Capítulo 7 - Cair é a primeira asa
O mundo se contrai tal qual um músculo distendido voltando ao repouso. Meu corpo inteiro é uma câimbra que se desfaz em ondas, primeiro os músculos das costas, depois os braços, finalmente as pernas que mal me sustentam.
A adrenalina vaza de mim em espasmos frios, deixando para trás um vazio ácido e a lembrança incômoda de ter atravessado um limite que não deveria sequer conhecer.
Minhas mãos tremem quando olho para elas. Ainda há sangue sob as unhas, sangue que não é meu. A lembrança das mercenárias caindo me atinge em cheio, uma dor baixa e certeira. Eu as matei. Não apenas matei, eu as destruí com uma eficiência que não deveria possuir, usando partes de mim que não deveria ter.
Minhas pernas cedem. O chão me recebe, e minha última percepção consciente é o som da própria respiração se esvaindo.
Acordo com vozes.
Mantenho os olhos fechados por instinto de sobrevivência que não sabia possuir. As palavras chegam abafadas:
— Não sobrou nada das duas. Parece que uma criatura selvagem passou por elas.
— Axion sempre disse que o garoto era especial. Não imaginou que fosse tanto assim.
— Especial, uma merda. Perdemos duas operativas experientes por causa da teimosia do velho. E agora?
— Agora cumprimos a outra metade da missão. Pegamos a centauro e voltamos. O aprendiz que se vire sozinho.
O aprendiz. Eu. Axion me abandonou.
A revelação deveria me dilacerar, mas só arranha. Axion me abandonou. Me deixou aqui. E isso, vindo dele, machuca mais do que qualquer ferida. Tudo o que sou agora, o que fiz, foi forjado sob suas instruções. E mesmo assim, ele me descartou, feito apenas mais um corpo chegando pelos tubos, sem nome, sem importância.
Também matei.
E não foi um acidente.
O que sinto é turvo. Minhas emoções parecem febris: confusão, cansaço, horror, tudo embaçado. Tocar a vida e arrancá-la com o toque… isso marca. Ver algo morrer é fácil. Sentir isso se apagando sob as mãos é outra coisa. Errada. Antinatural. Não fui feito para isso.
Não sou criador nem pai, muito menos algum deus. Só alguém que atravessou uma linha sem entender o que havia do outro lado. Vida, aquilo que nunca vi nas carcaças que chegavam pelo tubo enquanto Axion sussurrava verdades técnicas demais para caber em mim.
Ele me deixou sozinho com isso, com o que quer que eu tenha me tornado.
— VVVRRRRRRR!
O som é metálico, cortante, feito dentes de aço mastigando o que encontram pela frente. Abro os olhos devagar e me vejo preso dentro de uma cápsula de ferro. As paredes curvas e frias me envolvem feito um sarcófago mecânico. O espaço é alongado, apertado, claustrofóbico, e cada superfície é apenas metal nu, sem a familiaridade orgânica da criatura morta que abrigava no meu antigo lar.
Minha mão se move instintivamente para tocar a parede mais próxima e se retrai no mesmo instante. O ferro está gelado, tão frio que parece drenar o calor da minha pele. É feito tocar a morte. Não a que eu conhecia, que ainda guardava memórias de vida, mas uma morte que nunca foi vida. O eco de algo que quis nascer, mas só aprendeu a morrer.
Minha consciência sussurra um aviso que não consigo ignorar: este metal não me devolverá nada além do próprio frio. Não há calor humano aqui, não há história, não há memória. Apenas a impessoalidade brutal de algo construído para funcionar, não para viver.
O frio. O aperto. As linhas do metal cru… Algo nisso me é familiar, não no corpo, mas na mente. Já vi isso nos esquemas de Axion: um transporte subterrâneo blindado, construído para atravessar camadas de rocha.
Uma máquina-toupeira! Estou dentro de uma.
Meus olhos se voltam para o canto mais escuro da cápsula, onde algo que inicialmente pensei ser apenas parte do equipamento se revela uma aparição que ultrapassa tudo o que vi antes, tanto em terror quanto em fascínio.
A criatura… não, a mulher está sentada com os olhos fechados, mas não dorme. Sua respiração é controlada demais, músculos tensos demais. Ela finge dormir feito eu fingia estar inconsciente.
Da cintura para cima, é uma mulher. Pele bronzeada marcada por cicatrizes cirúrgicas que reconheço: incisões de implante biomecânico, linhas de sutura genética. Seios pequenos mas firmes, músculos abdominais definidos que descem até…
Até onde o impossível começa.
Da cintura para baixo, é uma égua. Não uma fusão grotesca, não uma aberração, é uma integração tão perfeita que parece natural. A transição entre pele humana e pelagem castanha é suave, tal qual se a natureza tivesse planejado isso. Placas metálicas brilham discretamente nas articulações das patas traseiras, e posso ver os cascos reforçados com o que parece ser liga de titânio.
Minha mente científica desperta contra minha vontade. Quantas cirurgias foram necessárias? Como resolveram a questão da coluna vertebral? O sistema digestivo deve ser completamente reconfigurado. E o sistema reprodutivo…
Minha mão se move sozinha, alcançando o tornozelo dela com a mesma precisão clínica que uso para examinar cadáveres. Preciso sentir onde a modificação começa, verificar a temperatura da pele, avaliar a textura do tecido de transição…
Antes que eu diga qualquer coisa, os olhos dela se escancaram, fendidos como gumes. O tapa vem depois, ecoando pelo veículo feito sentença.
— Ainda bem que não sou um dos seus cadáveres! — a voz é grave, feminina, com um registro que sugere múltiplas modificações nas cordas vocais.
Mas não é isso que me paralisa. É o fato de que ela sabe quem eu sou.
— Eu… desculpe, eu não queria… — minha voz soa estranha, não acostumada a se dirigir a algo que pode responder.
— Não queria o quê? Não queria me tocar como um espécime? Não queria verificar se eu era real? — ela me vê como se avaliasse uma presa que não morde de volta: entre a graça de matar e o tédio de esperar antes de finalizar.
— Você é exatamente o que Axion disse que você seria.
— Você conhece Axion? — digo, com mais silêncio do que voz.
O olhar dela se estreita, e a resposta vem sem hesitação:
— Para mim, são todos Axion. Homens que constroem crianças iguais a nós e depois se assustam ao perceber que temos vontade própria.
— CRRRRRRRR-TUNC!
A máquina estremece violentamente, tal qual se a broca tivesse encontrado algo mais denso, mais resistente que a rocha comum. O impacto me joga contra a parede metálica, e sinto o frio do ferro atravessar minha roupa e tocar diretamente minha pele. É como ser abraçado por um cadáver.
A cápsula treme novamente, balança, range, e percebo que estamos perfurando nosso caminho através de um mundo que se recusa a permanecer estável.
A cápsula treme de novo, mais forte. Um estalo metálico ecoa pelas paredes enquanto a broca encontra algo resistente. Meu corpo sacode no impacto, a lateral do crânio bate no metal frio. Dói. Vibra pelos dentes.
— Isso… isso não é um túnel. É um massacre.
Ela não discute. Constata:
— Você acha mesmo que tem estrada lá fora? Só tem pedra e medo esperando a gente.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.