos por seu mentor, isso é tudo.”
Ouvi em silêncio.
Sai da sala do agente TYLR com uma expressão séria. Logo que a porta fechou, ergui o dedo do meio com desdém.
Ele é um merda.
Assim como a maioria aqui.
Um agente de execuções, ele foi reconhecido e condecorado pelos feitos em combate e eu não questiono nada disso.
Sobrevivente, o agente TYLR não tem a mão esquerda, foi comida por um demônio, os mais perigosos monstros, os demônios ocidentais são mais violentos, perigosos e sanguinários que os orientais.
Deve ter sido um terror.
Eu não ouvi toda a história, se tornou um tabu ou algo assim.
Digo, demônios ocidentais são crueis, sei que suas armas foram quebradas e submetidos a algum tipo de tortura.
Isso é o que sei, sei também que ele foi o único que voltou.
A R/E não envia agentes em missões que não podem ser batidas, mesmo que não liguem para baixas, já sabiam que alguns morreriam.
Contudo, um único sobrevivente foi surpreendente.
Mas ele matou o demônio com a mão esquerda, desarmado.
Ora, não deve ser a tarefa mais difícil para o meu mentor, eu também conseguiria por ser especial, mas nesse caso, não havia nem eu, nem ele lá.
E mesmo assim, sem armas e supressores de aura.
Sim, esse é o agente TYLR, um guerreiro.
Agora o que esse filho da puta faz no setor executivo? Também não sei!
Porra, um cabeça de vento babaca. Ele é um executor, não um executivo. Assim como meu mestre, alguns compatriotas e eu mesmo.
Ele não sabe dar ordens, só obedece-las.
Esse tipo de agente não sobe de cargo, merda.
Eu estou sendo resmungão, até mesmo desgraçado, pois fiz questão de usar a mão direita — A que lhe falta, para mandar um dedo do meio.
Mas isso não muda o fato, não posso obedecer um cara que não sabe o que está fazendo, é simplesmente estúpido.
Caminhei vagando pela instalação resmungando palavrões, passei pelo setor operacional e peguei um novo chip celular, cadastrei ele na minha ficha e segui para a ala de equipamentos.
Usar a Mazou numa missão de execução? Onde esses imbecis do supremo estão com a cabeça…
“Namae?” Chamei, minha voz saiu mais áspera que eu pretendia.
“Aqui atrás.”
Ah.
Há algo que devo relatar.
Eu vim tratando com naturalidade o termo, mas era algo que deveria ter dito no início.
Namae-nai é ‘sem nome’.
Não é um jeito comum de se usar o termo, mas é assim que são chamados aqui.
Uma classificação de agentes, agentes que, ou abandonaram, ou nunca tiveram nome.
Eu pessoalmente chamo de ‘agentes descartáveis’, mas meu mentor discorda.
‘Se os Namai-nai são descartáveis, eu não posso ser um deles, sou indispensável, o melhor.’
O melhor.
Estava no chão com um pincel, envolto numa pilha de papéis retangulares escrevendo kanjis.
Ali estava o melhor espadachim da era moderna.
“Trabalhando muito?”
“O suficiente para não querer trabalhar nunca mais.”
Atrás dele, havia uma pequena garota de cabelos brancos. Eu nunca a vi, devia ter oito anos, talvez menos.
“Quem é? Não… O que é?”
“Nada, não é nada.”
Yōkai, sem dúvidas.
Mas não quis questionar.
“Certo… Onde estão?”
Olhei ao redor, tudo era uma bagunça sem fim, papeis, espadas de lâmina negra, vários acessórios.
Meu mentor, além de espadachim é xamã, ele faz talismãs, enfeitiça armas e assim por diante.
Eu não entendo nada disso, essa foi a parte do treinamento que mais negligenciei, e não me arrependo, nunca precisei disso.
Preciso de uma arma de corte para seres rápidos e uma soqueira para os resistentes, somente.
“Antes disso, o pescoço.”
Ah é.
Agachei até sua linha de visão.
Quando associamos um yōkai, é preciso selar ele ou grande parte dos poderes em algo.
Isso é, geralmente usamos papel ou amuletos, mas uma pulga que cocei continuamente após ser inserido no projeto talismã. O poder desses yōkais pode ser usado como arma? Se sim, qual a ideia do supremo em incorporar selos em agentes e levar yōkais ao campo de batalha?
Não sei.
Mas é suspeito.
“Ma-zo-ku…” Ele começou a ler a tatuagem no meu pescoço.
“Mazou.”
“Está escrito ‘Mazoku’.”
“Você escreveu errado.”
É, o melhor espadachim e não o melhor escritor.
“…” Ele pareceu inconformado. “Hara… Chou?”
“Mazougaharachou”
“Esse nome não tem significado.”
“É um yōkai, nós demos o nome, nós damos o significado.”
“Hara é de casulo? Eu não lembro.”
“Casulo, borboleta, algo assim. Remete a forma demoníaca dela, não?”
Forma demoníaca.
Mazou é um fantasma.
Mas já foi um Oni.
Um demônio oriental.
Diferentemente dos ocidentais, que são somente malignos, os orientais possuem particularidades místicas estranhas.
Tipo comer desejo.
“É verdade… Como está a convivência, Namaueuchi-san?”
“Não começa.”
“Foi assim que ela te chamou, não?”
“Foi assim que ela interpretou ‘Namae-nai’.”
“Parece um termo médico, ela sabe bem japonês?”
“Na verdade não, eu diria que é só um nome aleatório.”
“Justo. Assim sendo, posso informar que você está se adaptando à convivência?”
“É digamos que sim, mesmo que eu não seja o mais feliz com isso..”
“O projeto Talismã veio de cima, já deixei claro que discordo… Mas também não sei porque você é contra. Seu objetivo na firma não era provar que monstruosidades podem conviver em sociedade?”
“Não esse tipo de monstruosidade. Não desse jeito, mas os superiores só veem meios de matar com mais facílidade…” Meramente uma desculpa, isso era claro. “Você acha que eu vou conseguir fazer o que se ela descontrolar?”
Namae parou por um momento. ele coçou o queixo e então puxou de lado uma lâmina, uma espada com quase o meu tamanho, lá pelos um e setenta.
“Você vai me ligar.”
“Tamanha estupidez… Você não pode ser tão poderoso como um personagem de cabelo branco, é desonesto.”
Coloquei a palma na testa, entrelaçando ela com a minha cabeleira ruiva. Eu queria discordar.
Ele levantou um dedo.
“Eu executei mais yōkais com este indicador que você em toda a vida.”
“Isso é fácil, pela sua cara teve anos de sobra para isso, deve ter trezentos anos caçando.”
“Se eu tivesse caçado por trezentos anos, não existiriam yōkai.”
“Desonesto!”
É cômico ver uma espada tão graciosa entocada num monte de papeis e documentos.
O mais forte lutador reduzido ao mais fraco executivo.
“Aliás, tome cuidado com o que faz com ela, o relatório descreveu vocês num mercado.”
“Ela disse saber cozinhar.”
“Você também sabe e nunca ficou tanto tempo perambulando num lugar com câmeras.”
“Eu esqueci como se faz.”
“Haa… Se divirta brincando de casinha.” Ele se levantou, fiz igual. Mexeu em alguma gaveta e me entregou uma luva com as costas da mão num molde de metal — toda preta, feita para socos. E uma machete, também de aço negro.
Minhas armas cintilavam, pareciam como novas.
“Haori?”
“Deve estar na recepção, saiba você que a confecção de roupas com supressor de aura e entidade são caros e—.”
“Blá blá blá, desconte tudo do meu salário.”
“Na sua idade, eu tinha mais apreço ao dinheiro.”
“Na minha idade, você dormia num futon e sonhava com um terço do salário atual.”
“Na minha idade, você vai sonhar com um salário e cama normais.”
“Que eu nunca fique velho então.”
—Corte—
―切―
—Corte—
“Tadaima.”1
Já era noite.
A filial que trabalho não é tão distante na verdade, isso me faz pensar que o dia passou mais rápido do que pude perceber.
Acontece, mas é revoltante, dá a sensação que perdi o meu sábado, e já não tenho muitos.
A casa transbordava silêncio.
Eu não tinha pensado muito sobre isso quando abri a porta, o cumprimento foi meramente reflexo, mas ainda assim, agora há alguém para responder.
Me senti ansioso, confesso.
Mas não veio.
O ‘Okaeri’2 que esperei — Pela primeira vez em algum tempo, nunca veio.
Tinha cheiro de comida caseira no ar, um aroma de tempero.
“Mazou-san?”
Tirei as sandálias enquanto vasculhava a sala com os olhos. Parecia intocada, como sempre foi.
Um sofá azul, um kotatsu3 e uma estante com uma TV grande, somente. Não era algo que merecesse tanta atenção, Mazou não deve nem ter se interessado pela sala.
Fui até a cozinha.
Nada. A mesma mesa de madeira, com as mesmas cadeiras, o mesmo balcão, como sempre foi.
A comida nas panelas ainda estava quente, o fogo deve ter sido desligado recentemente.
“Mazougaharachou?”
Nada, nenhuma resposta.
Ela guardou vários doces no armário, mas também não mexeu muito nesse cômodo.
Fui até o quarto, passando banheiro, ela não estava em nenhum desses locais, todos como sempre estiveram.
Ela saiu?
Como? Não, por quê?
Minha mente nublou.
Se a comida está quente ela está perto.
Perto.
Gelei, não consegui pensar em nenhuma possibilidade.
Onde. Onde.
Mazoku.
Mazou.
Mazo…
“Mazou…”
“Sim?” Ouvi, senti o hálito quente coçar na orelha.
Wup—, eu instintivamente dei um pulo, estava atrás de mim, na ponta dos pés.
Quando notei, minha mão estava prestes a puxar a machete, mesmo que a própria nem estivesse na minha cintura.
“De onde você…”
“Estava atrás da porta.”
“Por que!?”
“Pra te assustar.”
Hah…
“… Palhaça.” Ela sorriu de travessa. Bateu a ponta dos indicadores repetidamente como uma criança que admite seu erro, mas não se arrepende. “Bleh” Dei um peteleco na testa dela e caminhei para a cozinha.
Meus batimentos se estabilizaram, o mundo voltou a correr normal.
“Você demorou.”
“Sim, demorei.” Peguei as sacolas que trouxe, e ergui uma delas. “To, é seu.”
“Um presente?”
“Sim, um bem caro.”
“Detesto presentes caros.”
“Por…?”
“Quanto mais caro, maior a sensação de dívida.”
É tão estranho ver a Mazou fazer sentido que me surpreendo às vezes, mas em meio às lógicas distorcidas, filosofias baratas e mau caratismo, ela parece bem racional de vez em quando.
“Assim sendo, você me deve a partir de cada fio de cabelo até a sola dos pés.”
“Tão caro?” Ela enfiou a mão na sacola. “Haori? Por que tantos assim?”
“Não gostou deles?”
“Eu já tenho um.”
“…”
Só aceite quieta… Inferno.
“Esses são diferentes.”
“Você pegou no trabalho?”
“Sim, eles são especiais pra você.”
“Eu não gostei.” Encarei, ela olhou cada um, comparou cores e estampas, e então se virou indo para o corredor.
“Ainda tento…”
Bom, ela levou as roupas, ao menos.
Me servi, comi sem interrupções.
Não tinha coca-cola, ela bebeu tudo.
Ela também não fez nenhum som durante a minha refeição, nem voltou do corredor.
O silêncio dela me acompanhou até a última garfada. Quando terminei, Mazou ainda não havia saído do corredor.
Por algum motivo, Mazou parece mais distante, mais sóbria.
Talvez pelo acontecimento de hoje cedo?
Tenho minhas dúvidas, ela só saiu por cima, eu que deveria ficar irritado.
Mazougaharachou.
Um Oni4 que come desejo.
A Oni que come desejo.
Meu mentor me disse uma vez, ‘Onis são poderosos, mais até que os demônios ocidentais. Sabe por quê?’
Eles são singulares.
São existências únicas.
Não existem dois Onis que se alimentem de Desejos, talvez numa interpretação diferente da palavra sim, mas em essência, Mazou é singular.
Só existe um Oni que se alimenta de mentiras, só um de memórias e assim por diante.
Entidades atreladas a conceitos. De maneira que, nunca podem morrer definitivamente, não de maneira física. Você só mata a entidade que vive do conceito, se você mata o conceito.
É por isso que Mazou é fantasma.
Ela não está realmente morta, mas o conceito dela foi enfraquecido o suficiente para que estivesse praticamente morta.
Ela é uma consciência perdida. Uma insatisfação flutuante. Ela é uma memória de um conceito surrado.
É difícil ser duro com ela, olhando por esse ângulo. A pressão de existir, mas poder deixar de existir de repente a torna uma fantasma.
A R/E é uma associação carniceira, confesso, mas eles não brincam em serviço.
Imagine enfraquecer o sentimento de desejo a nível global meramente para derrotar uma entidade?
Assustador.
Eu temo.
Um dia, há de existir um mundo sem lugar para yōkais. Um mundo que não se importou em matar até mesmo a humanidade pela causa.
Os fins justificam os meios? Heh, desculpa de carniceiro.
Mas espero não estar lá quando ocorrer.
E enquanto estiver, irei adiar ao máximo essa possibilidade.
Por isso, mesmo que eu não goste de você, vou te dar uma vida digna, Mazo.
A vida que minha mãe não pode ter.
Oh, eu divaguei. Já está tarde.
Coloquei tudo na lava-louça e caminhei até o quarto para dormir, foi um dia cheio.
Abri a porta, Mazougaharachou estava apenas com uma cueca elástica — desnuda da cintura para cima, se trocando, ela estava experimentando as roupas novas.
“O preto ficou apertado.” Disse cética.
Como se dissesse que nuvens são vapor condensado, ou que a melhor classe de Dragons Dogma é o assassin.
Como se respondesse naturalmente um ‘okaeri’ depois de um ‘tadaima’.
“São todos do mesmo tamanho.” Desabei na cama, arrastei o rosto até o travesseiro.
“Você vai dormir sujo?”
“Até a água esquentar, já dormi.”
“Eu esquentei água para você tomar banho.”
Virei a cara para a garota semi-nua.
Como num passe de mágica, todas as preocupações se tornaram supérfluas, simplórias. Como se num simples desejar, o fardo ficasse mais leve.
As vezes ela faz valer a pena.
“Você está encarando demais, o que foi?”
“Mazou, você é dez.”
—Corte—
―切―
—Corte—
Na hora de dormir, Mazou deitou nua.
“Ei, vista uma maldita roupa, ou não me responsabilizo pelas minhas próximas ações.” Ameacei.
“O meu haori está sujo.”
“Você ganhou outros nove.”
“Não quero sujar elas em casa.”
“…”
Oh, ela gostou deles?
Me senti mais carinhoso repentinamente. Tirei a minha camisa e entreguei para ela usar.
Ela pegou, analisou por alguns segundos e então jogou no chão.
“O que está fazendo?”
“Foi uma boa ideia sua, assim ficamos iguais.”
Ela disse deitando-se e se cobriu com o lençol.
“Fantasma estúpido.”
“Eu ficaria ofendida, se fosse um fantasma.”
“…”
Essa garota…
“Namaueuchi.”
“Chora.”
“Boa noite.”
Heh.
“Boa noite Mazou-san.”
Sim.Boa noite para você, que é Fantasma.
***
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