Capítulo 11 — Peça de Xadrez
“Hum?”
Ao contrário do que pensei, a caixa aparentemente não havia nada de mais, senão fosse pela peça de xadrez que havia dentro dela. Observando com cuidado, notei duas coisas, a primeira era que a peça projetava duas sombras, a segunda era que por algum motivo, a luz parecia se fracionar, causando um halo estranho ao redor da peça.
‘O que isso significa?’
Tentei observar com o Espectador da Verdade aquilo por trás da peça, mas imediatamente senti como se minha cabeça fosse explodir. Soltei a peça, ela caiu dentro da caixa. E eu estava exausto. Tanto meu corpo parecia ceder a fadiga quanto minha cabeça doía, como se algo atravessasse ela.
“Chega por hoje…”
Me sentei no chão, ainda zonzo, senti um refluxo crescendo no estômago, subindo pela garganta, tudo o que consegui fazer reagindo foi virar o rosto para o lado e vomitar.
“Ugh, cough, cough, cough.” Reprimi ao extremo o desejo de tossir, enquanto olhava para o lado…
‘Frio… Esfriou…’
Minhas palmas estavam frias, senti calafrios por todo o corpo, enquanto estremecia e ouvia um ruído insistente e chato. Algo parecia que estava apertando o meu cérebro, projetando a dor que sentia. Cada vez mais íntima.
“Cough… cough… chega…” Tossi cada vez mais violentamente, expelindo tudo que tinha na boca, o gosto metálico que se seguiu, me mostrou o sangue que aos poucos também vazava pela boca.
‘O que está acontecendo? O que é isso? Por quê?’
“Blergh!” Uma poça de sangue manchou o chão ao lado, a palma da minha mão direita, junto da roupa, começou a se melecar nesse líquido carmesim. Enquanto pouco a pouco, minha visão ficava ainda mais turva.
O mundo parecia girar em um eixo instável. A dor de cabeça não era comum, não era uma enxaqueca ou uma pancada. E sim, uma dor conceitual. Sentia como se os próprios alicerces da minha consciência estivessem se corroendo.
Como se a minha mente, ao tentar observar a verdade da peça, tivesse tocado em um fio de alta tensão existencial. O Espectador da Verdade era uma ferramenta, mas eu tinha acabado de descobrir, da pior maneira possível, que certas verdades não se devem questionar.
Minha respiração se tornou superficial e rápida. Cada vez que inspirava, fazia um arranhão na garganta. O zumbido se intensificou, se transformando em um som agudo e perfurante, a trilha sonora de um colapso.
‘Eu preciso fazer algo…’
O chão de madeira do palco, antes sólido sob meus pés, parecia ondular como água. As luzes etéreas do teatro começaram a piscar, enfraquecendo e se fortalecendo em um ritmo irregular, como o batimento cardíaco de uma criatura estranha.
No meio da minha agonia, uma nova tela translúcida tremeluzir diante dos meus olhos turvos. Ela era diferente das outras, suas letras pulsavam com urgência, um vermelho alarmante.
『AVISO: SOBRECARGA』
[Causa]
➣ Tentativa de observar um Objeto Superior com uma habilidade de percepção de baixo nível.
[Efeito]
➣ Degradação da integridade da alma (constante).
➣ Falha sensorial.
➣ Colapso da forma física.
As palavras flutuavam ali, como uma sentença mortal. Degradação da alma. Não era apenas morrer. Era deixar de ser, ser apagado. O medo, mais primordial e gelado que os calafrios que percorriam minha espinha, tomaram conta de mim.
Esse era um resultado que eu não podia aceitar.
‘Se move porra!’
Com o último resquício de vontade, arrastei a minha mão esquerda, em direção à caixa. Meus dedos tremiam em espasmos incontroláveis, deixando um rastro trêmulo na poeira do palco.
Eu precisava tocar na peça novamente. Não para a entender, mas como um náufrago se agarrando em um pedaço de madeira. Era a causa do meu estado, mas também a única coisa neste teatro que parecia diferente.
‘Só mais um pouco… Isso…’
Minha mão finalmente alcançou a caixa e meus dedos tocaram a peça de xadrez. No instante do contato, uma sensação íntima e nova me percorreu. Não era a dor abrasadora de antes.
Como uma realidade inquestionável. A peça estava fria ao toque, um frio denso e pesado, como o de uma rocha no fundo do oceano. E vibrava. Uma vibração sutil, quase imperceptível, uma frequência baixa e constante que parecia ressoar diretamente em mim.
“A-aí, es-está…” Agarrei a peça, fechando minha mão ao redor dela. O peão. Simples e pequeno. Coberto por toda minha palma, estilhaçou a tela de aviso à minha frente, em mil fragmentos de luz, até desaparecer.
O zumbido agudo em meus ouvidos diminuiu para um murmúrio baixo e a dor lancinante em minha cabeça recuou para uma dor latejante e suportável. O sangue parou de vazar.
A peça não havia me curado, claro. Ela apenas me ancorou. Se o teatro era um sonho, a peça era um pedaço do mundo real. A segurar era como segurar um para-raios no meio de uma tempestade estranha.
Ela absorvia a instabilidade, me dando um ponto de referência para que minha própria existência não se dissolvesse. Minha consciência, pelo contrário, ainda estava no limite.
“Nunca procure observar a verdade de todas as coisas…” repeti, gaguejando, enquanto inspirava e soltava repetidas vezes.
O alívio da dor iminente foi substituído por uma exaustão avassaladora, um peso que puxava minhas pálpebras para baixo. O teatro ao meu redor começou a se comportar de uma maneira mais estranha. As luzes piscavam com mais violência e, pela primeira vez, ouvi um som que não vinha de mim.
Um rangido longo e coletivo.
Creek— Creaak—
Com um grande esforço virei a cabeça para a plateia. O mar de manequins brancos não estavam mais perfeitamente imóveis. Suas cabeças. Todas elas. Haviam se virado em minha direção.
Seus rostos lisos e sem feições estavam agora apontados para mim no palco, como girassóis macabros seguindo um sol moribundo. A realidade da provação, sem um roteiro e com sua anomalia principal em colapso, estava se tornando instável.
‘Puta merda… Por que nada nunca é fácil?’
Os manequins estavam reagindo à minha fraqueza. E eu não conseguiria lutar. A escuridão nas bordas da minha visão engoliu tudo. Minha mão, ainda firme no peão, relaxou ao meu lado.
Meu último pensamento consciente? Uma mistura de terror e estranha clareza. Eu era o pilar que mantinha a ilusão coerente, e pouco a pouco, eu estava desmoronando.
A escuridão que me tomou não era um simples apagar de luzes. Era uma transição sensorial. O som do rangido dos manequins se distorceu, se transformando em um chiado longo e úmido, como o som de tecido sendo rasgado debaixo d’água.
A sensação da madeira do palco sob meu corpo se foi, substituída por um nada frio e suspensivo. Eu não estava em queda livre, mas também não estava apoiado em nada. Apenas flutuava em um limbo sem forma.
‘Novamente… Mesma situação… circunstâncias parecidas…’
Minha consciência era como uma brasa fraca. Não sentia meu corpo, não sentia dor, mas apenas a presença sólida e fria do peão em minha mão. Era a única certeza, o único ponto fixo em um universo que se desfazia.
O rangido deu lugar a um som borbulhante, um murmúrio líquido que parecia vir de todos os lugares e de lugar nenhum ao mesmo tempo. Aos poucos, minha percepção retornou, mas não ao que era antes.
‘Bom, talvez eu tenha uma dádiva de ser jogado para lugares que eu nunca tenha visto antes…’
Não havia teatro, nem palco, nem manequins. A escuridão começou a ganhar textura. Não era mais a ausência de luz, mas uma substância. Ondulações visuais começaram a surgir. Cores, desprovidas de qualquer brilho.
‘Hum?’
Um preto oleoso, espesso como piche, se espalhava lentamente. Um branco estranho, com a consistência de tinta fresca, fluía em sentido contrário. E, entre os dois, um cinza neutro, como fumaça densa aprisionada em um líquido, preenchia os espaços vazios.
As três cores não se misturavam completamente, em vez disso, dançavam uma em torno da outra, criando padrões hipnóticos e transitórios em uma superfície infinita. Abri os olhos, ou talvez tenha apenas decidido ver.
‘Tinta? De novo?’
Eu estava deitado, sob essa mesma superfície, um chão que era e não era um chão, feito dessas três cores em constante movimento. O ar não tinha cheiro nem temperatura. O silêncio aqui reinava, enquanto o som borbulhante de antes cessou.
Retrai meu olhar para minha mão, percebi que o peão ainda estava ali, um objeto tingido de um preto opaco, em contraste com o mundo ao meu redor. Minha exaustão havia passado, substituída por uma estranha sensação de vazio.
‘E lá vamos nós para mais um ciclo de estranhezas…’
Eu estava curado? Não. Apenas diferente. Me levantei devagar. Meus movimentos eram leves, sem esforço. O chão ondulava sob meus pés, mas minha estabilidade era perfeita. Não existia peso. Não existia um horizonte. Apenas uma planície infinita de tintas giratórias.
‘Espera, o que é isso?’
Foi então que notei um ponto de convergência. A alguns metros de mim, os fluxos de preto, branco e cinza começaram a se agitar com mais intensidade. Eles se acumulavam, formando um redemoinho lento, uma pequena tempestade de cores monocromáticas.
A tinta começou a subir, a se erguer da superfície como uma fonte de mercúrio. A massa líquida se moldou, ganhando altura e forma. Primeiro, o torso, depois, braços longos e finas, e por fim, uma cabeça sem traços definidos.
‘É como uma silhueta humanoide, mais ou menos da minha altura, mas composta por aquela composição de tintas que se recusavam a se fundir… É estranho de se olhar.’
Dentro de seu corpo, o preto, o branco e o cinza giravam em um balé silencioso e perpétuo. Como uma obra de arte viva e abstrata, que irradiava uma inteligência fria e calculista.
Não tinha olhos em seu rosto, mas eu sentia seu foco em mim. Mais especificamente, no peão em minha mão. A criatura ergueu um de seus braços fluídos. A tinta em sua mão se estendeu em direção ao chão.
“Uh?”
Com um gesto suave, ela traçou um quadrado perfeito na superfície. E então outro, e mais outro. Em segundos, um tabuleiro de xadrez completo foi desenhado no chão, entre nós dois, as casas alternando entre o preto oleoso e o branco vazio do próprio chão, que se solidificou naquela área.
‘Por que ela está fazendo isso?’
A criatura não parou, senti uma pitada de precipitação. Mas, de sua própria substância, ela gotejou pequenas porções de tinta sobre o tabuleiro. As gotas se solidificaram instantaneamente, se transformando em peças de xadrez.
Um conjunto completo de peças brancas se formou do seu lado do tabuleiro, e um conjunto de peças pretas, do meu lado. Eram perfeitas, mas também fluídas. Tudo parecia pronto. O tabuleiro. As peças. E um oponente.
‘Espera, que peças são essas?’
De fato, parecia ser xadrez, entretanto, havia algo a mais. Por que os peões têm essas ‘auréolas’ de luz?
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.