Capítulo 79: Véspera do Festival
O sol da manhã já estava batendo forte no pátio, lançando sombras longas das árvores sobre o chão e fazendo o brilho da torre, que tinha sido acabada de pintar, brilhar bem alto. Um pequeno grupo da nossa turma se reunia ali em volta do cenário que, surpreendentemente, se parecia mesmo com um castelo do conto da nossa peça.
— Quem diria, ein… — comentou Kazuki, os braços cruzados e um sorrisinho satisfeito no rosto. — Tá começando a parecer um castelo de verdade.
— Hã? “Começando”? — rebateu Yumi, apontando orgulhosa pra parede de madeira que ela pintou com tons de rosa. — Isso aqui vai fazer as outras turmas morrerem de inveja!
Akira, ainda com o rosto manchado de tinta azul e segurando um pincel torto, bufou dramaticamente.
— Eu pintei metade daquela torre! Mas ninguém vai notar porque alguém decidiu jogar glitter no telhado inteiro! — o “alguém” saiu mais alto, enquanto ele virava a cabeça lentamente.
Ele virou o pincel, levantando e apontando diretamente pro Seiji.
— Ei! — Seiji ergueu as mãos defensivamente, coçando a nuca. — O-o público gosta de brilho, tá? É parte da experiência visual… Sabe como é, né?
Antes que Akira piorasse a discussão, Mina surgiu do outro lado do pátio, com a testa franzida e as mãos firmes na cintura.
Fez uma pose de quem já tinha perdido a paciência com eles fazia horas.
— Vocês dois! Se tiverem tempo pra brigar, têm tempo pra refazer a parte de trás da torre, que por sinal ainda tá torta!
O silêncio durou meio segundo antes de todos caírem na risada. Estávamos cobertos de tinta, suados e exaustos, mas havia algo no ar, talvez fosse o cheiro de tinta fresca ou talvez fosse só alívio do trabalho, que fazia tudo aquilo valer a pena.
Mai chegou perto do grupo, segurando um bloco de papéis nas mãos.
— Shin! O roteiro tá finalizado — disse, parando na minha frente com um leve sorriso cansado. — Eu e o Taro ajustamos o ritmo, organizamos melhor as falas… e colocamos umas piadas no final. Dá pra ensaiar sem problemas agora!
— Isso é bom. — Peguei os papéis, ajeitando-os entre as mãos. — É pra entregar pra Yuki e Sasaki, certo?
— Isso. Elas devem estar ensaiando na sala 2-A. Se quiser aproveitar pra revisar com elas.
Assenti, observando por um instante a correria no pátio antes de me afastar.
Andei pelos corredores animados até chegar no local. A sala estava quase vazia, iluminada apenas pela luz da manhã que entrava pelas janelas abertas. O som de outros alunos passando apressados pelo corredor ainda podia ser ouvido ao fundo, meio abafado, me lembrando como o mundo do outro lado ainda girava.
Yuki estava sozinha no centro da sala vestindo parte do figurino, como se estivesse testando ajustes. Nas mãos, girava aquele pequeno objeto que ela tinha dito que a ajudava a acalmar, enquanto repetia algumas falas em voz baixa, concentrada, andando de um lado para o outro.
Bati de leve na porta que estava um pouco aberta.
— Yuki? Posso entrar?
Ela se virou, um pouco surpresa no começo, mas o rosto logo se suavizou com um sorriso.
— Ah, Shin! Claro. — Deixou o roteiro que tinha nas mãos sobre uma mesa próxima. — Você trouxe o final?
— Trouxe sim. — Entrei, entregando o bloco de folhas. — A Mai e Taro também deram alguns retoques de última hora, deve estar melhor agora.
Yuki pegou os papéis com cuidado e começou a folhear, os olhos correndo pelas linhas com atenção. Seus dedos pararam em uma das marcações.
— Ficou bem mais organizado… Isso vai facilitar muito. Obrigada.
Assenti, mas permaneci ali em silêncio por um momento, observando o jeito como ela passava a mão pelas páginas, com aquela concentração tranquila que era típico dela.
— Você tá se esforçando bastante… — falei, coçando a nuca. — Não quer fazer uma pausa?
Ela riu leve, sem tirar os olhos do roteiro.
— Ainda não. Tem algumas falas que ainda me fazem tropeçar… e eu não queria deixar pra última hora.
Hesitei por um segundo, mas a sala estava vazia, nem mesmo Sasaki estava ali ensaiando. E, de algum jeito, eu queria ficar mais um pouco.
— …Se quiser, posso te ajudar a ensaiar.
Ela levantou os olhos, surpresa, com um leve sorriso no rosto.
— Você? Não tinha ideia que você sabia atuar.
— Ah, eu…não sei — admiti, rindo de leve. — Mas como a Sasaki não tá aqui, posso pelo menos ler as falas do príncipe. Ajudar a memorizar algumas falas e isso.
Yuki me encarou por um instante, depois assentiu devagar com um sorriso no canto dos lábios.
— Tudo bem. Mas nada de rir se eu errar!
— Eu é que devia estar dizendo isso… — falei, já me sentindo nervoso antes mesmo de começarmos.
Começamos devagar. Yuki segurava o roteiro com uma leveza incrível, seus os olhos firmes e a voz suave, como se as falas já estivessem gravadas na memória.
Nem parecia que ela precisava revisar.
Eu, por outro lado, parecia estar em uma peça totalmente diferente…
— Oh, b-bela jovem… — gaguejei, tentando ajustar a postura. — Sua… sua beleza reluz como… é… como o brilho da manhã…?
— É “como o brilho do sol sobre as montanhas ao amanhecer”. — ela me corrigiu, contendo uma risada.
— Isso, isso. Era isso que eu ia dizer… — respondi, mesmo sabendo que não era.
Continuei, tropeçando em cada linha como se o papel nas minhas mãos fosse difícil de ler. Meus gestos saíam exagerados, e toda vez que eu tentava encarar os olhos dela na hora certa, esquecia a próxima fala.
— Quem és tu, gentil desconhecida, que se aproxima com tamanha… — dei uma pausa dramática demais — …delicadeza?
Ela não aguentou e tapou a boca com a mão, os ombros tremendo de tanto rir.
— Shin… — disse entre risos. — Você tá mais nervoso do que eu. E eu é que vou subir no palco amanhã.
— Acho que eu realmente não sirvo pra isso… — murmurei, suspirando enquanto sentia derrotado.
Ficamos ali por um tempo, revendo algumas partes. A cada repetição, ela se mostrava mais confiante, e eu… menos desastroso.
Mas então, sem perceber, viramos a última página.
Meus olhos correram pelas linhas finais, até pararem na última frase. Respirei fundo.
— “E então, com um beijo, o príncipe desperta a Branca de Neve…” — li em voz baixa — Ah…
Minha voz ficou presa na garganta no instante seguinte.
Fiquei imóvel. O roteiro ainda estava nas minhas mãos, mas parecia mais… pesado. Levantei os olhos devagar, como se qualquer movimento quebrasse aquele silêncio.
Yuki também olhava para o roteiro. O sorriso dela sumiu aos poucos, substituído por uma expressão hesitante. As bochechas começaram a ganhar um leve tom avermelhado, e os dedos que seguravam as folhas apertaram um pouco mais.
— A gente… só… — murmurou, sem terminar a frase.
O ar entre nós pareceu parar. A sala ficou em silêncio, como se todo som lá fora tivesse desaparecido.
Um daqueles momentos em que nada acontecia… mas que tudo se dizia mesmo assim.
Eu a olhei, e por um instante, ela me olhou também.
— Shin…
— Yuki… — comecei, a voz saindo um pouco baixa enquanto dei um pequeno passo para frente. — Você…
— Ei, tem alguém aí?! — gritou uma voz do corredor, cortando toda aquela tensão que pairava no ar.
A porta se abriu com pressa, e Aiko entrou, ofegante, com um pedaço de tecido vermelho pendurado no braço.
— Ah! Desculpa! — disse ela, parando ao ver a cena. — Não sabia que tinha gente aqui… interrompi alguma coisa?
Yuki recuou um passo, encolhendo os ombros, o rosto ainda um pouco corado.
— N-não! — Yuki respondeu rápido, rindo nervosa. — Só estávamos repassando umas falas.
— É, só isso! Só umas falas… — confirmei, tentando parecer despreocupado enquanto dobrava o roteiro devagar.
Aiko nos lançou um olhar ligeiramente desconfiado, o canto da boca puxado num sorriso contido.
— Bom, terminem logo. — Ela olhou pela sala, como se estivesse procurando algo. — Ah, achei que a Sasaki estivesse aqui. Preciso testar um acessório no figurino dela…
— Ah, eu não vi ela ainda… — disse Yuki, baixando o olhar. — Queria ensaiar mais umas falas com ela também…
— Estranho, né? — Aiko comentou, ajeitando o tecido sobre o braço. — Hoje ela tá… diferente. Mais calada que o normal? Talvez seja apenas o nervosismo…
— Ela tá bem? — perguntei, trocando um olhar rápido com Yuki.
Aiko deu de ombros, pensativa.
— Acho que sim. Talvez esteja só no canto dela processando tudo. Amanhã ela terá que se apresentar na frente de todo mundo, então…
Yuki assentiu, os dedos mexendo no objeto que girava discretamente nas mãos.
— É… eu também tô nervosa — murmurou, com um sorriso pequeno e um pouco incerto.
Aiko deu um sorriso breve.
— Bom, vou procurar ela em outro lugar. Terminem o que estavam fazendo — disse, já se virando para a porta.
— Até daqui a pouco — murmurei, observando-a sair pelo corredor.
Depois que ela se foi, o silêncio voltou à sala, mas não do mesmo jeito. Tudo parecia mais… quieto, como se o momento anterior tivesse ficado suspenso no ar, sem se desfazer por completo.
— Bom… acho que vou deixar você revisar sozinha agora — falei, deixando o roteiro na mesa, com cuidado.
Yuki assentiu levemente, ainda olhando para a última página aberta sobre a mesa, os olhos vendo algo que talvez nem fosse o texto. Saí devagar, fechando a porta atrás de mim, e senti o peso do momento ainda girando na minha mente.
O sol já estava baixo quando voltei pro pátio. As torres do castelo brilhavam sob a luz dourada, e a turma começava levemente a se separar depois dos retoques finais.
— Acabamos! E até tá apresentável! — Seiji gritou, jogando o pincel pro alto e pegando de volta. Takeshi bateu palmas, enquanto outros riam. — Isso é o que eu chamo de milagre!
— Cacete, fico enjoado só de pensar em glitter azul… — Akira disse, jogando-se num dos bancos, completamente exausto.
Kazuki passou por eles rindo, comentando algo sobre o castelo ser meio feio, mas que dava pro gasto, enquanto mais alguns colegas ajudavam a guardar os últimos materiais.
Me sentei ao lado do Rintarou, de baixo da sombra de uma árvore. O pátio, que até poucas horas atrás estava um caos de tinta, madeira e vozes, tinha se transformado em um lugar bem silencioso.
— Finalmente — disse Rintarou, ajustando os óculos com um leve suspiro. — Tudo pronto pra amanhã.
Assenti, olhando pro castelo. O tecido nas janelas ainda balançava com o vento leve, e algumas latas de tinta secavam num canto.
— Sim. A gente fez o que podia.
O roteiro estava pronto. Os cenários também. Figurinos, cartazes, acessórios, os ensaios… Tudo que a nossa turma vinha preparando há dias estava ali.
Pronto pra ser mostrado para todos.
Ainda assim, eu sentia como se ainda estivesse segurando o roteiro nas mãos. A voz da Yuki ainda ecoava na minha cabeça.
Especialmente aquela última fala.
E o momento na sala… o quase.
Talvez fosse só coisa da minha cabeça. Ou talvez não.
Mas de uma coisa eu sabia: o que aconteceria no festival, no dia seguinte, não seria só mais uma apresentação de teatro.
Sentia que, de algum jeito, seria mais do que isso.
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