Índice de Capítulo

    Alguns minutos após se despedirem de Bruno e João, Alicia, com uma garrafa de Coca-Cola na mão, caminha na direção de Samira. Ela sentia uma tristeza profunda em seu coração, enquanto revisava na cabeça como tudo aconteceu tão rápido, e o quanto tinha sorte de conseguir fugir da escola. Lembrava-se de como fora pega de surpresa, beijando um garoto escondido no banheiro. Tudo aconteceu tão rápido, em menos de 8 minutos, com crianças correndo, gritando e chorando por todo lado…

    Samira olhava para Alicia com um olhar cabisbaixo, os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar. Percebia a boca de Alicia tremendo, e seus olhos ainda estavam úmidos. Para ela, era claro que Alicia estava se esforçando ao máximo para não chorar. Tentando puxar algum assunto, Samira falou, olhando para o chão, pensativa:

    — Oi… vejo que você tá tão mal quanto eu. Senta aqui… vamos conversar até o meu irmão voltar?

    Alicia, tentando ser solidária mesmo estando tão abalada quanto Samira, a olhou e, então, se sentou de frente para ela. As duas ficaram em silêncio por alguns minutos, olhando para os cantos ao redor e evitando olhar uma para a outra. Alicia, de tempos em tempos, olhava para o relógio do celular, ou então para a foto de um modelo masculino sem camisa, que era a capa de seu celular.

    Samira, desconfortável com o silêncio pesado, decidiu quebrá-lo:

    — Me diz aí, como você se sente?

    Alicia bloqueia a tela do celular e, com a voz baixa e até um pouco suave, responde:

    — Com medo… e bem preocupada com a minha mãe… Mas e você? Tá preocupada com a sua família?

    Samira estava contando os minutos para que Bruno voltasse, trazendo sua mãe e irmãs com segurança. Ela demorou um pouco para responder, porque, ao pensar no que diria, seu coração começou a bater mais forte. Mesmo assim, decidiu esconder o que sentia. Afinal, seu irmão fazia o mesmo quando não queria responder algo que não gostava. Então, para não parecer frágil, ela minimizou o que ia dizer:

    — Não muito… Agora que estou mais calma, tenho quase certeza de que todo mundo está bem e logo estará todo mundo aqui.

    Alicia percebeu rapidamente que Samira não estava sendo totalmente sincera. Para dar uma leve desestabilizada e fazer com que ela se abrisse mais, perguntou:

    — E você não tá preocupada com o corte na cara do seu irmão?

    Samira suspirou fundo e encostou a cabeça na parede. Naquele momento, percebeu a grande diferença entre ela e seu irmão. Sabia que não conseguiria esconder as emoções tão bem quanto ele; na verdade, tudo o que mais queria naquele instante era alguém que a abraçasse e a deixasse chorar…

    Ela olhou para Alicia, que, ao contrário dela, sabia que pelo menos o irmão estava bem e fazendo tudo o que podia para protegê-la. Samira sentiu pena, pois sabia que Alicia não tinha ninguém ali para cuidar dela, e isso a fez perceber que não valeria a pena esconder o que sentia.

    — Sinceramente, tô preocupada sim, mas quero acreditar que ele e todos nós que conseguimos sobreviver somos imunes… Ou que, pelo menos, seja só um corte. O que mais me preocupa é que eu não quero perder o meu irmão…

    Camille, que passava pelo corredor onde ficavam os doces e bombons, ouviu a conversa das duas e se aproximou, sentando-se ao lado delas.

    Samira olhou para Camille e perguntou, com um tom mais suave:

    — E você, tá melhor?

    Camille, com os olhos ainda cheios de lágrimas, respondeu, a voz embargada:

    — Acho que não vou ver mais os meus irmãos… Eu não sei se tenho coragem de procurar saber se eles estão bem…

    Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Camille. Ela as limpou rapidamente, tentando impedir que continuassem a cair. Enquanto as secava, disse, com a voz trêmula:

    — Eu também sinto que nunca mais verei minha mãe ou meus irmãos. Você tem sorte, Samira.

    Samira não via muita vantagem no que Camille acabara de dizer. Afinal, desde que o irmão dela saíra, ela já não tinha mais nenhuma certeza de que ele voltaria. Por isso, comentou sem muita esperança:

    — Eu só posso concordar com você, mas isso só quando ele estiver aqui, em segurança, com minha mãe e minhas irmãs.

    Mal Samira terminou de falar, alguém tentou forçar a entrada do mercado, o que assustou bastante as meninas, que, naquele momento, estavam sozinhas.

    Samira correu até o açougue e pegou uma das facas que estavam ao lado de um pedaço de carne, onde Bruno havia testado o fio das lâminas. Alicia correu para o armazém do mercado, buscando um lugar para se esconder, e Camille pegou uma vassoura próxima à entrada do armazém. As três, já preparadas para o combate, ouviram uma voz familiar:

    — Oh Alonso, eu acho que o Las Vegas tinha razão, cara. Aqui realmente parece um bom lugar para se esconder!

    Samira reconheceu a voz de imediato, era a de um grande amigo de seu irmão, que morava a poucas casas de onde eles viviam. Para confirmar, ela se aproximou do portão que eles tentavam forçar para abrir e gritou:

    — Reidner, é você?

    — Samira! Somos nós, e tá todo mundo aqui!

    Samira abriu a porta menor, que ficava no canto direito do mercado e dava saída para o segundo estacionamento. Ela os chamou para passarem por ali. Ela ficou surpresa ao ver que uma boa parte dos amigos dela e de seu irmão estavam ali.

    Samira viu que, entre os novos arrivados, estavam Alonso, Daniel, Edvaldo, Gabriel e Reidner, pessoas com quem ela conviveu a vida inteira.

    Reidner olhou ao redor e, com um olhar curioso, perguntou:

    — Cadê o Las Vegas?

    Todos entraram no mercado, e Samira, ainda com um olhar entristecido, trancou a porta antes de responder:

    — Meu irmão saiu para buscar minha mãe e minhas irmãs… e ele ainda não voltou.

    Alonso percebeu o clima tenso no ar, vendo como Samira estava visivelmente triste e preocupada. Ele olhou para Camille, que também parecia exausta, e tentou aliviar a tensão com algumas palavras:

    — Eu não falei, Reidner, que ele ia vir correndo pra cá…

    Alicia, ouvindo as vozes amigáveis e descontraídas, começou a relaxar. Acreditando que a situação estava mais tranquila, ela saiu de onde estava escondida e se juntou ao grupo. Ao chegar, viu várias pessoas novas, mas das que estavam ali, ela só conhecia Alonso e Reidner, com quem estudava na mesma escola. O único problema era que ela os conhecia mais de vista, já que haviam trocado poucas palavras.

    Gabriel se acomodou numa cadeira e perguntou para Samira:

    — Aqui, Samira… Me responde uma coisa. Como foi que vocês conseguiram chegar até aqui? E como é que acharam o mercado vazio, todo pra vocês?

    — Eu até posso responder, mas primeiro quero saber de vocês! Afinal, vocês estão tão tranquilos, pra quem está chegando agora…

    Gabriel, cabisbaixo, respondeu:

    — Samira, não é que a gente esteja tranquilo com o que tá acontecendo… O lance é que ninguém aqui quer se deixar abater. Afinal, todos nós já perdemos muitas pessoas queridas, e é bem provável que vamos perder muito mais… Hoje mesmo, eu nem fui pra aula. Passei boa parte da manhã cuidando da minha mãe, que acordou muito mal. Estava preparando uma sopa pra ela, mas ela, do nada, apareceu na cozinha com a boca aberta e o pescoço torto pra um lado. Eu tive que lutar pra conseguir escapar dela. Quando consegui sair, fui subindo a rua da quadra e encontrei o Reidner e o Alonso vindo da escola…

    Alonso continuou explicando o que aconteceu:

    — Aí, quando a gente viu o PILL subindo a rua da quadra, pedimos pra ele ficar com a gente… Voltamos e passamos na minha casa e na do Reidner. Não encontrei meus pais nem meu irmão, que, claro, havia saído pra trabalhar. Quando fomos pra casa do Reidner trombamos com o Bruno e o Edvaldo, que também estavam fugindo. Conseguimos escapar, e depois decidimos que seria melhor vir pra cá.

    Depois de ouvir tudo aquilo, Samira decidiu contar o que aconteceu com ela até chegar ali:

    — Bom, eu estava no pátio da escola com uma amiga, que acabou sendo pega enquanto a gente fugia…, mas antes disso, quando começou a gritaria e o pânico, a gente viu as tias da cozinha saindo de lá pra correr atrás dos meninos. Quando elas saíram eu corri também. Fui fechar a porta e a Alicia apareceu pedindo pra entrar. Ficamos lá até a escola quase toda ser dominada. Eu vi vocês dois fugindo, Alonso, tentei gritar e chamar vocês, mas com toda aquela gritaria, a única coisa que consegui fazer foi chamar a atenção deles. Quando vi, já tinham cercado a cantina, e tivemos que ficar lá até o meu irmão e o João Paulo conseguirem tirar a gente de lá… Depois que eles conseguiram, viemos pra cá, e claro, quem matou aqueles que estão lá fora foi o meu irmão.

    Edvaldo, quando chegou sua vez de falar, foi direto ao ponto sobre o que aconteceu com ele e com o Bruno.

    — Comigo, antes de encontrar os meninos, a galera tava mexendo com umas bikes, aí do nada todo mundo passou mal e pirou. Aí, a gente só meteu o pé de lá, né? Corremos com tudo que a gente tinha!

    Enquanto conversavam, o barulho de carros se aproximando e parando em frente ao portão do mercado chamou a atenção deles.

    Na mesma porta por onde os outros haviam entrado, Bruno bateu com força:

    — Samira, abre essa porra!

    Ao ouvir a voz do irmão, Samira correu até a porta e a abriu, já olhando ansiosamente para sua mãe e suas irmãs. Ao entrar, Bruno se surpreendeu ao ver a maioria dos seus amigos ali, mas não disse nada. Não pensou em cumprimentá-los. Ele apenas agarrou Samira pelo braço e a levou para o escritório, que ficava no fundo do mercado, perto da porta.

    Os amigos de Bruno ficaram confusos com a atitude dele, mas, vendo a expressão sombria e fechada no rosto dele, preferiram não fazer perguntas.

    No escritório, Bruno puxou uma cadeira da mesa de computador e a colocou próxima de Samira, indicando que queria que ela se sentasse. Ela se sentou, nervosa, e perguntou o que estava acontecendo.

    — O irmão vai falar, mas quero que você fique calma e escute, por favor, tá bom? — ele disse.

    Samira assentiu com a cabeça, já contendo as lágrimas, sentindo que uma má notícia estava por vir. Bruno olhou nos olhos dela, viu as lágrimas começando a se formar, e pensou consigo mesmo: Putz, eu sei que preciso fazer ela ser forte, mas ela só tem 11 anos… Não tem como eu contar pra ela que eu matei minha mãe e minhas irmãs. Duvido que ela aguente essa porra. Ele respirou fundo, tentando controlar o aperto no peito, e puxou outra cadeira, sentando-se de frente para Samira.

    — Samy… Eu fiz o possível pra chegar lá antes que algo acontecesse… Mas eu imagino que você já deve saber que todos os adultos foram infectados, né?

    Samira apertou as mãos com força, já sentindo o peso da resposta, e disse:

    — Para de enrolar, Bruno. Já pensei nessa possibilidade. Então me fala logo, onde elas estão? Cadê a Hanne e a Haissa?

    Bruno desviou o olhar, e com a voz embargada, respondeu:

    — Eu… eu não sei, Sam. Quando cheguei lá, elas tinham sumido.

    Samira, mesmo já sabendo o que ele diria, insistiu em perguntar:

    — E a mamãe? Como é que ela morreu? Ou melhor, você a matou? Escuta aqui, eu aguento, não precisa hesitar!

    Bruno se calou por um momento, as imagens da cena se passando diante de seus olhos como um turbilhão. Ele revivia tudo em sua mente, sentindo a sensação do crânio delas quebrando sob suas mãos. O olhar dele ficou vazio e frio, e, com uma voz mais rígida, ele respondeu:

    — Ela também não estava lá. Não quero que você fique se preocupando com isso, porque eu vou achar elas, tá bom?

    Samira percebeu a mentira de Bruno, e a raiva começou a tomar conta dela. Sentindo-se tratada como uma criança imatura, ela se levantou abruptamente, furiosa com ele por esconder a verdade, e saiu do escritório sem olhar para trás.

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