O Semente do Caos deslizou pelas águas escuras e espessas como óleo que cercavam Hearts, não como um navio, mas como uma sombra prestes a ser engolida por uma garganta de pedra. O paredão colossal não se erguia do mar; ele emergia dele, uma falésia viva talhada pelo tempo e pela mão esquecida de gigantes em rocha basáltica negra. Era menos uma cidade, mais uma fortaleza monolítica esculpida na própria ossatura do mundo. Cavernas enormes, bocas úmidas e escuras, fungavam a água salgada, servindo de portos naturais. Fendas estreitas e túneis labirínticos guiavam os navios por entre estalactites gotejantes e pilares de rocha cobertos de musgo negro e líquenes luminescentes que emitiam um brilho fantasmagórico verde-azulado. O ar dentro da primeira caverna era frio, pesado, e cheirava a pedra molhada, sal podre e uma ferrugem ancestral que parecia sangrar das paredes. O silêncio era opressivo, quebrado apenas pelo eco distorcido das ondas batendo contra o casco e o rangido inquieto do Semente, como se o navio vivo se sentisse claustrofóbico.

    Nix permaneceu na proa, os dedos brancos agarrados ao parapeito de osso de kraken. Seus olhos turquesa, ampliados pelas lentes dos óculos, percorriam as sombras profundas que se fechavam ao seu redor. A luz do dia morria rapidamente à medida que avançavam para o coração da montanha. Panacéia, ao seu lado, fumava seu cachimbo de prata, a fumaça azul-turquesa formando figuras de serpentes marinhas que se dissipavam contra a umidade. Vênus estava tensa, uma mão no punho de sua faca, os olhos vermelhos varrendo as fendas altas nas rochas. Madoc, ao leme, manobrou com precisão sobrenatural, seu rosto uma máscara de concentração, os olhos obsidiana refletindo as luzes fracas como espelhos negros. Hugo, ainda pálido e com as asas imobilizadas, estava amarrado perto do mastro, seus olhos azuis escrutinando cada movimento de Madoc com intensidade febril.

    — Parece a garganta de um titã adormecido — murmurou Vênus, um calafrio percorrendo sua espinha.

    — E nós somos o aperitivo — completou Nix, sua voz ecoando estranhamente nas paredes de pedra.

    O navio atracou com um baque surdo contra um cais de pedra áspera, esculpido diretamente na base da caverna. A penumbra era cortada por tochas fumegantes presas em suportes de ferro enferrujado, lançando danças de sombras grotescas nas paredes. O silêncio, antes opressivo, tornou-se absoluto. Até o rangido do Semente pareceu conter a respiração.

    Então, as sombras se moveram.

    Figuras surgiram das fendas laterais e de trás de pilares rochosos, silenciosas como fantasmas. Eram soldados de Hearts, mas como nenhum que Nix já tivesse visto. Suas armaduras eram de placas sobrepostas de um metal negro fosco, sem brilho, cravejado de espinhos curtos que lembravam escamas de dragão. Capuzes negros cobriam seus rostos, deixando visíveis apenas olhos frios e impessoais por fendas estreitas. Empunhavam alabardas longas com lâminas serrilhadas que refletiam a luz das tochas de forma ameaçadora. Moviam-se com uma disciplina feroz, cercando o navio em segundos, bloqueando todas as saídas do cais.

    Um homem separou-se do grupo, avançando com passos que ecoavam como martelos na pedra. Era alto, mais alto que Madoc, com ombros largos que preenchiam a armadura negra como a noite. Seu capuz estava recolhido, revelando um rosto talhado em granito – queixo quadrado, nariz quebrado, cicatrizes cruzando uma testa ampla. Cabelos grisalhos, curtos e em desalinho. Seus olhos, da cor de aço temperado, percorreram o Semente do Caos com desconfiança palpável antes de se fixarem em Nix.

    — General Lucas — apresentou-se, a voz um rugido baixo que preenchia a caverna. — Comandante da Guarda do Portão de Obsidiana. Identifiquem-se e declarem sua carga. Hearts não dá as boas-vindas a piratas ou traficantes de sonhos proibidos.

    O termo “piratas” caiu como uma pedra. Nix sentiu o sangue gelar. Vênus rosnou baixinho. Panacéia baixou seu cachimpo, os olhos vermelhos estreitados. Madoc permaneceu impassível, mas seus dedos se apertaram no leme. Hugo encolheu-se.

    Nix engoliu em seco, forçando-se a manter a voz firme.

    — Capitã Nixoria, do Semente do Caos. Não somos piratas, General. Somos transportadores. Mercenários, se preferir.

    Lucas soltou um grunhido que poderia ser uma risada ou um aviso.

    — Mercenários? Em um navio vivo de Spades? Com essa aparência? — Seu olhar desdenhoso percorreu as roupas remendadas da tripulação, o casco pulsante do navio, Hugo amarrado. — Parecem mais com foras-da-lei recém-saídos de uma briga de taverna. Hearts está em estado de alerta máximo. O Templo da Lua pressiona nossas fronteiras, e espiões se infiltram como ratos. — Ele fez um gesto brusco. — Revistem o navio. Todo mundo fora. Agora.

    Os soldados avançaram, suas alabardas apontadas. A situação deslizava rapidamente para o desastre. Nix calculou suas chances. Lutar significaria morte certa. Fugir, impossível. Panacéia começou a sussurrar, preparando-se para algo, mas Nix a deteve com um olhar. Não era hora de magia proibida.

    Foi então que uma voz familiar, calorosa e cheia de uma autoridade inesperada, ecoou das profundezas de um túnel lateral.

    — General Lucas! Um momento, por favor!

    Todos se viraram. Echo emergiu da penumbra como um raio de sol em um dia nublado. Ele estava diferente. Mais magro, com linhas de preocupação ao redor dos olhos verdes brilhantes como jade, mas ainda com a mesma postura orgulhosa. Seu cabelo estava trançado com mais complexidade, intercalado com pequenos sinos de prata que tilintavam suavemente a cada passo. Vestia túnicas de tecidos ricos, embora práticos, em tons de terra e azul, bordados com padrões geométricos que lembravam asas de dragão. Mas o que mais chamou a atenção foi a criatura empoleirada em seu ombro direito: um pequeno Jia, não maior que um gato, com escamas iridescentes que mudavam do verde-esmeralda ao azul-cobalto sob a luz das tochas. Olhos dourados, inteligentes e alertas, observavam tudo. Era Nino, mas crescido, mais imponente. O pequeno dragão soltou um assobio agudo e curioso ao ver Nix.

    — Echo? — Nix sussurrou, incredulidade e um alívio avassalador misturando-se em seu peito.

    Echo ignorou os soldados, caminhando diretamente até o general Lucas, um sorriso confiante nos lábios, mas seus olhos transmitiam urgência.

    — General, peço desculpas pela confusão. Estes são os mercenários que contratei para a missão de escolta. Chegaram um pouco… avariados, como pode ver, após um encontro desagradável com piratas de Spades na travessia. — Sua voz era calma, convincente, carregando o peso de quem estava acostumado a negociar com poderosos.

    Lucas franziu o cenho, os olhos de aço estudando Echo, depois Nix, depois o navio. — Mercenários? Para que missão, líder Echo? Os Jïa têm suas próprias guardas.

    — Normalmente sim, General — Echo concordou, inclinando a cabeça respeitosamente, mas sem baixar a guarda. — Mas a carga desta vez é demasiado preciosa. E o caminho até o Berçário das Chamas tornou-se… perigosamente incerto. Preciso da melhor proteção disponível para este pequeno grupo de jovens aprendizes Jïa que devem receber seus companheiros Jia. — Ele fez um gesto amplo em direção ao túnel, onde algumas figuras jovens e ansiosas, vestidas com roupas coloridas, espreitavam timidamente. — O Semente do Caos e sua tripulação têm reputação de eficiência e… discrição. Exatamente o que necessito.

    O general Lucas pareceu ponderar. Seu olhar desconfiado ainda pairava sobre Nix e seu navio pulsante, mas o respeito por Echo, claramente uma figura de importância entre os Jïa, era evidente. Além disso, a menção ao “Berçário das Chamas” – um local sagrado e crucial para Hearts – pesou na balança.

    — Mercenários… — ele resmungou, como se a palavra fosse amarga. — Hearts tolera mercenários como tolera ratos no porão: apenas quando são úteis e ficam fora de vista. — Fixou Nix com um olhar penetrante. — Você tem três dias, Capitã Nixoria. Três dias para concluir seu contrato com o líder Echo e zarpar. Se for vista causando problemas, ou se esse navio vivo fizer qualquer coisa que não seja flutuar obedientemente… — Ele não precisou terminar. A ameaça pairou no ar frio. — Registrem seus nomes com o escriba. E mantenham-se longe dos distritos centrais.

    Com um gesto brusco, Lucas ordenou que seus homens recuassem, formando um corredor apertado entre eles. O alívio que tomou conta da tripulação foi quase físico. Nix soltou o ar que não sabia estar prendendo.

    Echo caminhou até a prancha de embarque, seu sorriso finalmente alcançando os olhos ao encontrar o olhar de Nix. Nino assobiou alegremente, saltando do ombro de Echo para o parapeito do navio, esticando o pescoço para farejar os dedos de Nix.

    — Echo — Nix respirou, os lábios curvando-se num sorriso verdadeiro pela primeira vez em dias. — Pelo céu das serpentes… olha só quem sobreviveu ao mar e à burocracia de Hearts.

    Echo riu, um som rico e quente que afastou um pouco do frio da caverna. — Nix! A tempestade ambulante! Deveria saber que só você comandaria um monstro tão belo. — Ele abriu os braços.

    O abraço foi forte, envolvente, cheio da história compartilhada de infância nas cavernas livres de Spades. Era familiar, seguro. Nix enterrou o rosto no ombro dele por um breve instante, respirando o cheiro de especiarias, sol e pele que era puramente Echo. Sentiu o coração acelerar, não só pelo alívio, mas por algo mais quente, mais profundo, que sempre pairara entre eles, nunca totalmente declarado. Ele a segurou um pouco mais tempo do que o necessário, suas mãos firmes em suas costas.

    — Ele lembra de mim? — Nix perguntou, afastando-se um pouco e acariciando a cabeça escamosa de Nino. O pequeno Jia esfregou-se contra sua mão, soltando um ronrono vibratório.

    — Nino lembra de tudo — Echo respondeu, orgulhoso, seus olhos verdes cintilando. — Inclusive da vez que você tentou dar rum pra ele achando que ia fazê-lo soltar fogo.

    — E eu ainda acho que funcionaria! — Nix riu, o som ecoando nas paredes de pedra.

    — Com você, qualquer loucura parece possível — Echo retrucou, o olhar suave, carregado de uma admiração que ia além da amizade. — Mas não devias estar aqui, Nix. Hearts não é Spades. Os olhos do Templo da Lua estão por toda parte… e os rumores sobre a “Filha do Caos” chegaram até aqui. O preço pela tua cabeça poderia comprar um ducado.

    O sorriso de Nix murchou.

    — Bom, Você me enviou uma carta, vim porque estranhei meu pai não conseguir leva-los. E porque… — Ela hesitou, os olhos turquesa encontrando os dele. — Porque precisava saber que você estava vivo. Tudo bem.

    Echo segurou seu olhar, uma tempestade de emoções passando por seu rosto: preocupação, carinho, medo.

    — Eu também, Nix. Sempre. Mas agora… — Ele fez um gesto em direção ao túnel. — Precisamos falar. Longe de ouvidos indesejados. E tu precisas conhecer o grupo. São bons jovens, mas assustados.

    Eles desceram do navio, seguidos por Vênus e Panacéia, enquanto Madoc ficou para trás, supervisionando os soldados de Lucas que inspecionavam o casco com desconfiança. Hugo, ainda sob guarda, observava Echo com curiosidade. Echo conduziu o grupo por um túnel lateral, mais estreito e íntimo, iluminado por fungos luminescentes que pintavam as paredes de azul e verde. O ar ficou mais quente, carregado do cheiro de ervas secas e pão fresco. Logo, o túnel desembocou em uma câmara ampla, uma praça natural no coração da rocha.

    Era um oásis de cor e vida no ventre cinza de Hearts. Tendas coloridas de seda e lã estavam armadas, formando uma praça de mercado improvisada. Tapetes intricados cobriam o chão de pedra. Jovens Jïa – alguns com seus próprios Jia pequenos empoleirados nos ombros ou dormindo enrolados em seus pescoços – conversavam, teciam, tocavam flautas de osso ou praticavam pequenas chamas controladas sob o olhar atento de anciãos. O som era um zumbido alegre de vozes, risos e o tilintar suave de sinos e joias. O contraste com a frieza militar de fora era chocante.

    — Irmão! — uma garotinha com tranças e um minúsculo Jia vermelho no colo correu até eles. — Trouxe as sementes de fogo para o Nino?

    Echo sorriu, acariciando a cabeça da menina.

    — Trouxe, Elena. Mas primeiro, apresento-vos a Capitã Nixoria, uma velha amiga que veio nos ajudar.

    Nix sentiu um nó na garganta ao ver a inocência e a confiança nos olhos daquelas crianças. Elas não faziam ideia da tempestade que se aproximava. Echo a levou para uma tenda mais afastada, forrada com tapetes grossos e almofadas. Serviram chá quente e amargo em pequenas xícaras de cerâmica. Panacéia e Vênus ficaram do lado de fora, conversando com os anciãos.

    — Echo, o que tá realmente acontecendo? — Nix perguntou, segurando a xícara com as duas mãos, buscando calor. — Por que estão atrás de vocês?

    Echo bebeu um gole de chá, seu rosto ficando sério, as linhas de preocupação aprofundando-se. A luz suave da tenda acentuava a fadiga em seus olhos.

    — A fé, Nix… a fé nos Deuses Antigos, nas forças primordiais que equilibraram os Devaneios… está morrendo — começou ele, a voz baixa e grave. — Impérios como Diamond e Hearts ergueram novos deuses de metal e fogo, de ordem e controle. O Templo da Lua viu isso… como uma ameaça e uma oportunidade.

    — Oportunidade? — Nix franziu o cenho.

    — Eles dizem ter encontrado um artefato. Um catalisador antigo, poderoso. Algo que supostamente pode… trazer de volta a deusa deles. Sua essência, seu poder. — Ele fez uma pausa, o peso das palavras pairando no ar. — O problema, Nix, é onde esse artefato está. Está guardado na Tumba do Sol. O nosso lugar mais sagrado. O lugar onde dizem que o primeiro Sol tocou a terra.

    Nix sentiu um frio percorrer sua espinha.

    — A cidade Jïa… O berço das chamas.

    Echo assentiu, seu olhar cheio de dor. — Sim. E nós a protegemos com nossas vidas. É nosso coração, nossa história. Mas… — Ele engoliu em seco. — … mas fomos atacados. Há duas luas. Forças do Templo, disfarçadas de mercenários, mas com equipamento e magia negra de Érebo. Foi rápido, brutal. O velho líder… Meu pai morreu defendendo os portões sagrados. Muitos bons guerreiros caíram. — Sua voz falhou por um instante. — Mal sobraram adultos capazes de lutar. Conseguimos evacuar as crianças, as mulheres e os anciãos primeiro. Chegaram aqui, a Hearts, sob asilo temporário. O resto de nós… os que sobreviveram… estão lá. Lutando. Retardando o inevitável. Morfeus… — Ele viu a pergunta no olhar de Nix. — … teu pai está lá, Nix. Liderando a resistência ao lado do que restou dos nossos melhores. Ele está vivo. Mas a situação é desesperadora.

    Nix fechou os olhos, uma onda de alívio e terror a inundando. Seu pai estava vivo. Mas preso em um cerco.

    — E o Templo? Eles simplesmente invadiram?

    — Eles disfarçam de “missão divina”. Dizem que o artefato pertence à sua deusa, que foi roubado. Que estão apenas “recuperando o que é sagrado”. — O tom de Echo era carregado de amargo desprezo. — Mas no fundo, é invasão pura. Eles querem o poder do artefato. Querem apagar nossa fé, reescrever a história com sangue e espada. Querem provar que seu novo deus é o único verdadeiro, erguido sobre as ruínas do Sol. A tensão aqui em Hearts é palpável. Lucas e outros como ele desconfiam, mas o poder do Templo cresce, infiltrando-se como trepadeira venenosa. Elena… — Ele olhou para a entrada da tenda, onde a garotinha brincava com seu Jia. — … ela deveria receber seu companheiro Jia no próximo festival, depois do seu aniversário. Se ainda estivermos aqui. Se a Tumba do Sol ainda existir.

    O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado do cheiro do chá amargo e do desespero silencioso. Nix olhou para Echo, vendo não apenas o amigo de infância, mas o líder carregando o peso de um povo à beira da extinção. Viu a força nele, mas também a vulnerabilidade. O carinho que sempre sentira por ele transformou-se em algo mais profundo, mais agudo – uma mistura de admiração, proteção e uma atração que a confusão do momento não conseguia apagar.

    — Eu não queria te envolver nisto, Nix — Echo murmurou, sua mão encontrando a dela sobre o tapete. Seus dedos eram calejados, marcados pela luta, mas o toque foi suave, quente. — É uma guerra perdida.

    Nix virou a mão, entrelaçando seus dedos com os dele. A conexão foi elétrica, um porto seguro na tempestade.

    — Já estou envolvida, Echo. Desde o momento em que o Templo decidiu que eu era sua inimiga. Desde o momento em que colocaram o preço na minha cabeça. — Seu olhar era de aço. — E se tem uma coisa que aprendi com o caos que carrego… é que fugir só adia o inevitável. Às vezes, você tem que ser a tempestade.

    Echo segurou seu olhar, uma centelha de esperança acendendo-se em seus olhos verdes, misturada a um profundo afeto. Ele apertou sua mão.

    — Você sempre foi a tempestade mais linda e assustadora que já vi, Nixoria. — Um sorriso triste tocou seus lábios. — E eu sempre fui tolo o bastante por querer ficar ao teu lado.

    — Burrice é uma das suas melhores qualidades — Nix retrucou, um leve sorriso tocando seus lábios. Nino, que observava de um canto, assobiou baixinho, como se concordasse.

    O momento de conexão foi interrompido por Vênus entrando na tenda.

    — Capitã, Madoc está procurando por ti. E o prisioneiro… o Homem-Corvo… ele está agitado.

    Nix assentiu, soltando a mão de Echo com relutância. O mundo exterior, com seus perigos e segredos, chamava.

    — Vamos. Preciso lidar com nosso “convidado”. Depois, Echo, precisamos de um plano. Para a Tumba do Sol.

    Enquanto Nix e Vênus saíam, Echo ficou para trás por um momento, seu olhar seguindo Nix, uma mistura complexa de alívio, temor e amor não dito em seu rosto. A tempestade havia chegado, e seu coração estava no olho dela.

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    O ar na pequena cabine que servia de cela improvisada para Hugo era denso e carregado do cheiro de medo, ferrugem e sal. Uma única lâmpada a óleo de baleia tremeluzia, lançando sombras dançantes nas paredes de madeira úmida. Hugo estava sentado no chão, as asas quebradas e enfaixadas mantidas rigidamente contra as costas por um suporte de madeira rústico que Panacéia improvisara. Sua máscara prateada fora removida, revelando um rosto jovem, retinto, marcado por olhos azul-celeste que brilhavam com uma mistura de dor, ódio e… uma curiosidade obsessiva. Ele fitava a porta.

    A porta se abriu. Não foi Nix quem entrou. Foi Madoc.

    O navegador entrou silenciosamente, fechando a porta atrás de si. A cabine parecia encolher com sua presença. Ele ainda vestia a camisa rasgada no ombro, onde as garras de Hugo haviam deixado marcas vermelhas e profundas agora cobertas por uma bandagem improvisada. Seus olhos obsidiana, sempre impenetráveis, pareciam ainda mais escuros, mais frios, na luz fraca. Ele não disse nada. Apenas ficou parado, observando Hugo, sua respiração calma, controlada, em contraste gritante com a respiração ofegante do prisioneiro.

    Hugo foi o primeiro a quebrar o silêncio, sua voz saindo rouca, desafiadora, mas com um fio de tensão:

    — Já checou se o navio não rangeu por minha causa de novo, navegador?

    Madoc não reagiu ao tom provocativo. Seus olhos eram como dois poços sem fundo.

    — O navio range quando sente ameaça — respondeu ele, a voz plana, sem emoção. — E você, passarinho quebrado, ainda é uma.

    Hugo forçou um sorriso torto, mostrando dentes brancos.

    — Talvez. Mas eu não sou a única ameaça a bordo, sou?

    Madoc permaneceu imóvel, um bloco de granite.

    — Eu me lembrei de você, sabia? — Hugo continuou, o desafio dando lugar a uma insistência quase febril. Ele se apoiou na parede, tentando se levantar, mas a dor nas asas o fez recuar com um grunhido. — Demorou, com a dor e o remédio da dragoa… mas a memória voltou. Você é o Exilado. O grande Madoc. O único que ousou dizer ‘não’ a Lafaiete. O único que se recusou a estrangular uma criança porque a ‘ordem’ dizia que ela era uma ameaça futura. — Seus olhos azuis perfuravam Madoc. — É verdade, não é? Você enfrentou os Superiores. Desafiou toda a cadeia de comando de Érebo por um princípio. Eu… eu ouvi as histórias. Nos bastidores. Sussurradas como lenda. Eu te admirava.

    Madoc continuou em silêncio, mas um músculo pulsou em sua mandíbula. Suas mãos, penduradas ao lado do corpo, fecharam-se lentamente em punhos.

    — E agora… — Hugo prosseguiu, a voz baixando para um sussurro conspiratório, carregado de uma mistura perigosa de admiração e acusação. — … agora o rumor é que Lafaiete te fez uma proposta. Que você pode voltar. Que tudo seria perdoado, esquecido… se você trouxesse a cabeça da Filha do Caos. Da Nix. — Ele inclinou-se para frente, o olhar intenso. — É verdade? Você está de volta ao jogo? É por isso que está aqui? Para matá-la?

    O silêncio que se seguiu foi mais denso que a água no fundo do oceano. A lamparina crepitou. A sombra de Madoc na parede pareceu crescer, tornando-se monstruosa. Então, ele se moveu.

    Não foi um ataque. Foi um deslocamento. Um passo fluido, rápido demais para os olhos seguirem. Um instante, ele estava perto da porta; no seguinte, estava agachado diante de Hugo, sua mão direita – grande, forte, com a pele áspera como lixa – fechada como uma tenaz em torno da garganta do jovem assassino.

    Hugo arqueou as costas, um guincho estrangulado escapando de seus lábios. Seus olhos arregalaram-se de terror puro, genuíno, substituindo toda a bravata. Ele tentou se debater, mas as asas quebradas o travavam, e a força naquela mão era absoluta, esmagadora. Ele foi erguido como um boneco de pano, suas botas raspando no chão.

    Madoc o segurou assim, com um braço só, a poucos centímetros de seu rosto. Seus olhos obsidiana, agora acesos com uma fúria gélida e assassina que Hugo nunca imaginara possível, queimavam como brasas negras.

    — Você fala demais, passarinhos — a voz de Madoc saiu como um sussurro raspado, uma lâmina sendo arrastada sobre osso. Cada palavra era um estalo de gelo. — Palavras soltas no vento… podem cortar asas. Ou pescoços. — Ele apertou, não o suficiente para esmagar, mas para fazer Hugo sentir cada grama de sua mortalidade, para fazê-lo engasgar com o próprio ar. — O que acontece entre mim e a Capitã… — Ele inclinou-se, seu hálito quente e perigoso batendo no rosto de Hugo, — … não é da sua conta. É um assunto entre predadores. — O desprezo na palavra era venenoso. — Mantenha seu bico fechado. Enterre suas memórias. Esqueça o que pensa que sabe. — Ele apertou um pouco mais, fazendo Hugo tossir, os olhos começando a revirar. — Ou juro pelas correntes mais profundas que te levarei até o convés, quebrarei o resto dessas asas inúteis, e te jogarei nas águas mais negras que encontrar. E assistirei enquanto os pesadelos que habitam o fundo rasgam pedaços de você antes de te afogarem. Está claro, criatura?

    Hugo não conseguia falar. Não conseguia respirar direito. Ele tentou acenar com a cabeça, um movimento minúsculo e desesperado. Os olhos suplicavam. Todo o ódio, a admiração pervertida, a curiosidade – tudo se dissolveu no terror primordial diante da morte.

    Madoc segurou-o por um segundo eterno, aquele olhar negro consumindo a alma de Hugo. Então, abriu a mão.

    Hugo caiu no chão como um saco de carne, uma barulho seco de dor escapando pela boca, ofegando, as mãos indo instintivamente para a garganta onde os dedos de Madoc haviam deixado marcas vermelhas e profundas. Ele tossiu violentamente, o corpo tremendo de choque e medo.

    Madoc ficou de pé sobre ele, uma silhueta imponente contra a luz fraca. Não parecia um homem. Parecia uma força da natureza. Um tubarão em águas rasas.

    — Sim ou não? — a voz de Madoc cortou o ar, implacável.

    — S-sim! — Hugo conseguiu engasgar, a voz um fio de terror. — C-claro!

    Madoc olhou para ele com desprezo absoluto.

    — Boa escolha. — Ele se virou, abrindo a porta. A luz do corredor iluminou seu perfil por um instante, duro como a rocha de Hearts. — Durma bem, passarinho. Sonhe com o fundo do mar.

    A porta se fechou atrás dele, deixando Hugo sozinho no escuro que parecia agora infinitamente mais escuro, mais frio. Enrolado no chão, ofegando, sentindo a dor nas asas e o terror na alma, Hugo chorou. Não de dor física, mas da terrível compreensão de que estava preso num navio com um demônio, e que o segredo que ele guardava poderia matá-lo mais rápido que qualquer flecha do Templo. O mar aberto nunca parecera tão vasto, nem tão implacavelmente hostil.

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