Capítulo 28 – Decisões
Conto: Li Wang
A escuridão começou a se dissipar como uma névoa tênue, e os sons do mundo real retornaram aos poucos.
— Li… Li Wang. Acorda. Chegamos — disse William, com a voz baixa, pousando a mão em seu ombro.
Ela abriu os olhos devagar, como quem emerge de um transe profundo. O avião já estava parado.
Lá fora, as luzes frias da Rússia iluminavam as ruas cinzentas de maneira discreta, quase melancólica.
Li Wang levou a mão ao colo, onde antes segurava a carta dourada.
Mas ela não estava mais ali.
Procurou ao redor, checando assentos e chão, mas não havia sinal algum do papel. Tinha certeza de que o segurava quando adormeceu. Aquilo não fazia sentido… ou fazia?
Por um instante, ficou imóvel, com a respiração presa no peito. As palavras daquela voz desconhecida ecoaram em sua mente, uma voz rouca, masculina, desesperada… e, de alguma forma, profundamente familiar.
Apertou os olhos. Aquilo não fora apenas um sonho. Não podia ter sido.
William a observava em silêncio, atento ao desconforto em seu semblante.
— Está tudo bem? — perguntou, com cautela.
Li Wang demorou a responder. Encarou a janela por alguns segundos, observando os flocos de neve caindo devagar.
— Estou — mentiu, num sussurro. — Só… preciso de um tempo.
Virou-se para ele e falou com mais firmeza:
— Vá na frente. Encontre Dayse, diga que eu já chego. Quero andar um pouco antes de ir para casa.
William hesitou.
— Tem certeza?
Ela assentiu, olhos sérios, mas distantes.
— Vai. Eu preciso disso.
Relutante, ele saiu do avião levando os livros consigo.
Quando sumiu de vista, Li Wang puxou o casaco contra o frio cortante e saiu em silêncio. Seus passos ecoaram pelas calçadas geladas, enquanto caminhava sem rumo, perseguindo uma inquietação que não sabia nomear.
Alguma coisa naquele sonho… naquela voz… a tocara de um modo que ela não conseguia explicar.
“Mãe…”
O sussurro parecia vir de dentro dela agora.
E, por mais absurdo que fosse, uma parte de Li Wang começava a temer que estivesse mais próxima da verdade do que jamais imaginou.
As ruas estavam calmas, cobertas por uma bruma fina que pairava entre as luzes dos postes. Li Wang andava lentamente, o frio da tarde mordendo seus dedos, mesmo sob as luvas. Seus pensamentos eram um redemoinho confuso — a carta dourada, o sonho sufocante, a voz que a chamou de “mãe”… e aquele sentimento sufocante de que tudo estava prestes a desmoronar.
Então, o ar mudou.
O tempo pareceu desacelerar. As vozes ao redor se tornaram abafadas, como se viessem debaixo d’água. E, quando ela ergueu os olhos… ele estava lá.
Hendrick.
Parado no meio da calçada, entre a multidão, encarando-a como se fosse apenas mais um homem comum.
Mas Li Wang sabia. Ela sentia.
A presença dele era uma ruptura na realidade, pesada, sufocante e predatória.
Ela parou. As pessoas passavam por eles sem perceber, como se não houvesse nada de anormal. Um senhor tossia ao lado, uma criança pedia balas à mãe. E, mesmo assim, o tempo parecia curvado ao redor daquele encontro.
Li Wang levou a mão à cintura, repousando os dedos sobre a arma. Os olhos fixos nos dele.
Hendrick sorriu — sereno como um túmulo.
— Vá até Sochi — disse, com a voz firme e baixa, como uma ordem em meio ao caos. — Estádio Olímpico de Fisht. Hoje. Às vinte horas.
Li Wang cerrou os olhos.
— E se eu não for?
O sorriso desapareceu. Hendrick inclinou levemente a cabeça; seus olhos, estranhamente calmos pareciam transpassar sua alma.
— Ela irá matar todos que você ama.
As palavras foram ditas com uma frieza tão objetiva que o vento pareceu parar por um segundo. Li Wang sentiu o estômago revirar. Não foi uma ameaça. Foi uma promessa.
Antes que pudesse reagir, sacar a arma, perguntar algo ou qualquer coisa, Hendrick desapareceu na multidão. Sumiu como se nunca tivesse estado ali.
Ela ficou parada, atônita, o coração batendo violentamente no peito.
“Ela”…
“Um novo pecado?”
“Quem é… ela?”
As perguntas se amontoavam, mas o tempo não lhe daria o luxo das respostas.
Olhou o relógio: faltavam poucas horas para as vinte.
Uma certeza ardia dentro dela como uma labareda: teria que estar lá.
Li Wang acelerou o passo pelas ruas geladas, a mente dominada por um turbilhão de pensamentos. As palavras de Hendrick ecoavam como um presságio sombrio:
“Ela irá matar todos que você ama.”
O frio perdeu o efeito sobre ela, assim como o movimento frenético das pessoas ao redor. Seu coração batia descompassado, não pela corrida, mas pela angústia.
Ao chegar à casa de William, parou diante da porta e respirou fundo. Temia o que encontraria, mas precisava ver com os próprios olhos.
Empurrou a porta devagar.
O som que a acolheu foi um bálsamo inesperado:
Risos.
William fazia cócegas em Bárbara, que se contorcia e gritava:
— PÁÁÁRA, WILLIAM! — chorava de rir.
Dayse gargalhava observando a cena.
Li Wang permaneceu imóvel. O peito apertou, mas não de angústia, era um alívio quente que percorreu o corpo.
“Eles estão bem…”
“Estão vivos…”
Por um instante, quis ir até eles, abraçá-los, dizer que os amava. Mas o dever e o perigo a puxaram para longe. Não podia arrastá-los para aquilo.
Virou-se silenciosamente, caminhando até seu quarto onde guardava as armas.
Abriu o armário com precisão, os olhos varrendo o arsenal.
Pegou o que precisava: duas pistolas, colocando uma em cada coldre, para esconder sob o casaco; facas, uma presa à coxa, outra na bota, e mais uma oculta na manga do casaco; carregadores extras nos bolsos internos; um pequeno canivete afiado, preso atrás do cinto.
Se moveu com a agilidade e disciplina de quem já sabe que pode não voltar.
Ao fechar a última gaveta, parou.
No canto do quarto repousava a caixa de madeira escura, fechada com um simples trinco, mas cujo conteúdo parecia pesar toneladas:
Azazel.
Ficou ali, encarando a caixa como se ele pudesse olhar de volta.
Seu reflexo tremulava no verniz polido da tampa, e o silêncio ao redor parecia engolir até os risos vindos da sala.
Li Wang hesitou.
— Devo levar…?
As mãos tremeram levemente. O nome de Hendrick martelava na mente.
Apertou os olhos com força, o maxilar tenso.
— Merda… — murmurou.
Num ímpeto desesperado, abriu a caixa com violência.
O calor metálico de Azazel pulsava, mesmo imóvel, como se soubesse que seria usado.
Fechou a mão ao redor do cristal e, sem pensar duas vezes, guardou-o no bolso interno do casaco.
Fechou a caixa com força, abafando o som seco do trinco.
Respirou fundo, apoiando-se no móvel, cabeça baixa.
“Não posso falhar…”
Olhou pela janela, vendo o céu tingido de laranja do fim de tarde. Faltavam poucas horas para as vinte.
Saiu silenciosamente.
Ao passar pela sala, lançou um olhar rápido para eles: Dayse, William, Bárbara.
Continuavam ali, rindo como se o mundo não fosse desmoronar.
Um sorriso leve e triste surgiu nos lábios de Li Wang antes que cruzasse a porta, partindo sozinha para o Estádio, onde a maior prova a aguardava.
Quando a mão se fechou sobre a maçaneta fria, um pensamento cortou sua mente como um relâmpago:
“E se eles já souberem…?”
O coração acelerou.
Hendrick sabia onde encontrá-la. Talvez soubesse onde encontrá-los também.
Virou-se abruptamente, olhos arregalados, e caminhou firme até a sala.
William brincava despreocupado com Bárbara e Henry, enquanto Dayse organizava papéis no sofá.
Parou a poucos passos dele, voz baixa, semblante calmo, como numa conversa trivial:
— William… — chamou, atraindo sua atenção.
Ele virou-se sorrindo, mas ao ver sua expressão séria, franziu o cenho.
Li Wang inclinou-se, falou num sussurro só para ele:
— Preciso que tire todos daqui. Agora.
William piscou, confuso.
— O que? Por quê?
Ela desviou o olhar, respirou fundo, lutando contra o impulso de explicar tudo. Não podia expô-los mais.
— Apenas… confia em mim — disse firme, sem espaço para dúvidas.
Ele a olhou mais alguns segundos, tentando decifrar a dor e urgência no olhar calmo.
Finalmente assentiu.
— Tá… eu confio.
Li Wang esboçou um sorriso mínimo, um agradecimento silencioso.
Antes que alguém percebesse, virou-se e caminhou rápido para a porta.
Enquanto cruzava a soleira, ouviu as risadas abafadas da sala.
Fechou os olhos por um instante, sentindo a lufada fria da rua invadir seus pulmões.
Sem olhar para trás, partiu.
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