Capítulo 14 - Entre números e palavras.
POV: HELENA IVYRA.
O tempo parou.
Minha respiração tornou-se curta, quase inexistente.
Era como se o ar do hospital estivesse mais denso, como se as paredes se fechassem lentamente ao meu redor, sufocando-me, comprimindo meu peito até que eu não pudesse mais sustentar meu próprio peso emocional.
“Rose não sobreviveu.”
As palavras de Noah flutuavam pela minha mente como uma sentença inescapável.
Aquela combinação de sentidos era simples, porém, ao mesmo tempo, uma semântica cujo significado eu não queria aceitar.
Na verdade, eu queria negar com todas as minhas forças.
Queria que apenas a minha resistência fosse suficiente para fazer a realidade se ajustar a ela… Contudo, eu sabia que, por mais que eu quisesse isso, não poderia.
Por mais que tentasse negá-las, por mais que minha alma se contorcesse num grito silencioso de negação, algo em mim já sabia que era verdade.
Eu sentia.
Sentia o vazio. A ausência. O frio.
As lágrimas começaram a cair.
Pesadas, quentes e silenciosas.
Molhavam o lençol branco como se quisessem apagar uma verdade que jamais poderia ser desfeita.
Como uma borracha tentando apagar um traço de caneta…
Eu não soluçava. Não gritava. Só chorava.
Quietamente…
Entendendo que infelizmente, aquilo era verdade. Breves flashes daquela memória em que ela me acordará na biblioteca quando eu era menor.
“Sempre tão paciente… por que tinha que acabar assim?”
Minha indignação fluia junto com o meu inconformismo.
Rose não era apenas alguém que eu considerava uma tia…
Ela era um farol.
Uma daquelas pessoas raras que nos fazem sentir em casa mesmo quando o mundo parece um campo de batalha.
Quando cheguei à cidade há vários anos, não conhecia ninguém, nem nada.
Eu era uma criança perdida, deslocada. E ela foi uma das primeiras pessoas a me estender a mão.
Ela me ouviu. Me viu. Me entendeu. E agora, tudo o que restava dela era uma lembrança.
“Como é que toda a vida de uma pessoa pode ser simplificada para apenas algo assim tão rápido, tão simples?”
E foi então que Noah, como se tudo isso não bastasse, disse o que eu jamais imaginaria ouvir naquele momento:
— Me escute, Helena… Entendo que o que você deve estar passando agora é bem ruim. Perder uma pessoa querida é sempre complicado… mas preciso que mantenha a calma — disse ele com cautela.
Fiquei levemente revoltada com o pedido.
Eu acabara de descobrir que uma pessoa que tinha uma grande importância havia morrido… e ele me pedia para manter a calma?
— Como pode me pedir isso agora? — questionei com incredulidade.
— Porque preciso da sua ajuda — respondeu ele, com um tom mais firme. — É necessário para irmos atrás de H e fazer justiça pelo que ocorreu com Rose.
Eu entendia o lado dele, mas ainda assim, decidi questionar aquilo que martelava em minha mente há algum tempo.
— H estava atrás daquele papiro? — perguntei, olhando diretamente em seus olhos.
— Então, você realmente achou o arquivo G — afirmou Noah, cruzando os braços. — Isso que você encontrou é um documento antigo que H está buscando. O motivo ainda é desconhecido para nós. Você entrou em contato com ele?
Expliquei como havia encontrado o arquivo G na estante, escondido por um encantamento ilusório.
— Ele me deu uma… — comecei a dizer, mas, ao passar a mão pela marca deixada pelo papiro.
Me deparei com… nada.
A marca que havia se formado… Desapareceu tão abruptamente quando surgiu.
Achei estranho e contei a Noah o ocorrido, detalhando como a marca surgiu no braço após eu encostar no papiro.
Ele franziu o cenho.
— Tem certeza disso? — questionou, com ceticismo na voz. — Isso é… extremamente estranho.
— Você acha que estou mentindo? — retruquei, ofendida. — Acha que sou uma criança que fingiria força a essa altura?
Noah hesitou por um momento, como se fosse me responder.
Mas desviou o olhar em direção à porta e silenciou-se por alguns momentos..
“Ele está esperando por alguém? Pera… Aquele encantamento de conversa mental?”
— Com quem você está conversando? — insisti, estreitando os olhos.
— Não estou autorizado a dizer — respondeu ele, de forma seca.
Sua postura mudou subitamente. E uma voz formal e fria, completamente diferente da anterior, soou em seguida:
— Há mais algo a relatar, Helena?
Arqueei a sobrancelha, confusa com a mudança.
— O que vai acontecer agora? — perguntei.
— Isso ficará ao encargo meu e dos demais agentes — respondeu ele com indiferença. — O assunto não lhe diz mais respeito. Preciso apenas que me diga: H pegou o arquivo?
Fiquei espantada com a mudança repentina.
Ainda assim, respondi: — Sim. Ele pegou. Minha desconfiança crescia.
— E eu? O que devo fazer agora? — questionei.
— Esqueça disso de uma vez. Agora, o problema não é mais seu — disse ele, já se dirigindo à porta enquanto colocava a cadeira de volta ao lugar.
Indignada com o tom gélido, rebati:
— Então é apenas isso? Você simplesmente aparece aqui, destrói algo precioso, por incompetência, tira a vida de alguém e vai embora assim?
Vejo ele se virar novamente, dessa vez, em minha direção.
E pela primeira vez desde que chegara, vi uma expressão diferente da frieza recém-assumida.
Um rosto… compadecido?
Naquele momento, entendi algo.
Noah não concordava com as coisas que acabara de dizer ou fazer. Ele apenas… seguia ordens.
— Garota… fica fora disso — murmurou, com uma voz gélida que destoava de seu olhar triste e pensativo.
Era uma voz que não era dele, mas da função que ocupava.
E, simples assim, ele saiu.
A porta bateu devagar, mas o som ecoou em minha cabeça como se fosse uma explosão. Fiquei ali, paralisada, encarando o espaço onde ele estivera segundos antes.
Um vazio se instalou no quarto. Um silêncio amargo, que mais parecia zombar da minha dor.
“Fica fora disso.”
A voz de Noah ecoava mais uma vez em minha mente.
Como se fosse possível apenas virar a página.
E começar o novo capítulo sem consequências. Iniciar o novo parágrafo sem concluir o tópico anterior.
Como se estivéssemos apenas num livro, onde, na próxima página, eu já estaria melhor, vívida e sem cicatrizes.
Como se a vida real fosse como os livros que Rose me emprestava.
Onde a dor passa com um novo capítulo, onde os mortos viram memórias e as cicatrizes ensinam lições. Mas não era.
Na vida real, a dor fica. O vazio lateja. E as perguntas não têm resposta.
Fiquei sentada na maca por longos minutos.
O tempo passava lento, como se estivesse respeitando meu luto.
As lágrimas voltaram, agora acompanhadas de soluços, até que não restasse mais força.
“Ela morreu… e eu não consegui salvá-la.”
A culpa me sufocava.
Mesmo sabendo que eu não tinha o poder suficiente para impedir aquele homem.
Nada tirava da minha cabeça os pensamentos, nem do cerne da minha alma, a culpa.
Havia apenas um único fato, que, como um prego sendo martelado vividamente em minha mente, me lembrava:
Eu estava lá.
E mesmo com toda a minha força, mesmo com tudo o que diziam sobre mim, tudo o que eu estudei… eu não fui rápida o bastante. Não fui forte o bastante. Não fui suficiente.
Deitei-me de lado, encolhendo o corpo sobre a maca como quem tenta se esconder da realidade.
Meus dedos tocaram o lençol frio, tentando encontrar ali algum vestígio de conforto. Nada. Nem mesmo o luar que entrava pela janela parecia acolhedor agora.
Lembrei da voz de Rose, suave, paciente, dizendo: “Você precisa dormir mais, pequena…”
Senti um aperto no peito. Eu trocaria todas as noites de sono do mundo só para ouvir ela falar comigo de novo.
Só mais uma vez. Não sei quanto tempo fiquei ali, mas quando voltei a mim, a lua já começava a se esconder entre as nuvens.
“Esquecer?”
Não. Eu não conseguiria. E não queria.
Rose não merecia ser lembrada apenas como estatística.
Apenas um número para fins de relatório, mais uma alma perdida no último dia ou ano.
Se havia algo que eu, por algum motivo, odiava, era como os jornais retratavam esses números em rede nacional. Como se estivessem apenas atualizando um tipo de patch notes de um jogo, onde milhares de bots ou mobs foram eliminados na última temporada.
Pareciam que eles esqueciam que aqueles números representavam vidas.
Pessoas que tinham sonhos, esperanças e histórias. A frieza com que tudo isso era resumido no fim da vida… era assustadora e triste.
Durante a vida, usávamos palavras para nos expressar, fosse por encantamentos, histórias ou conversas com amigos e familiares.
No entanto, as palavras tristemente não eram capazes de resolver todos os nossos problemas. Elas precisavam de alguém que sustentasse a base invisível que regia a sociedade: a lógica humana.
Esta, por sua vez, era regida pelos números.
Os ideais humanos podiam ser representados por palavras em nossos livros de filosofia, em diálogos e debates.
Mas, quando as coisas se tornavam sérias e importantes… tudo voltava aos números. À utilidade. À eficiência.
Todos viravam números e lembretes de que, não importa quem fomos, no fim, seríamos apenas mais um ou outro na fria quantificação.
Rose merecia ser lembrada como aquilo que ela foi em vida.
Uma memória vívida e feliz na mente daqueles que estiveram ao seu lado, fossem os leitores recorrentes da biblioteca ou apenas seus conhecidos e amigos.
Era exatamente isso que eu iria fazer.
Honrar a memória dela, de um jeito feliz que mesmo fazendo pouco.
Fazia questão de que ela fosse lembrada.
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