Kessan permanecia afogada em uma neblina que deslizava suavemente pelas ruas do vilarejo. A luz do luar refletia sobre as pequenas gotículas de água suspensas no ar, criando a ilusão de uma cortina que podia ser vista a alguns quilômetros de distância.

    Vozes desconexas e abafadas, por vezes, ecoavam de lá de dentro pela imensidão do campo, praticamente indecifráveis.

    E, a poucos quilômetros do seu limite, uma criatura de pequena estatura se levantou do meio da grama alta, como se brotasse da terra.

    A pele de tom acinzentado, com aspecto gélido, parecia repuxar em algumas áreas, inchando em outras, como se estivesse prestes a explodir. Inúmeros dentes saltavam para fora de sua boca, tão numerosos que mal permitiam que ela se fechasse completamente. E as orelhas… alongadas, dobradas e retorcidas, se assemelhavam às de um morcego.

    Parecia uma criança vinda diretamente do inferno.

    Foi então que ela levantou seu rosto em direção ao vilarejo, e como se estivesse farejando, seu nariz grotesco se contraiu algumas vezes.

    Por fim, de sua boca saiu algo similar a um riso distorcido de criança, como se algo no aroma que farejara houvesse lhe agradado.

    Ela se levantou aos trancos e, quando começou a se mover em direção ao vilarejo, logo depois de seus primeiros passos, se desmontou em vários pedaços, se espalhando pelo chão em uma mistura de carne e sangue, com sua cabeça rolando um pouco mais à frente.

    Foi então que uma mão branca como porcelana a agarrou pela orelha, erguendo-a do chão.

    Era Zahara… com seu vestido rasgado na altura dos joelhos, balançando suavemente ao ritmo da neblina que serpenteava pela relva. Sua pele pálida refletia a luz da lua como marfim polido, irradiando um brilho sutil e etéreo. E os seus olhos, quase dourados, pareciam cortar a penumbra com uma luz branda.

    Ela encarou a cabeça decapitada com um leve interesse.

    Em resposta, a criatura soltou um grunhido, semelhante a um choro de bebê, fazendo com que a expressão de Zahara se enrugasse levemente, expressando nojo. E então, ela jogou a cabeça para trás, despreocupadamente, em seguida picotando ela em mais alguns pedaços.

    Voltando seus olhos ao redor, em meio à neblina, ela pôde perceber mais algumas silhuetas que se movimentavam em meio à penumbra, cambaleantes.

    Foi quando, mais uma vez, outro eco saiu de dentro do vilarejo diante dela. Esse quase se assemelhava a um grito de ordem…

    Ela soltou um suspiro.

    — Não se esforcem tanto — sussurrou para si mesma. 

    E então, outro ser surgiu pelas costas dela, como um vulto. Rápido como uma raposa. Porém, esquivou-se dela e seguiu o caminho rumo ao vilarejo.

    Aquele era Zarek, que avançava às pressas.

    Zahara o seguiu com os olhos, sentindo o seu coração palpitar com uma pequena ansiedade.

    •••

    Horas antes…

    — Outra missão? — repetiu Zarek, com sua voz rouca sendo abafada pelo som das ondas se chocando contra o penhasco.

    — Sim — respondeu Zahara, agachando-se de frente para ele. O tom dela estava mais firme. — Do jeito como as coisas estão, isso não vai para frente se eu continuar com a mesma abordagem. Sem falar que, aparentemente, meus olhos não vão me ajudar dessa vez.

    Zarek piscou, enquanto ouvia atentamente o que Zahara estava dizendo.

    — Você disse que viu a criatura, certo? 

    — Hum… — respondeu Zarek, com um aceno sutil de cabeça.

    — Se você ainda não a esqueceu, é porque é imune à habilidade dela. Suponho que possa ser tanto por você não ser infectado quanto pelos seus sentidos funcionarem de uma forma diferente dos nossos — Ela respirou fundo, olhando diretamente para ele. — Então… dessa vez faremos assim. Deixarei para você o trabalho de matá-la, Zarek. E agora… você não pode errar.

    Zarek absorveu aquelas palavras com um leve vacilo no olhar, deixando suas brasas incandescentes se voltarem para o chão em um silêncio que pesava. Seus tentáculos, até então ondulantes, pararam, como se algo nas palavras de Zahara tivesse acionado um gatilho que o deixara hesitante.

    Mas Zahara, não podendo ler o seu interior e ainda imersa em seus próprios devaneios, apenas deu continuidade.

    — Bem… em teoria, é algo simples — se ergueu, cruzando os braços. — Mas parasitas não são do tipo que gostam de confrontos diretos. Depois do que você fez, é bem provável que ela evite você o máximo o possível.

    Ela pausou a fala por uns segundos, comprimindo os seus lábios enquanto forçava o raciocínio.

    — Sem falar que, a essas horas, a criatura pode estar se esgueirando por qualquer uma das casas… não dá para simplesmente pedir que você saia correndo pela vila, averiguando de casa em casa. Isso seria inviável. E ainda tem mais um problema… entre os aldeões, ainda é provável existirem membros aposentados da guarda e alguns usuários de manifestação espiritual. Se um deles cruzar o seu caminho durante a caçada… isso pode virar um problema ainda maior — Zahara soltou um suspiro pesado, como se cada pensamento trouxesse à tona novos dilemas que se empilhavam sem cessar — Preciso pensar em uma alternativa…

    Ela ergueu o rosto lentamente para os céus, com seus olhos correndo de um lado para o outro como se buscasse nas estrelas alguma resposta. Enquanto isso, Zarek continuava encarando o chão fixamente.

    Foi então que, depois de mais alguns segundos, seus olhos se fecharam como se houvesse encontrado a resposta que queria, e ela falou, com um semblante resignado:

    — O jeito vai ser se aproveitar do caos…

    A insinuação repentina de Zahara fez o olhar de Zarek, até então perdido no vazio, voltar-se novamente para ela.

    — Do caos? — questionou Zarek. Inclinando levemente o seu crânio para o lado, curioso.

    Zahara continuou:

    — A saturação de energia decomposta daquele lugar… se não for tratada logo, vai atrair outras aparições. É só uma questão de tempo… — seu rosto desceu, voltando a encarar Zarek nos olhos. — E quando acontecer… vai ser a nossa melhor oportunidade.

    Ela parou pensando em seu plano por mais um momento, apoiando o queixo sobre uma de suas mãos.

    Em contrapartida, Zarek, após ouvir tudo o que foi dito, voltou para sua quietude olhando para o chão. Pensativo… e, ao mesmo tempo, com uma aura que parecia insinuar desânimo.

    Mas, num instante, as chamas dentro de suas órbitas cintilaram mais intensamente. Foi então que, como se algo houvesse o instigado internamente, ele finalmente quebrou o silêncio:

    — Mas… — Sua voz grave saiu um pouco enérgica, como se ele estivesse com pressa em falar — E sobre eu não ser visto?

    Zahara arqueou uma sobrancelha, voltando seu olhar para ele com atenção renovada.

    — Hm…?

    — Isso… não seria um problema? — insistiu Zarek, a voz quase ansiosa.

    — Ah, sim… isso — respondeu Zahara, soltando um leve suspiro, como se aquela preocupação fosse apenas um detalhe — na verdade… já pensei em como resolver isso.

    Foi uma resposta confiante… mas não parecia ser a que ele queria ouvir. Zarek ainda desviou o olhar… como se algo em suas expectativas tivesse sido quebrado. 

    Algum tempo depois, Zarek posicionou-se diante da orla da floresta, onde as sombras das copas cediam espaço ao campo aberto. O vento noturno soprava entre a grama alta, fazendo-a ondular em cadência lenta.

    Ele havia reassumido a forma de raposa — não a comum, mas a versão reforçada — e se manteve em prontidão, observando o vilarejo, que repousava sob um véu espesso de névoa.

    Foi quando um som de folhas balançando soou floresta adentro, chamando sua atenção.

    Do meio das folhas dos arbustos, Zahara saiu com a saia de seu vestido reduzida na metade. A outra parte, ela estava carregando em suas mãos.

    — Isto vai ter que bastar — disse, apontando para ele o pedaço de pano.

    Zarek piscou, encarando-a.

    — Anda… vem… — insistiu Zahara, gesticulando com o queixo.

    Em resposta, ele apenas caminhou em sua direção com a cabeça levemente voltada para baixo, e então Zahara esticou o tecido com suas duas mãos e começou a enrolá-lo no crânio de Zarek, como se estivesse o mumificando.

    — Vou me aproveitar do fato de você ter aprendido esse truque novo. Com essa forma de cachorro, vai ficar mais difícil de alguém relacionar você com o caso do pantano. De resto… eu só preciso disfarçar bem esse seu cabeção.

    — Hmm — Zarek assentiu com um murmúrio contido, breve e sem emoção…

    Zahara encarou as chamas de seus olhos, finalmente sentindo que havia algo de estranho nele. Mas, como não sabia dizer se de fato era alguma coisa, logo ela voltou com o seu trabalho.

    Enquanto enrolava o tecido em torno da cabeça dele, ela ajustava cada volta cuidadosamente, evitando cobrir demais a região dos olhos, deixando uma abertura justa o suficiente para que ele ainda pudesse enxergar com clareza.

    Mas quando ela chegou próxima à base dos chifres, ela percebeu algo que havia deixado passar até o momento.

    O chifre direito de Zarek, aquele ao qual ela havia amputado logo no dia em que se encontraram pela primeira vez… ele estava simplesmente de volta ao seu lugar.

    Sem fissuras ou arranhões.

    Ela piscou e franziu levemente a testa, deixando os dedos suspensos por um instante.

    — Quando foi que você voltou? — A frase escapou como um sopro, leve demais para ser realmente dita. Quase um pensamento derramado em voz baixa.

    Mas, mesmo sem entender as palavras, Zarek captou o som tênue do suspiro, voltando-se para ela.

    E Zahara, sem se dar conta nos olhos que a encaravam, de forma quase automática, ergueu a mão e deslizou suavemente a ponta dos dedos pela lateral da cabeça de Zarek, acompanhando o contorno onde antes havia uma rachadura.

    Zarek seguiu o movimento com o olhar.

    Seus dedos percorreram a linha da têmpora com um gesto lento, quase distraído, como se sua mente estivesse tentando processar com seu tato o que ela estava vendo.

    O local também estava completamente liso, nada da antiga fratura restava ali. Tudo havia sido restaurado.

    Seus olhos se estreitaram, ponderando:

    “Ah, certo… ele disse que sentiu algo fluir para dentro dele. É claro que ele absorveu a energia daquele lugar. Então foi assim que ele conseguiu esse novo corpo.”

    Enquanto começava a organizar seus pensamentos, uma nova preocupação, tão súbita quanto inquietante, se acendeu dentro de Zahara como uma faísca inesperada.

    Ela não havia considerado essa possibilidade até aquele momento, mas… e se, por acaso, Zarek houvesse consumido uma quantidade excessiva de energia? Uma quantidade que também pudesse acabar o tornando um perigo. E se a maldição, que até então estava adormecida, acabasse despertando?

    Seu olhar deslizou até as duas brasas incandescentes nos olhos de Zarek, fixando-se ali como se buscasse alguma pista, sem perceber que ele também a observava.

    “Será que algo também mudou internamente?”, um arrepio percorreu sua espinha diante da ideia.

    O silêncio ainda pairou entre eles por alguns segundos, com Zahara tocando a lateral do rosto dele, enquanto ambos permaneciam com os olhos presos um no outro.

    Zarek piscou, sentindo um desconforto estranho percorrer seu âmago.

    — Ah… Zahara? 

    — An…? — Zahara também piscou, ainda imersa em seu devaneio.

    — Há… algo errado? — continuou Zarek.

    Somente então, ao escutar a pergunta dele, Zahara pareceu perceber o que estava fazendo.

    Ela estava tão próxima dele, que a chama esverdeada que ardia nos olhos de Zarek iluminavam levemente o seu rosto, tingindo suas feições com o brilho fúnebre que habitava em suas órbitas oculares.

    Ela piscou mais algumas vezes como se travasse, mas apenas por um breve momento, antes de se afastar bruscamente e voltar a enfaixar a cabeça de Zarek.

    — Hmhmm — pigarreou — acho que vamos precisar esconder melhor esses seus olhos — murmurou Zahara, cobrindo parte da região.

    — Acha que vou conseguir enxergar assim? — questionou Zarek, inclinando a cabeça.

    — Vai ter que se esforçar. Você precisa passar o mais despercebido o possível — rebateu ela, inflexível. — Inclusive, acho que vou deixar apenas um para você usar…

    Enquanto voltava a ajustar a bandagem, Zahara voltou a ponderar em sua mente:

    “Não dá para ter certeza… mas, até o momento, parece ter sido apenas uma mudança física. Há uma chance de o corpo dele ter absorvido a quantidade necessária apenas para se recuperar dos danos. Mas eu ainda vou precisar ficar de olho nele…”

    Quando Zahara terminou de ajustar a última dobra do pano, ela o prendeu com firmeza na parte de trás da cabeça de Zarek, e então, recuou meio passo e, com suas mãos pousando nos quadris, ela analisou o resultado.

    O tecido cobria toda a extensão do crânio, envolvendo desde os chifres até sua arcada dentária superior, deixando apenas uma pequena fresta pela qual ele deveria enxergar.

    Apesar de improvisado, havia ali uma estética que beirava o ritualístico.

    Zarek inclinou levemente a cabeça, esperando algum sinal de aprovação.

    — E aí…? — questionou.

    — Hummm… — Zahara murmurou, pensativa — Bem… ainda é uma coisa. Mas acho que vai servir. Agora… vamos à estruturação do plano.

    •••

     Agora

    — Huh… caramba, ele ficou rápido demais… acabei perdendo ele de vista — ofegou Zahara, com a respiração pesada enquanto corria em direção à vila.

    E assim que ela transpôs os limites de Kessan, sentiu como se tivesse atravessado um véu invisível.

    A transição foi sutil.

    De repente, o mundo ao redor havia ficado mais denso. O ar parecia pressionar seus sentidos de fora pra dentro. O som amortecido, os cheiros indistintos, a visão turva pela névoa… tudo conspirava para silenciar o ambiente, como se ela estivesse em um casulo.

    Ela parou.

    Seus olhos vasculharam os arredores enquanto franzia a sobrancelha em estranheza.

    Kessan, um dos vilarejos mais bem estruturados da região de Helgrath, um lar de aproximadamente algumas centenas de pessoas, estava totalmente inóspito.

    Porém… havia algo a mais.

    As portas das casas… muitas estavam entreabertas ou escancaradas como se os donos tivessem se retirado às pressas, sem se dar ao trabalho de trancá-las. A madeira rangia levemente ao balanço do vento, como se o próprio vilarejo lamentasse o vazio repentino.

    — Hmmm… não vejo corpos nem cheiro de sangue. — murmurou Zahara, inclinando-se para de uma das casas, os olhos correndo atentos pelos cantos escuros do cômodo. — E também não há sinais de luta… parece que conseguiram evacuar com sucesso.

    Ela ergueu o rosto, deixando que a luz pálida da lua iluminasse parcialmente seu semblante enquanto seus olhos se voltavam para o centro do vilarejo. Por entre os telhados desalinhados, avistou a estrutura esguia de uma torre, adornada por um grande sino. O sino de uma das paróquias da Igreja da Ordem.

    — Curioso… — sussurrou — eu não ouvi o som do sino.

    Assim que ela terminou sua primeira checagem, virou-se rapidamente, olhando por cima de seus ombros, verificando se algo se aproximava pela sua retaguarda. E então, não captando qualquer sinal imediato de ameaça, andou sorrateiramente para um beco e fechou os olhos se concentrando.

    — Certo… então vamos começar logo… — conjurou com um sussurro. — Evodr Ent Zarek.

    Naquele mesmo instante, um brilho suave emanou de seu peito, oriunda da marca que se manifestava. Uma onda sutil percorreu suas entranhas. Um chamado que a puxava para mais fundo no vilarejo.

    Era naquela direção que Zarek estava.

    “A marca ainda está ativa, isso é um bom sinal…”, o pensamento veio acompanhado de um gole seco que percorreu sua garganta. “A esse ponto, ele já deve estar chegando próximo da casa. Preciso apressar o meu passo…”

    Fase 1 do Plano – Retorno ao berço


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