Capítulo 138: O Deserto (8/13)
— Hamel, por que você anda por aí carregando todas essas armas que nunca nem usa?
— Se eu tiver elas comigo, com certeza vou acabar usando em algum momento.
— Deixa ele em paz, Anise. Tô te falando que esse desgraçado não vai te escutar, não importa o que você diga. E, bem… também não tem nada de errado em estar bem preparado.
— Mas Sienna, o comportamento do Hamel não devia ser incentivado. Todas essas armas inúteis são dele, então por que o Molon é quem tem que puxar a carroça?
— Porque eu ganhei na pedra-papel-tesoura.
— Mas isso também não é justo. Por que vocês apostaram quem ia puxar a bagagem num jogo de pedra-papel-tesoura com o Molon?
— Por que você fica me pintando como o vilão? Você acha mesmo que só tem minha bagagem ali? Eu tô vendo um monte de potes da ‘água benta’ que você tanto gosta! E também tem o machado daquele bastardo do Molon! Aquele machado é a coisa mais pesada da carroça!
— Se eu fosse mesmo a única a usar minha água benta, com certeza carregaria tudo sozinha. Mas não é o caso, né? Você e a Sienna, esses dois pestinhas, são sempre os primeiros a cobiçar minha água benta. E além disso, o idiota do Molon sempre faz pedra quando joga pedra-papel-tesoura! Você acha mesmo justo jogar com um idiota desses?
— E a Sienna? Não foi ela quem me chamou pra beber sua água benta com ela? E, pra começo de conversa, a gente nem precisaria arrastar essa carroça se ela simplesmente usasse magia de invocação pra guardar nossas bagagens!
— Por que diabos você tá me culpando se foi você mesmo quem disse que preferia carregar a bagagem porque era difícil pegar as coisas rápido quando precisava delas?!
— Vermouth! Seu filho da mãe, para de ficar calado e fala alguma coisa. Por que você nunca puxa a carroça?
— Nenhuma das minhas armas tá lá.
— Deve ser bom, hein. Magia de subespaço parece uma maravilha mesmo…
— Parece, né? Por isso mesmo que eu disse que você devia me deixar te ensinar magia. Nunca ensinei ninguém antes, mas sinto que teria talento pra isso. Se você se ajoelhar e implorar… b-bem, talvez eu esteja disposta a perder algumas horinhas de sono pra te ensinar umas coisinhas…
Na vida passada, Hamel era frequentemente repreendido por Anise por andar por aí carregando tantas armas.
“Se eu tivesse um manto como esse na vida passada, com certeza não teria sido forçado a ouvir tantas ofensas”, pensou Eugene com nostalgia, enquanto enfiava as mãos no manto e as retirava segurando duas longas lanças com lâminas.
Foi avassalador.
Laman tinha dado alguns passos à frente para ajudar Eugene, mas ficou paralisado ao ver a cena diante de si, sem conseguir avançar mais. E não havia necessidade da ajuda dele. Os mais de vinte Assassinos pareciam um rebanho de ovelhas diante de um lobo, ou melhor, formigas sendo esmagadas sob os pés de uma pessoa.
A Espada Tempestuosa Wynnyd, uma das relíquias do clã Lionheart, nem sequer apareceu, e Eugene também não lançou nenhum feitiço ofensivo de forma ativa. Tirando o uso ocasional do Piscar, sua magia serviu apenas como suporte nos momentos críticos…
Incrédulo com o que via, Laman balançou a cabeça com força.
Eugene estava de pé no centro dos cadáveres espalhados dos Assassinos. Limpando o sangue respingado em sua bochecha, ele observou os arredores. Não havia sequer um Assassino vivo.
Laman se esforçou para encontrar a voz:
— …Realmente era necessário… matar todos eles?
— Eu não tenho talento pra arrancar palavras da boca desses Assassinos — respondeu Eugene, enquanto o vento se movia conforme sua vontade.
As armas que ele havia usado e depois jogado fora flutuaram no ar e retornaram para Eugene. O vento soprou e limpou o sangue e os pedaços de carne que cobriam as lâminas enquanto elas voavam de volta.
— Também não há necessidade de interrogá-los — acrescentou Eugene.
— … — Laman permaneceu em silêncio:
— Além disso, não adianta vasculhar os corpos. Assassinos não carregam nada que possa provar sua identidade.
Depois de guardar todas as armas de volta no manto, Eugene se virou para Laman.
— Você pretende continuar? — perguntou.
— …Hã? — Laman soltou, surpreso.
— Digo, a razão de eu ter te trazido foi pra usar o nome do seu mestre como apoio. Mas esses palhaços parecem desprezar o Emir de Kajitan. Então não há mais motivo pra arrastar você comigo — explicou Eugene.
— …I-isso pode até ser verdade, mas não posso simplesmente voltar assim — Laman gaguejou.
— Por que não? Não precisa se preocupar comigo. Ou é porque você quer confirmar pessoalmente o que está acontecendo? — Eugene perguntou.
— … — o silêncio de Laman já era resposta suficiente.
— Não é como se você fosse ser de muita ajuda… — Eugene hesitou.
Laman tentou convencê-lo, com fraqueza:
— …Prometo tentar não ser um estorvo, meu lorde…
— Tudo bem, faça como quiser. Mas não espere que eu me sinta na obrigação de te ajudar…
A resposta de Eugene se perdeu conforme ele começou a caminhar entre os corpos.
Foi nesse momento.
Rumble rumble!
O deserto tremeu, e a mana na atmosfera oscilou. Eugene sentiu uma quantidade imensa de mana sendo moldada em um feitiço sob seus pés. Imediatamente, usou o Piscar para escapar dali e subiu alto no céu com o vento sustentando seu corpo.
A areia abaixo começou a borbulhar como uma panela fervendo. Os cadáveres dos Assassinos foram cobertos por uma luz vermelha, e Eugene os viu derreterem como gelo. Estavam sendo usados como oferenda. Os olhos de Eugene se arregalaram ao perceber isso.
— Meu lorde! — gritou Laman.
O deserto havia se transformado em um pântano. Mesmo que o chão estivesse firme apesar das rajadas anteriores, em um instante, toda a área havia se convertido em areia movediça.
Enquanto Laman pulava, tentando resistir à força que puxava seus pés, ele gritou para Eugene:
— Por favor, fuja!
Eugene esperava que Laman pedisse ajuda, mas, em vez disso, ele gritou algo totalmente inesperado. Eugene ficou surpreso com o grito, mas não estava numa situação em que pudesse dar atenção a Laman.
O ar rugia com barulho. Diferente dos ventos criados por seus espíritos invocados, outro tipo de vento, antinatural, girava logo abaixo de Eugene. Em pouco tempo, se formou um enorme tornado. Kazani era conhecida por suas tempestades de areia repentinas, mas por mais repentinas que fossem, um tornado de areia que surgia do nada e crescia daquela forma era claramente anormal.
— É m-magia…! — Laman arfou, com o rosto se contorcendo.
Era exatamente como Eugene havia dito antes. A maioria das coisas que alguém desejava que não fossem verdade, acabava se provando verdade. Especialmente quando essas verdades envolviam a revelação de que alguém que você respeitava era, na verdade, um desgraçado. Laman não teve escolha senão admitir isso.
As tempestades de areia de Kazani eram causadas pelos Xamãs da Areia. Isso significava que a tempestade que havia engolido a vila de Laman também fora causada por eles.
— Gaaaaah! — Laman rugiu e sacou seu kukri.
Começou a balançar freneticamente o kukri contra o tornado, que crescia lentamente. Mas, infelizmente, isso era inútil. As habilidades de Laman não eram suficientes para cortar uma tempestade de areia daquele porte.
O mesmo valia para Eugene. Por isso, ele nem tentou. Não queria desperdiçar energia tentando o impossível. Em vez disso, estabilizou-se no ar para não ser arrastado pelo tornado. Os ventos do Siroco não eram fortes o bastante para ajudá-lo a escapar. Só conseguiam sustentá-lo. Seria um Piscar o bastante para sair dali?
Quando estava prestes a tentar, Eugene parou. Algo estava surgindo debaixo da areia movediça. Ainda flutuando, Eugene mudou levemente de posição. Olhou para baixo, onde Laman ainda golpeava o ar com seu kukri, sendo sugado pela areia. Eugene estalou a língua e mandou parte de seu vento em direção a Laman.
— Ugh! — Laman grunhiu, sendo puxado para fora no último segundo.
Laman olhou para Eugene enquanto pedalava no ar. Eugene havia transferido parte do vento que o sustentava para Laman, e agora seu próprio corpo era puxado em direção ao tornado.
— M-meu lorde! — Laman gritou, preocupado.
— Some daqui, seu idiota! — rugiu Eugene, desviando o olhar de Laman.
De qualquer forma, a ajuda do vento não seria necessária para o que Eugene planejava fazer a seguir. Ele reuniu o restante do vento ao seu redor em um único ponto, concentrando sua força para resistir à força do tornado por enquanto. Enquanto isso, começou a descer lentamente em direção ao chão.
Eugene contou:
“Um, dois, três, quatro… agora!”
Kwaaaah!
Algo explodiu para fora do meio da areia movediça. Era um verme de areia com as mandíbulas escancaradas. Não era um verme comum, mas sim um verme gigante, com dezenas de metros de comprimento. Um necrófago que devorava tudo o que pisava no deserto.
— Meu lorde! — Laman gritou em desespero.
— Abre bem essa boca, desgraçado — rosnou Eugene, encarando as mandíbulas do verme.
Ele via milhares de dentinhos triturando sem parar. Atrás deles, a carne exposta se estendia como um corredor sinuoso que levava para dentro do monstro.
— Fiuu… — Eugene respirou fundo e puxou o capuz do Manto das Sombras sobre a cabeça. Em seguida, enfiou as duas mãos no manto e suspirou: — Mesmo sem querer, vou acabar fazendo isso de novo…
Eugene recordou, com relutância, algumas memórias terríveis de sua vida passada que havia tentado reprimir. Eram lembranças de seu tempo no deserto de Helmuth. Os vermes de areia de lá eram ainda maiores e mais ferozes do que os de Nahama.
—Molon, seu retardado do caralho!
Aquele desgraçado era mesmo um completo idiota. Quando a carroça que ele puxava foi engolida inteira por um verme de areia, Molon imediatamente saltou direto nas mandíbulas do monstro, dizendo que iria recuperar seus pertences.
Enquanto todos os outros estavam congelados de choque e confusão, Hamel também correu para dentro das mandíbulas do verme, tentando salvar aquele idiota.
Eugene preferia não lembrar do que aconteceu depois daquilo. Respirou fundo algumas vezes, estremecendo de nojo.
“Ainda tá melhor do que naquela época”, murmurou para si mesmo. “Pelo menos dessa vez eu não preciso salvar o Molon, aquele imbecil.”
O vento do Siroco desapareceu.
Tendo sido arremessado para fora da areia movediça, os olhos de Laman se arregalaram ao ver o verme de areia emergindo das profundezas da terra com as mandíbulas escancaradas.
Ele continuou observando enquanto Eugene era engolido, ou melhor, pulava, nas mandíbulas do verme. Ou, pelo menos, foi assim que pareceu aos olhos de Laman.
— Meeeeeu looorde! — Laman uivou.
“Foi tudo pra me salvar!” Laman caiu em prantos ao pensar nisso.
Eram lágrimas de um guerreiro que devia sua vida a outro! Com um grito de determinação, Laman se lançou do chão com um impulso.
Apesar de Eugene tê-lo lançado para longe do alcance da areia movediça, Laman pegou seu kukri e avançou contra o verme de areia.
A partir daquele momento, a fonte das tempestades de areia já não era mais seu verdadeiro inimigo. Laman havia decidido se dedicar à missão de abrir o estômago daquele verme e resgatar Eugene.
Eugene, é claro, não fazia ideia da súbita determinação de Laman.
“Essa porra fede demais.”
O cheiro era pior que o mau odor do corpo do Gargith. Eugene parou de respirar pelo nariz e se abaixou. Seu escudo de mana robusto e o Manto das Sombras permitiram que passasse pelos dentes do verme e entrasse no esôfago sinuoso da criatura. Então invocou o Siroco mais uma vez, para guiar a direção de sua queda.
Aquele longo e gigantesco verme havia se tornado um corredor vivo que conduzia Eugene até as profundezas da terra. Felizmente, os vermes de areia de Nahama tinham a mesma estrutura interna dos vermes de Helmuth.
Os vermes engoliam praticamente tudo que encontravam caminhando pela superfície do deserto. Primeiro, seus dentes, que cresciam em círculo dentro da boca, mastigavam a presa até que virasse uma massa pastosa. Essa massa descia pelo esôfago, era ainda mais quebrada no estômago, e seguia para os intestinos, onde serpenteava cada vez mais fundo dentro da criatura…
À medida que a comida seguia esse caminho nojento, ela simplesmente se decompunha, sem nunca ser excretada. Aquela desgraça de monstro nem sequer tinha ânus, então não defecava. Era uma criatura com altíssima eficiência energética, que decompunha tudo que comia e convertia tudo em energia.
Ou seja, entrar significava não sair.
O escudo de mana e o Manto das Sombras protegiam Eugene dos sucos digestivos do monstro. Enquanto ainda respirava apenas pela boca, Eugene avaliou sua posição. Percebia que aquele túnel repugnante por onde rastejava estava chegando ao fim.
— Caralho, que fedor — cuspiu Eugene, enquanto puxava Wynnyd.
Fwoosh!
Operando sua Fórmula da Chama Branca até o limite e então girando-a, Eugene a transformou em sua própria Fórmula de Círculos Flamejantes. Dentro do Círculo desenhado por suas Estrelas, inúmeras novas Estrelas nasciam e explodiam. A mana amplificada por esse método fazia suas chamas queimarem com ainda mais força.
A chama branca pura era o símbolo da Fórmula da Chama Branca, mas à medida que a densidade de mana aumentava, a cor da chama de Eugene se tornava algo além do branco. Começava a brilhar com uma luz azul-pálida. Aquilo já não podia mais ser chamado de Fórmula da Chama Branca.
Com os olhos injetados de sangue, Eugene ergueu Wynnyd. Suas chamas de mana envolveram a lâmina, e então o vento emitido por Wynnyd se misturou às chamas. Eugene cravou a espada para baixo, sua lâmina coberta por uma luz azul-pálida.
Squelch!
O som da lâmina penetrando não foi alto.
Mas o corpo gigantesco do verme de areia tremeu violentamente de dor.
Eugene acabara de esculpir um ânus para o pobre monstro que havia nascido sem um.
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